Ueze Zahran: “Não tenho vontade de parar de trabalhar” (Daniela Toviansky/Exame)
Da Redação
Publicado em 19 de agosto de 2014 às 14h02.
São Paulo - Ueze Zahran, presidente da Copagaz, não gosta de dizer a idade. Respeitemos. Mas ele é do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça. “Não escreva quantos anos tenho, até porque ninguém vai acreditar mesmo”, pediu na entrevista a Exame PME. Zahran, perdoe o trocadilho bobo, está a todo gás. “Não sobra tempo para nada por causa do trabalho”, diz.
Ele poderia passar o tempo curtindo seus cavalos árabes e cochilando após o almoço na câmara hiperbárica que mantém no jardim. “Uma vez tomei uma porcaria de um uísque que não fez muito bem”, diz. Um amigo sugeriu-lhe descansar numa câmara dessas que estava em seu laboratório. “Depois de 1 hora, saí com uma vontade desgraçada de trabalhar”, diz Zahran. Conheça sua trajetória.
"Meus pais se casaram no Líbano, pegaram o vapor e vieram para o Brasil nos anos 20. Subiram o rio Paraguai até Bela Vista, uma cidadezinha em Mato Grosso onde o irmão de minha mãe era um comerciante forte.
Em Campo Grande, para onde se mudaram, meu pai montou um bar, depois um restaurante e uma pastelaria. Dava dinheiro, mas ele jogava tudo que ganhava no pôquer, como a maioria dos libaneses da região. E meu tio, que também perdia dinheiro no jogo, não podia nos ajudar.
Comecei a trabalhar no bar aos 12 anos. Sou o segundo de seis filhos. O mais velho teve poliomielite, o que aleijou o braço esquerdo e afetou a coluna. Mas ele conseguia trabalhar com o braço direito. Quando ele tinha 14 anos, começou a arrastar a perna e ficou de cama por dois anos. Eu ficava sozinho tomando conta do bar à tarde, durante o tempo em que meu pai saía para jogar.
Eu tirava escondido dinheiro do caixa para comprar uma casa para a família e arrumar o restaurante, que perigava cair em nossa cabeça. Papai descobriu que eu guardava o dinheiro com seu Juvêncio, um barbeiro da cidade. Foi lá, pegou tudo e perdeu no pôquer. Aquilo acabou comigo. Perdemos o bar e ficamos sem ter onde morar. Um amigo de meu pai, que trabalhava com cereais, nos deixou dormir num armazém.
Finalmente, conseguimos alugar uma padaria. As padarias têm um equipamento chamado cilindro, usado para esticar a massa. O cilindro da nossa era aberto. O equipamento já tinha pegado o dedo de dois funcionários. Por isso, eu não estava deixando mais ninguém trabalhar naquele cilindro. Só eu mexia nele.
Eu tinha 16 anos e trabalhava muito. Também estudava — cursava o que naquele tempo era o ginásio. Dormia pouco e muitas vezes operava a máquina já quase dormindo! Um dia, o cilindro pegou meu dedo, que depois o médico costurou de qualquer jeito.
Era 1941 e, por força da guerra, havia dificuldade de comprar farinha de trigo. O Brasil não produzia e a Argentina, que tinha uma grande colheita, mandava tudo para o Eixo. Conseguimos comprar trigo de um carroceiro chamado Nendipe, que trouxe farinha da Argentina atravessando o Paraguai. Pagamos 82.000 réis pelo saco — oito vezes o valor normal.
Soube que os prefeitos paulistas estavam comprando farinha de trigo por um preço melhor, pois o estado de São Paulo tinha conseguido importar o produto. Era um benefício só para São Paulo, mas decidi tentar comprar mesmo assim.
Peguei o trem e fui. Aquela viagem levou dois dias e duas noites. Fiquei na casa de um irmão que estudava engenharia na Escola Politécnica, da USP. Esse irmão também jogava a dinheiro. Mas não era pôquer, como no caso de meu pai e meu tio — era sinuca e xadrez.
Pedi a ele que me levasse ao centro da cidade, onde o governo vendia trigo aos prefeitos. Tive de esperar o dia inteiro para ser atendido, mas valeu a pena, porque deu certo. Eu estava louco de felicidade, pois meu pai não pegou o dinheiro da empresa para apostar no jogo. Dessa vez, nós havíamos guardado no banco.
Já tínhamos conseguido alugar uma pequena casa quando, algum tempo depois, minha mãe quis viajar para São Paulo para rever seu irmão, o Felipe — meu tio era um homem esperto, mas também apostava no pôquer tudo que tinha na mão.
Ela ficou hospedada na casa dele por dias e dias. Ficou apaixonada pelo fogão a gás dele. Minha mãe nunca havia usado aquilo — na nossa casa, em Campo Grande, o fogão era a lenha.
Havia uma razão importante para ela ter ficado tão encantada. Àquela altura, nossa padaria tinha evoluído e vendíamos almoço também. Minha mãe tinha de cozinhar tudo no fogão a lenha, o que dava um trabalhão. Então, vim até São Paulo, comprei um fogão e quatro botijões e voltei para Campo Grande. Minha mãe ficou passada de felicidade quando viu a chama azul debaixo da panela. Imaginei milhões de mães felizes assim e decidi trabalhar com isso.
Comecei a estudar por minha conta tudo o que podia sobre gás liquefeito de petróleo, o gás de cozinha. Como é produzido? Quais são as vantagens? E os riscos? Viajei novamente para São Paulo, com a intenção de voltar para Campo Grande como representante de alguma distribuidora.
Procurei um escritório da Supergasbras. Na parede havia um grande mapa do Brasil com bandeirinhas fincadas em muitas cidades. Cada bandeirinha era uma concessionária. Propus que eles colocassem uma bandeirinha em Campo Grande — e que eu fosse o concessionário na cidade. Fui aceito.
Na saída percebi um botijão grande ao lado de outro pequeno. Perguntei quantos quilos cabiam em cada um, mas eles não souberam me responder na hora. Na verdade, eu sabia — 5 quilos no pequeno e 13 no grande. Me dei conta de quanto, àquela altura, eu já estava por dentro desse mercado. Foi quando decidi: “Quer saber de uma coisa? Não vou ser representante, não. Vou é ter uma empresa distribuidora”.
Fundei a Copagaz quando a Petrobras começou a produzir gás no Brasil, em 1955. Comprei 26 tanques de 1 tonelada cada um para levar o gás até Campo Grande. Eu queria grudar os tanques de forma a ficar com 13, cada um com capacidade para 2 toneladas. O preço do frete de um tanque de 2 toneladas era igual ao de um tanque de 1 tonelada.
Avisaram que era perigoso fazer aquilo, porque poderia vazar e até trincar durante o transporte. Mesmo assim mandei fazer a soldagem. De vez em quando vazava alguma coisa e o bombeiro ligava na casa de minha prima, onde eu ficava em São Paulo, e eu tinha de sair no meio da noite com uma chave-inglesa na mão para apertar as coisas e amarrar tudo. Resolvi, então, montar uma engarrafadora em São Paulo para que o gás fosse transportado para Campo Grande já em botijões.
Meu escritório ficava junto com a engarrafadora, num terreno para os lados do bairro de Santo Amaro. Quando terminava o serviço, eu também ia embora com o pessoal. Notei que muitos funcionários chegavam ao terminal e perguntavam a outros passageiros para onde determinado ônibus estava indo.
Como o destino vem sempre escrito na frente dos carros, me dei conta de que eram analfabetos. Nos anos seguintes, batalhei para que todo funcionário da empresa soubesse ler e escrever.
No início, eu dava a mensalidade escolar, mas descobri que eles não compareciam à escola. As aulas eram depois do trabalho, à noite, só que eles iam direto para casa. Contratei professoras e improvisei. O que era refeitório de dia virava sala de aula à noite. Eu não deixava ninguém sair.
Levei quatro anos, mas consegui alfabetizar todo mundo. Para quem quisesse continuar os estudos, a empresa passou a pagar 70% da mensalidade. É bacana ver que eles não mudam de empresa depois de mais bem qualificados. Eles gostam de trabalhar aqui.
Muita gente me diz que eu poderia vender a empresa para me aposentar e cuidar de meus cavalos, sossegado. Recebo sempre propostas, e já estou cansado de dizer que não quero vender. A Copagaz tem bastante o que crescer. Atendemos hoje só 8% da demanda do país.
Acabamos de entrar na Bahia. Não tenho vontade de parar de trabalhar. Gosto da Copagaz e quero deixá-la para minhas filhas. O sucessor na gestão já está escolhido — o nome é segredo de Estado."