Priscila Bagatini Herling, do Campa BBQ: restaurante teve que mudar modelo de negócio para sobreviver (Flávio Florido / Carlos Raphael do Valle Eireli/Sebrae/SP)
Basta andar pelas ruas para perceber os efeitos da pandemia de Covid-19 sobre os pequenos negócios: muitas portas fechadas e placas de “aluga-se” onde antes havia restaurantes, lojas e salões de beleza. Os números também traduzem esse impacto. A taxa de empreendedorismo total no Brasil ou seja, a proporção da população adulta em atividades empreendedoras atingiu o menor índice dos últimos oito anos, caindo para 31,6% em 2020, contra 38,7% em 2019. A informação é do relatório da Global Entrepreneurship Monitor (GEM) 2020, pesquisa realizada no Brasil pelo Sebrae em parceria com o Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBPQ).
E não foram só empreendimentos novos que tiveram de apagar as luzes. Também os empreendedores estabelecidos, isto é, aqueles com mais de três anos e meio de operação, sofreram com as perdas. Foram essas empresas que puxaram a taxa total para baixo, caindo de 16,2% para 8,7% um recuo de quase 50%.
Com isso, o número de empreendedores estabelecidos ficou abaixo do registrado em 2004. Todo esse cenário de crise levou os donos de pequenos negócios a uma profunda reflexão sobre a estratégia de atuação e sobre o próprio modelo da empresa. Boa parte de quem permaneceu funcionando durante a crise da pandemia que ainda não acabou e de quem conseguiu até aumentar o faturamento tem algo em comum: a remodelagem do negócio.
A empresária Priscila Bagatini Herling, dona de um restaurante em Piracicaba, está nesse grupo de empreendedores estabelecidos que precisaram reformular toda a operação para minimizar as perdas provocadas pela pandemia. No caso dela, porém, a mudança foi capaz de inverter o jogo: ela passou a faturar mais com o negócio repaginado.
Junto com o marido e sócio, Nycolas Fernandes, ela era proprietária de um restaurante por quilo fazia 13 anos, que atendia principalmente funcionários do Fórum da cidade. Com a chegada da pandemia, em março de 2020, os clientes passaram a trabalhar em home office e o estabelecimento ficou fechado por alguns meses.
A primeira opção foi tentar investir no delivery de marmitas que ela já fazia de vez em quando, mas a operação não parecia ter futuro. “Eu oferecia um delivery ‘meia boca’, um marmitex padrão, mas quando começou a pandemia e fechou tudo, comecei a pensar em kits e vender pelos apps, tentei melhorar a comunicação”, conta Priscila. Mesmo assim, o prognóstico estava claro: “Eu estava fadada a fechar o restaurante”, diz ela, que já passou por cursos do Sebrae como o Empretec.
Diante dessa situação, Priscila e o marido decidiram dar um passo além e concretizar uma ideia que já vinha sido pensada há algum tempo: mudar o restaurante para um ponto melhor, em uma avenida movimentada, em um imóvel maior e com um cardápio totalmente novo. “Saí de um lugar muito pequeno que atendia sete mesas para um lugar onde cabem mais de 200 pessoas. Fui para um ponto que tem tudo para dar certo, o que qualquer pessoa que tem um restaurante iria querer”, conta.
Nesse processo, o nome também mudou. O tradicional restaurante Campanello deu lugar ao Campa BBQ, inaugurado em dezembro passado depois de alguns meses de reforma. E o bufê diário ganhou a companhia de carnes defumadas e churrasco em estilo americano. Outra novidade foi que o restaurante passou a atender à noite, com promoções para o happy hour e um serviço de coquetelaria.
“A noite é extremamente lucrativa, a margem da bebida é maior e por isso investi na contratação de um barman. Se não fossem as restrições da pandemia, eu conseguiria ter lucro em cinco meses”, diz Priscila. Ela lamenta que ainda não tenha conseguido trabalhar um mês “cheio”, ou seja, sem limites de ocupação e de horário, quando acredita que seu faturamento pode chegar ao dobro
do que tinha no antigo restaurante.
Mesmo assim, tem investido também em kits de churrasco para o delivery e em uma comunicação mais assertiva nas redes sociais. “A experiência do delivery nunca vai ser a mesma, mas ao mesmo tempo em que você quer muito que as coisas funcionem, tem medo que as pessoas possam ficar doentes”, observa. Por isso, ela também valoriza as conquistas do novo ponto: área externa grande, espaço para as crianças e estacionamento próprio. “Eu não via a hora de mudar, mas ao mesmo tempo tinha um apego nostálgico. Para falar a verdade, ainda não tenho noção do que somos capazes onde estamos hoje”, afirma.
Para a consultora do Sebrae-SP Silmara Regina de Souza, do ER Piracicaba, a transformação do Campa BBQ se enquadra na necessidade de mudança que a pandemia exigiu para os negócios. “As empresas não podem mais atuar da mesma forma. Há remodelagens que vão das mais simples até aquelas mais profundas. Tinha muita empresa que só atendia pelo ponto de venda e precisou fazer delivery, criar kits de venda, isso é uma remodelação. Ela deixa de ter o ponto físico como forma principal de encontro com o cliente”, diz. E completa: “Mudanças mais profundas são mais difíceis, dão trabalho mesmo”.
Silmara observa que as empresas estabelecidas, aquelas que estão há mais tempo no mercado, enfrentam uma barreira “cultural” diante da mudança. Isso significa que o primeiro passo é mudar a maneira com que o empreendedor encara a própria empresa. “Existe um problema em relação aos valores do tangível e do intangível. Uma reforma na fachada é tangível, o empreendedor valoriza, mas a comunicação é intangível, ela não traz o resultado na hora”, afirma.
No cenário de pandemia, que provocou mudanças profundas de comportamento, estar atento a ferramentas novas e estar disposto a mudar o jeito de trabalhar são atitudes fundamentais. “Muitos empresários não atendiam por WhatsApp, mas hoje já vejo lojas muito tradicionais que passaram a fazer vídeos no TikTok. Elas entenderam que não podiam mais ficar sem se comunicar”, observa Silmara. Além disso, estar aberto a mudanças pode ser a garantia para a continuidade do seu negócio. “É um erro estratégico demorar a tomar decisões: o empreendedor vai perder tempo e vai perder clientes”, diz.
Mudar a maneira de se colocar no mercado foi o que garantiu o crescimento da cervejaria Kalango nos últimos meses. A empresa, localizada em Americana, fazia cervejas em uma fábrica própria e vendia os produtos em um ponto de venda na cidade e também para outros estabelecimentos, mas as mudanças no comportamento do consumidor levaram a cervejaria a remodelar a operação. “As pessoas pedem comida no aplicativo quando estão com fome, mas trabalhar bebida no delivery é muito difícil”, diz Kauré Martins, sócio da cervejaria com o irmão e o pai.
Nesse cenário, a única opção seria contar com o ponto próprio para segurar o faturamento. “Nossos produtos também vão para outros bares, empórios etc, mas esses clientes também caíram muito com a pandemia. Teve mês no ano passado em que eu não emiti uma única nota fiscal de venda”, afirma Martins, que relata uma queda de 80% nos primeiros meses da pandemia. A solução para não fechar as portas foi mudar o foco da empresa e investir em diversificação das fontes de receita.
O primeiro passo, conta o empreendedor, foi fortalecer a terceirização da produção, isto é, oferecer os serviços da fábrica àquelas cervejarias que não têm equipamentos próprios e precisam “alugar” um local para a produção. Antes da pandemia, esse serviço era apenas uma pequenaparte das atividades, mas hoje já é responsável por mais de 30% da ocupação da fábrica. “Mesmo que a demanda de todos os clientes tenha caído, conseguimos trazer mais cervejarias pela nossa rede de relacionamento, por indicação, então a soma acaba sendo grande. Nossa carteira cresceu relativamente rápido”, afirma.
A remodelagem também envolveu o ponto de venda na cidade: o que era apenas um local de comercialização de cervejas passou a oferecer também hambúrgueres e carnes a partir do início do ano. Além do consumo no local quando está permitido, o delivery de comida impulsiona a venda de bebidas, que agora vão em
garrafas PET. “Também identificamos uma mudança no comportamento dos clientes. Começamos a atrair um público maior, que antes não frequentava nosso estabelecimento, e vimos vários indicativos de melhoria, como tempo de permanência e tíquete médio”, diz Martins.
Com o auxílio do Sebrae, os planos da cervejaria Kalango agora envolvem ocupar até 50% da produção da fábrica com terceirização e expandir os pontos de venda próprios. “Com isso, nós temos toda a cadeia comercial: isso facilita nossa operação, elimina vários processos e temos uma demanda controlada na fábrica. No fim, esse período de baixa e adaptação foi uma oportunidade para a gente se reestruturar para quando o mercado voltasse, e agora a gente está bem mais preparado”, ressalta o empreendedor.
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