Veja onde assistir "Anatomia de uma Queda" (Anatomia de uma Queda/ Diamond Filmes/Divulgação)
Repórter de POP
Publicado em 25 de janeiro de 2024 às 14h12.
Última atualização em 29 de janeiro de 2024 às 18h58.
Diante de tanta previsibilidade nos roteiros de alguns dos principais filmes de Hollywood, é um deleite quando alguma produção "fura a bolha" do óbvio e entrega uma história com um enredo que foge às expectativas. Se ela não entrega respostas logo de cara, toda a experiência fica ainda melhor. E mais precioso que isso é fazê-lo com bons atores no elenco, criando com eles uma atmosfera de tensão que perdura por duas horas e meia. Parece miragem, eu sei, mas é essa a excelência que "Anatomia de uma Queda" ("Anatomie d'une Chunte", no título original), da francesa Justine Triet, oferece.
A produção chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 25 de janeiro, sem muitas pistas sobre seu enredo. A sinopse limita-se a dizer que uma família sofre quando há um caso de morte na família. O pai é encontrado morto na neve pelo filho de 11 anos, próximo à janela do segundo andar da casa, que fica nos Alpes Suíços, e a mãe se torna a principal suspeita por homicídio.
As duas linhas de sinopse são curtas para descrever a grandiosidade do longa, que conquistou a atenção dos críticos ao vencer a Palma de Ouro na 76ª edição do Festival de Cinema de Cannes e receber indicações em cinco categorias do Oscar, incluindo a de melhor filme e melhor direção. Ele também levou dois prêmios do Globo de Ouro, um do Critics Choice Awards e foi indicado a sete categorias Bafta.
O filme teve sua primeira estreia o Brasil em agosto do ano passado, na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Com montagem mais hollywoodiana, pode fazer com que o cinema francês finalmente volte ao ocupar o protagonismo da indústria cinematográfica. Mas será que vale a pena pagar o ingresso? Pela EXAME Pop, assisti ao filme com antecedência e trago para vocês minha análise crítica sobre "Anatomia de uma Queda". Confira:
Ao estilo de suspense que se poupa de conceder explicações ao público, porque deixa a cargo dele ser observador o suficiente para captar as pistas, o roteiro de "Anatomia de uma Queda" revela aos poucos a conturbada vida de Sandra (Sandra Hüller) e de seu filho, Daniel (Milo Machado Graner), de 11 anos, que começam a história frustrados pela recente morte de Samuel (Samuel Theis).
Cortando as imagens chocantes de Samuel estirado na neve em um borrão de sangue, aos sons dos gritos abafados de Daniel, aparecem nos primeiros minutos do filme entrevistas com Sandra. A data na cronologia do longa fica, de propósito, oculta. A bem da verdade, pouco faz sentido na primeira metade da trama, porque nada fica claro nas explicações, o que cria um clima de tensão que sufoca e, ao mesmo tempo, vicia. O público observa a nova rotina da mãe e do filho como mero espectador, ávido para saber o que aconteceu e entender a vida daquelas pessoas.
Décima mulher na história a ser indicada a melhor direção do Oscar, Justine Triet construiu no roteiro aquilo que é essencial para qualquer filme de suspense sobre um assassinato, mas que é estranhamente tão difícil de ser conquistado: a dúvida. Tão bem trabalhada no filme, essa incerteza — que leva à falta de confiança tanto no roteiro quanto nos personagens — é a linha tênue de toda o enredo de "Anatomia de uma Queda". A causa da morte é um mistério, não se sabe dizer se foi motivada por um suicídio ou se é um assassinato. Não há câmeras que revelem o momento da queda, não há flashbacks que sejam confiáveis, porque são todos narrados na voz dos personagens, só depoimentos. Mas existem, no entanto, investigações e algumas provas.
Para esse filme é necessário se segurar no laudo inconclusivo da morte de Samuel. O trabalho de perícia que revela que a hipótese do suicídio é possível, pela análise da queda e das gotas de sangue deixadas no local da morte. Há também outras provas que ajudam a formar uma opinião e vão se revelando até o final do filme, mas escrevê-las aqui seria um tremendo de um spoiler.
Diante da falta de respostas, o público fica com o coração na boca para captar todo e qualquer detalhe. Sandra fica tão em foco quanto o filho, que é uma peça fundamental nesse tabuleiro de xadrez imprevisível. Um peão a menos aqui, um movimento do cavalo errado lá; uma teoria que não se comprova aqui, um depoimento dúbio lá. A única certeza é a incerteza, trabalhada de forma brilhante nessa produção.
É verdade que esse clima de tensão ininterrupto do lona-metragem é uma das glórias do roteiro e da direção de Justine Triet, mas nada em "Anatomia de uma Queda" seria possível sem a presença de Sandra Hüller e Milo Machado Graner — que me surpreendeu muito como ator mirim em um trabalho fenomenal.
As brilhantes atuações de ambos são um dos pontos mais surpreendentes do filme. É merecida a indicação de Hüller ao Oscar de melhor atriz, porque ela como mãe e como centro de investigação entrega uma versão nada confiável de sua personagem de maneira excelente. Ao mesmo tempo em que o público quer defendê-la, acreditar no que ela diz, suas atitudes e depoimentos tornam esse sentimento quase impraticável. O olhar de Hüller aqui não passa confiança e os diálogos que ela trava com seu advogado e até mesmo com o filho dão calafrios. Arrisco dizer que esse talvez tenha sido o melhor papel de sua carreira.
É por meio dela, também, que a maior parte da carga emocional do filme — bastante intensa — fica evidente. Além do mistério do assassinato, "Anatomia de uma Queda" explora uma porção de temas mais profundos: inveja, casamento, traição, luto, trauma e culpa. São sentimentos que acabam transpassados por Sandra ao público.
Já Milo, que descobri ter 15 anos, era mesmo a única pessoa possível para interpretar Daniel, que tem 11 anos no filme. O personagem é uma figura importantíssima de "Anatomia de uma Queda", posto que vêm dele o único outro depoimento além do de Sandra. Não se espera que uma criança minta em um caso tão sério como esse, mas acreditar no que ele diz é uma escolha somente de quem assistir ao filme. E o ator deixa clara que essa escolha não será facilitada por ele.
Se nas feições e atitudes de Sandra estão dispostas sentimentos mais adultos, mas contidos, em Daniel fica a pressão de lidar com temas tão intensos com tão pouca idade e experiência. Milo interpreta essa inocência e sofrimento à perfeição. Uma pena não ter sido indicado a nenhum dos prêmios de cinema de 2024.
Já que tão pouco é revelado, fica com o público a missão de criar suas próprias teorias. É mesmo um trabalho de juiz: a história mostra detalhes dentro de casa, conversas entre Sandra e seu advogado Vincent (Swann Arlaud), o julgamento com o advogado responsável pela defesa de Samuel (Antoine Reinartz), diálogos que não levam a lugar algum.
Todo esse clima de tensão, que é persistente do primeiro minuto do filme ao último, é preenchido porém por uma trilha sonora que varia entre cativante e insuportável. A mixagem de som, ensurdecedora de propósito porque Samuel tinha o hábito de ouvir a versão instrumental de "P.I.M.P", do 50 Cent, no último volume e sem fones, vai criando uma ansiedade difícil de ser ignorada.
Junto dela, complementando a ambientação do filme, estão as montanhas congeladas dos Alpes e o branco da neve, que acrescentam um clima mórbido à trama e só tornam a obtenção das provas mais difíceis. É como se tudo nesse filme fosse meticulosamente pensado para criar incertezas.
Uma morte no "meio do nada", com uma família claramente disfuncional descrita em relatos nada confiáveis. Isso é tudo o que Justine Triet tem para te oferecer. E é genial.O filme estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 25. O lançamento original por aqui foi na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em agosto de 2023.
Participam do elenco Sandra Hüller, Milo Machado Graner, Samuel Theis, Swann Arlaud, Jehnny Beth, Antoine Reinartz, Camille Rutherford, entre outros.
O Oscar de 2024 anuncia seus vencedores na noite do dia 10 de março. A cerimônia será transmitida pela TNT na TV por assinatura e na HBO Max, por streaming.