Água e eletricidade
Foi o acesso à água que possibilitou o desenvolvimento da agricultura pela sociedade nos primórdios da humanidade. E até hoje é assim. No entanto, ter água próximo às comunidades não necessariamente é o suficiente. É preciso que ela seja potável e, depois, que haja infraestrutura para o recurso ser capturado e distribuído.
No município de Jacundá, no Pará, essa é a reinvindicação de Cleane Regina Moreira, vice-presidente da Associação do Projeto de Assentamento Bom Jesus-Urutum. A água que ela utiliza para passar o café para as visitas vem do Rio Tocantins, a poucos metros da casinha com galinhas e porcos no quintal. Mas o balde não é suficiente para montar uma irrigação para uma horta. Em meio à Amazônia, a mulher conta que planta mandioca para subsistência, mas seu sonho é uma horta para consumo e comércio.
Parece uma conversa do passado, mas é o Brasil atual com antigos problemas.
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Moreira diz que a vontade dos agricultores de obter rede elétrica e irrigação levou à criação da associação. “Nós nos organizamos, eu estou como vice-presidente, e todo dia procuro falar com o poder público, porque água é mais alimento e dinheiro para a gente”, afirma.
No hemisfério norte do planeta, foi também a organização da sociedade que mudou a realidade do acesso à água no município de Brooks, em Alberta, no Canadá. O que une Jacundá a Brooks é o direito universal de disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento, defendido pela Organização das Nações Unidas, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
O começo da água
Se no Pará a abundância dos rios da Amazônia contrasta com a falta de política pública para acessá-los, na parte leste do Canadá a água que vem das montanhas recebeu um plano de captação, distribuição e taxação.
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À época, a lei ‘ribeirinha’ britânica, aplicada no Canadá, indicava que se houvesse proximidade à fonte de água, a comunidade local teria a oportunidade de utilizá-la. Como nem todos estavam próximos à água, cresceu a pressão do povo pela necessidade de plantar, ainda no fim do século XIX. O resultado: políticas do governo para viabilizar o uso da água proveniente dos picos nevados da região. Com isso, foram criados canais de distribuição da água e lagos artificiais.
Margo Jarvin, diretora executiva da Associação dos Distritos de Irrigação de Alberta, explica que, quando a neve começa a derreter, há um volume grandioso de água, que depois se esvai. “A ideia foi reservar um pouco desta água na época da primavera, bombeando para lagos artificiais. Nós não usamos barragem, mas fazemos reservatórios”, afirma.
Obras para expansão
O que o governo fez, conta Jarvin, foi aprimorar a legislação para que se permitisse o desvio da água por meio de um sistema de licenciamento que forneceria uma alocação definida para organizações ou indivíduos. “Assim, foi possível ter desenvolvimento mais longe da fonte do rio, porque eles iriam mover água através desse sistema de canais para áreas agrícolas e áreas municipais”, diz.
Em 1910, houve a fundação de um distrito específico para distribuição da água, chamado Eastern Irrigation District. Entre 1912 e 1914, foi construído o Aqueduto de Brooks, já como parte de um sistema de irrigação para fornecer água às terras áridas do sudoeste de Alberta.
Estas veias bombearam o coração da agricultura local. Hoje, a estrutura virou um memorial a ser visitado. Gigante, a centopeia de concreto no meio da zona rural de Brooks impressiona pelo tamanho, por se estender por 3,2 quilômetros de largura e 20 metros acima da terra.
“O desenvolvimento das pequenas comunidades acompanhou o desenvolvimento dos canais de irrigação”, afirma Margo.
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Subsídios para acesso à água
Na perspectiva do agricultor canadense Blaine Johnson, foi a irrigação que possibilitou a permanência de diversas famílias em Brooks nos últimos 120 anos. E com o passar do tempo, chegaram os grandes investimentos em pivôs. “Apesar de serem extensos, os pivôs não usam mais água. Ao contrário, nos permitem irrigar melhor usando menos”, diz à EXAME.
Até abril deste ano, produtores de Alberta tiveram a oportunidade de se inscrever no Programa Água, do governo estadual, para apoiar a gestão do que eles chamam de ‘água agrícola’. Isto é, subsídios para produtores adotarem melhores práticas de gestão dos riscos à qualidade e ao abastecimento de água, adaptação à variabilidade climática e uso eficiente dos recursos hídricos. Um exemplo é o suporte para irrigação.
Cada candidato inscrito pode ser contemplado com um financiamento máximo de 30 mil dólares por ano fiscal do programa, iniciado no mês de março. Para Johnson, este formato de subsídio se soma a outros apoios do governo local para estimular a agricultura.
“Se o índice de uso da água está alto, recebemos um aviso [do governo local] para reduzirmos o consumo. É um sistema justo, não queremos prejudicar ninguém e garantimos que haja água suficiente para o próximo ano”, diz.
Jarvin, da Associação dos Distritos de Irrigação de Alberta, explica que a taxação para uso do recurso hídrico é calculada sobre transporte da água até o portão da fazenda. Os produtores podem utilizar até 25 mil m³ por ano e, desta forma, a cobrança é feita pelo transporte do recurso até a porta da fazenda.
“Acho que o sistema que temos aqui no sul de Alberta funciona muito bem. Eles têm limites definidos de alocação de água na fazenda e não usam mais do que se deve para benefício de todos”, afirma.
Água a conta gotas
No Brasil, de acordo com o levantamento do Instituto de Energia e Meio Ambiente, cujos dados mais recentes se referem a 2019, são mais de 490.000 pessoas sem energia elétrica no Pará. Destas, quase 108.000 estão em assentamentos rurais, como a produtora Cleane Regina Moreira, cujo relato abre esta reportagem.
Após a chegada da eletricidade, é preciso obter o direito de uso e captação de água para irrigação. Toda a regulamentação é feita pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Aos agricultores, fica a incumbência de entrar em contato com a secretaria estadual de meio ambiente para, então, requerer a outorga para captação de água.
Conforme mapeamento do Atlas da Irrigação, no município paraense de Jacundá, há apenas 51 hectares irrigados. Quando a água estiver acessível, Moreira já sabe o que pretende fazer. “Seria bom um curso, de como usar a água de jeito certo, estar em dia [com a outorga] e quem sabe aprender essas técnicas para ter a horta da comunidade.”
* A jornalista viajou a convite da Corteva Agrisciente para o Canadá e a convite da brCarbon para o Pará
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Créditos
Mariana Grilli
Repórter de Agro
Graduada em Jornalismo com especialização em Agronegócios pela FGV. Trabalhou como repórter na Rádio Jovem Pan e na Revista Globo Rural. É vencedora do 2° Prêmio GTPS de Jornalismo e do Prêmio Rede ILPF de Jornalismo.