Nollywood: entenda como funciona a indústria cinematográfica da Nigéria (The Black Book/ A Lista da Vingança/Netflix)
Repórter de POP
Publicado em 8 de junho de 2024 às 09h09.
Última atualização em 8 de junho de 2024 às 13h26.
Fazer cinema é um privilégio de poucos. Não por falta de talento, tampouco por falta de ideias ou de criatividade, mas muito por falta de recursos: criar um filme com potencial de se tornar global, com o objetivo de atingir muita gente, exige um investimento alto. E Editi Effiong, cineasta nigeriano e autor de um dos maiores sucessos de seu país, sabe muito bem disso.
Egito, Nigéria e África do Sul disputam posto de maior economia da ÁfricaCom "A Lista da Vingança" ("The Black Book"), o cineasta viu seu maior e mais caro trabalho, com orçamento de US$ 1 milhão, recorde para produções audiovisuais da Nigéria, virar o chamado "Nollywood" — como é apelidada a indústria de cinema do país — de ponta-cabeça. Os direitos do filme foram comprados pela Netflix em 2023 e o longa entrou para o top 10 do streaming em menos de dois dias após sua estreia na plataforma, assistido por mais de 20 milhões de pessoas nas duas primeiras semanas (boa parte delas brasileiras).
"Fiquei muito surpreso quando vi que o público brasileiro abraçou o filme, eu não esperava uma repercussão tão grande por aí", disse Effiong em entrevista à EXAME durante sua passagem no Rio2C, uma das maiores feiras de criatividade da América Latina. "Foi um filme com um orçamento muito alto, uma aposta minha que conseguiu furar a bolha da Nigéria, que era nossa intenção desde o início. Mostrar que podemos fazer filmes com qualidade para ser global".
O filme retrata a história do ex-assassino Paul Edima (Richard Mofe-Damijo), que para salvar o filho acusado injustamente de sequestro, decide fazer justiça com as próprias mãos. Até lá, ele enfrenta uma gangue de policiais corruptos.
"A Lista da Vingança" estreou em 2023 já com o intuito de transcender as fronteiras da Nigéria, e por isso seu orçamento foi tão divergente dos demais filmes da indústria cinematográfica do país. Quando estreou no Brasil, em menos de dois dias ficou na segunda posição entre os mais assistidos de língua não inglesa. No resto da América Latina, ficou listado no top 3.
Para Effiong, a Nollywood reflete muito a economia nigeriana, o que é fundamental para entender porque "A Lista de Vingança" se tornou um esforço muito acima do esperado. Os orçamentos de filmes, em geral, são mais curtos porque é preciso fazer com que ele se pague, "mas tínhamos essa ideia de que poderíamos, sim, fazer um filme para o mercado global. Então, o objetivo não era exatamente se pagar", iniciou ele.
Alguns desafios, disse o diretor, impediam que os filmes da Nigéria rompessem a bolha do país. "Precisávamos de uma qualidade de filmagem, boas câmeras, filtros e edições avançadas, de um roteiro que vocês no Brasil pudessem entender, que uma pessoa na China ou na França pudesse entender também, que tivesse um apelo global. Mas para fazer isso é necessário muito dinheiro", explicou ele.
Ao todo, o roteiro foi escrito ao longo de 12 meses, e houve uma preparação de mais um ano para treinar os atores com armas e outros pré-requisitos que tornassem a qualidade do filme mais universal. "Essa preparação massiva era algo inexistente na Nigéria, o que tornou tudo mais difícil para a produção, porque não tínhamos referências pautáveis", argumentou Effiong. "Os filmes de Nollywood normalmente são gravados em poucas semanas e nós estávamos ali, exigindo um ano inteiro de treinamento dos atores. Tivemos que aprender fazendo, testando".
O longa foi gravado em diferentes partes da Nigéria. Quando foi lançado pela Netflix, foi comparado pela crítica especializada a filmes de ação como a franquia "John Wick", mas com uma pegada histórica cultural do país africano. Em 2023, graças à atenção ao Nollywood, a indústria nigeriana de cinema bateu recordes de bilheteria.
No ano passado, segundo levantamento do site português "Fatshimetrie", o filme fez com que outros lançamentos atingissem bilheterias recordes. Foi o caso de "Uma Tribo Chamada Judá", dirigido por Funke Akindele, que ultrapassou os N$ 1 bilhão (aproximadamente US$ 679,7 mil).
O orçamento de "A Lista da Vingança" pode ser irrisório para os padrões de Hollywood e seus filmes milionários, mas é mais do que significativo para a indústria nigeriana — ou 'Nollywood', como é apelidada —, na qual boa parte os filmes não ultrapassa os US$ 300 mil.
Depois do chamado "Bollywood", indústria cinematográfica da Índia, a Nigéria é o país que mais produz filmes anualmente. São cerca de 2,5 mil por ano, que empregam diretamente mais de 300 mil pessoas e indiretamente mais de um milhão.
"A 'Nollywood' se tornou mainstream nos anos 1990, com filmes como 'Living in Bondage', 'Violeted', que vinham principalmente na parte leste da Nigéria, todos feitos de forma muito simples. No cinema, no começo dos anos 2000, em geral eram reproduzidos somente longas de Hollywood. A Nigéria não tinha uma cultura de cinema própria difundida", explica Effiong "E aí houve um filme chamado 'The Wedding Party' que mudou tudo e estabeleceu essa indústria, solidificou a cultura de cinema como a Nollywood, que foi crescendo ano a ano".
"The Wedding Party" foi um filme lançado em 2016, cujo orçamento foi de US$ 43 mil. Tornou-se um clássico do Nollywood e teve sua sequência em 2017. Assim como os demais filmes nigerianos, todo o orçamento foi captado de forma privada, e o roteiro é muito baseado na cultura do país.
"O que é tão único na Nollywood é que temos uma cultura de contar histórias que é diferente de qualquer outro lugar. Estava comentando isso com a minha mãe: me lembro de histórias que ela me contava quando eu era criança, cantando canções, histórias com lições de moral. Isso ficou estampado nos filmes da Nigéria, sempre tem um ângulo moral, esse storytelling tão forte", comentou o cineasta. "Há sempre uma lição para aprender".
Agora que foi lançado ao mundo, Effiong quer fazer mais parcerias para lançar mais filmes globais e elevar ainda mais a indústria nigeriana de cinema. "Quero ser a parte de Nollywood que vai fazer sucesso além da Nigéria, provar que é possível fazer algo com muita qualidade. Busco parcerias para aumentar os orçamentos dos meus próximos projetos".
O filme de Editi Effiong está disponível no catálogo da Netflix.
*A repórter viajou para o Rio de Janeiro a convite dos organizadores do Rio2C