OS FUNDADORES DA SNOWFLAKE: "Na França, teriam nos chamado de doidos. Mas nos EUA éramos inovadores" (foto/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 21 de março de 2018 às 17h03.
Paris – A Snowflake, startup que oferece serviço de análise de dados na nuvem, anunciou no fim de janeiro o aporte de 263 milhões de dólares em sua última rodada de investimentos. Com uma valorização que bateu os 1,5 bilhão de dólares, a empresa entrou no seleto grupo de “unicórnios”, título dado a startups com valorização acima de 1 bilhão de dólares. Desta última rodada participaram fundos como ICONIQ Capital, Altimeter Capital (Airbnb) e Sequoia Capital (Uber, LinkedIn e WhatsApp).
“É bizarro, para não dizer surreal”, disse a Exame Benoît Dageville, engenheiro francês co-fundador e CTO da empresa. “Esse capital vai servir para nos ajudar a expandir rapidamente, a única forma de bater nossos concorrentes”. Isso porque a startup de apenas cinco anos tem entre os seus competidores gigantes como Google, Microsoft e Amazon. Mas, segundo Dageville, essa é também uma vantagem, já que por ter uma estrutura menor, a Snowflake consegue inovar e se movimentar mais rapidamente que as multinacionais. “Mas acima de tudo temos confiança no nosso produto, afinal nós temos o único banco de dados que foi concebido do zero para a nuvem”, diz.
Os dois fundadores da Snowflake tiveram percursos similares: apesar de virem de cantos opostos da França, ambos fizeram teses de doutorado sobre a análise de banco de dados na Universidade Paris Jussieu, nos anos 1990. Contudo, foram só alguns anos mais tarde que Dageville, já engenheiro da Oracle nos Estados Unidos, entrevistou Thierry Cruanes, então funcionário da filial francesa da IBM, para um posto na empresa. Os dois queriam se dedicar ao desenvolvimento de software, coisa que praticamente inexistia na França naquela época. “Enquanto nos EUA os desenvolvedores eram super valorizados, em Paris ainda me viam como o técnico que vai consertar a sua televisão”, conta Dageville.
Na Oracle, a dupla trabalhou por uma década com a análise de banco de dados, tecnologia chamada de data warehouse. As análises demoravam horas, não eram práticas. Frustrados com a falta de inovação da empresa, os dois engenheiros decidiram se demitir para abrir o próprio negócio. A ideia eles já tinham: desenvolver um software capaz de analisar tanto dados na nuvem. Os dois engenheiros compraram uma lousa e várias canetas e se trancaram de agosto e novembro de 2012 no pequeno apartamento de Dageville em San Mateo. “Foi assustador, afinal dividimos o nosso salário por quatro sem saber ao certo o que fazer”, conta Dageville. “Na França, teriam nos chamado de doidos. Mas nos EUA éramos inovadores, e falhar não era um problema tão sério assim”.
Aos poucos a ideia foi tomando forma. Além de conseguirem desenvolver o software, a dupla ainda pensou em um plano de negócios diferente, em que os usuários iriam pagar pelo tempo exato em que utilizassem o serviço, e não precisariam fazer uma assinatura nem nada parecido. Outro ponto importante é que pelo site, membros diferentes da equipe poderiam trabalhar ao mesmo tempo sobre a mesma base de dados, sem que o servidor ficasse lento ou que uma atividade alterasse a outra. O nome também surgiu, graças a uma conversa com um investidor: “Estávamos conversando sobre como adorávamos esqui e o nome veio. Snowflake é perfeito: tem uma imagem de algo puro, e de alguma forma vem da nuvem”.
Nos primeiros cinco meses, apenas os dois fundadores faziam parte da empresa. No ano seguinte, a equipe contava com dez pessoas. Em 2014, já eram 40, e o funcionário de número 32 foi o americano Bob Muglia, um ex-executivo da Microsoft, contratado para assumir o posto de CEO. Foi só no ano seguinte que o serviço começou a ser comercializado, e no começo atraiu principalmente outras startups e empresas de games. Hoje, com 340 pessoas na equipe, a Snowflake conta com grandes nomes entre seus clientes, como a empresa de tecnologia Adobe e a consultoria Nielsen, e já atraiu 473 milhões de dólares em investimentos.
Apesar do crescimento expressivo, os fundadores da startup têm noção de que as gigantes da tecnologia americana estão em seu encalço. Amazon, Google, Microsoft e até mesmo a Oracle tem produtos similares e presença no mercado global. Para proteger a Snowflake, a estratégia dos franceses é a de internacionalização rápida. Nos últimos dez meses, a startup abriu um escritório em Londres com 40 pessoas, contatou outras dez em Paris, e ainda abriu filiais em Amsterdã, Estocolmo e Munique. Até o fim do 2019, a ideia é levar a startup para o Brasil e também para a Ásia.
Entre todas as conquistas, os sócios fundadores contam que voltar a Paris teve um gosto especial. “Foi mágico. É incrível pensar que saímos da França há 20 anos e nesse tempo conseguimos criar algo bom o suficiente para voltar para lá, de alguma forma”, diz Dageville.
Segundo eles, o mercado de empreendedorismo digital francês evoluiu muito nas últimas décadas, assim como a abertura de empresas à inovação. “Hoje existe dinamismo e vontade de inovar na França. Nós não somos tão conhecidos por lá, e mesmo assim já assinamos alguns contratos”, conta Dageville. Eles ressaltam, contudo, que o país se assemelha aos EUA de cinco anos atrás, e que ainda há pontos que devem ser desenvolvidos. “Nos Estados Unidos, a tecnologia é vista como um diferencial competitivo, essa noção parece só estar chegando ao mercado francês agora. Antes, funcionários não eram encorajados a tomar decisões arriscadas, mas agora parece que esse comportamento começa a ser valorizado”, diz Cruanes.
Os números confirmam o momentum do mercado de empreendedorismo digital francês. Em 2017, as startups francesas atraíram 3,18 bilhões de dólares em capital, um recorde. Os fundos de investimento na área se multiplicaram por cinco nos últimos cinco anos e o número de operações aumentou em 45% no último semestre do ano passado. Houve uma mãozinha do empresário francês Xavier Niel, que no ano passado inaugurou na capital o Station F, maior campus de startups do mundo que abriga a primeira incubadora do Facebook e acaba de anunciar um novo programa de formação para empreendedores do Google.
O governo fez também a sua parte criando um visto especial para empreendedores, engenheiros e investidores, que podem ficar quatro anos no país se trabalharem para uma empresa ou uma startup com escritório na França. Talvez os futuros empreendedores não precisem cruzar o Atlântico rumo à Califórnia.