Policial na favela da Rocinha: as imagens de território hostil de um passado não muito distante voltaram (Ricardo Moraes/Reuters)
Da Redação
Publicado em 12 de fevereiro de 2018 às 08h32.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2018 às 11h47.
O cheiro da feijoada desce a ladeira do Morro do Vidigal, na Zona Sul do Rio. À medida que o aroma fica inconfundível, é sinal que a laje da Tia Léa, ou Léa Silva, como não é conhecida, está próxima. Até o ano passado, a cozinheira das cozinheiras do Vidigal usava seu tempero para atrair turistas e mais turistas até sua casa. Ela virou assunto de reportagens, foi parar em capas de revistas e passou a atrair famosos.
A reforma na laje ocorreu antes da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Vidigal, em 2012, acreditando que o projeto seria implantado em todas as comunidades do Rio, e que daria certo. Deu certo nos primeiros anos. Mas a violência voltou. Em meados de 2017, uma mulher foi baleada dentro de casa após um confronto entre bandidos.
Em agosto, um policial morreu, após ser alvejado quando patrulhava uma das ruas mais movimentadas do local. Dias depois, foi a vez de um homem ser atingido na cabeça depois de trocar tiros com PMs. Os primeiros dias de 2018 tampouco mostraram um cenário diferente. No final de janeiro, bandidos da comunidade atearam fogo em um ônibus em uma das principais vias de acesso à Zona Sul do Rio, enquanto a favela era cercada por policiais numa operação para capturar bandidos.
“Mesmo com a crise econômica, nos últimos cinco anos, quando chegava dezembro, eu estava com as datas para almoços nos finais de semana preenchidas para o verão. Até agora, as poucas reservas que consegui fechar são de turistas estrangeiros, que chegam na cidade menos informados sobre a situação nos morros. A violência está acabando com meu negócio”, diz Tia Léa.
À medida que o projeto das UPPs começou a fracassar, empreendedores de favelas pacificadas começaram a perceber a queda do que é mais importante para o negócio florescer: clientes, principalmente os que moram fora das comunidades. Com a volta dos tiroteios diários e o aumento de vítimas de balas perdidas, grande parte das 38 favelas com UPPs que, aos poucos tinham retornado ao roteiro de cariocas e turistas, reavivaram as imagens de território hostil de um passado não muito distante.
Além disso, a crise econômica que atingiu em cheio o Estado do Rio também contribuiu. Segundo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, só o município do Rio fechou 55.000 vagas formais em 2017. Com menos gente com dinheiro no bolso para consumir, continuar com o negócio de pé foi tarefa difícil.
Um dos que decidiram enfrentar a crise foi o empresário David Bispo. Dono do Bar do David, bicampeão do prêmio “Comida di Buteco”, a casa no alto do morro do Chapéu Mangueira, em Copacabana, teve de passar por mudanças para continuar aberta. Acostumado a funcionar até a 1h da manhã nos tempos áureos, passou a encerrar o expediente às 21h (22h aos finais de semana).
Além disso, pratos tradicionais como a feijoada de frutos do mar, passaram a ser servidos nos dias úteis, pois a clientela passou a ir mais no horário de almoço, entre segunda e sexta. Mesmo assim, o caixa ficou no vermelho em 2017, já que o faturamento caiu 40%. A salvação foi a poupança feita no período entre a Copa e a Olimpíada que ajudou a saldar as despesas.
Mas há um plano para driblar a violência. Com a fama adquirida, Davi cogita abrir um bar na rua, em um algum ponto do Centro ou da Zona Sul carioca. “Ano passado, shoppings centers em Botafogo, Leblon, Copacabana e Tijuca foram assaltados. Aqui na favela, nunca sumiu uma caixa de fósforo. O problema da favela não é roubo, mas as armas que voltaram a assustar todo mundo. É desagradável servir o cliente e saber que pode haver um caso de bala perdida. Vou ter que me adaptar à nova realidade”, afirma Davi.
“Acordo” com o tráfico
Quem também teve que se adaptar aos tempos violentos foi a guia Salete Martins, dona da empresa Favela Santa Marta Turismo. Moradora do morro Dona Marta, a primeira favela do Rio a receber uma UPP, viu, em 2008, a chance de fazer do local de nascimento um point do turismo no bairro de Botafogo. E deu certo.
Até hoje, já guiou a pé mais de 2.000 turistas pela favela, cobrando entre 50 e 100 reais, para levar a lugares icônicos, como a laje onde está a estátua de Michael Jackson – uma homenagem pela gravação do clipe de “They Don’t Care About Us”, filmado na favela em 1996. Só que nunca, como agora, tão poucos turistas se interessaram pela história do morro e pela vista privilegiada do Rio.
A explicação, claro, passa pela violência. Desde 2017, a favela voltou a ter bandidos circulando com armas pesadas por becos e vielas. Certa vez, no final do ano passado, conta Salete, enquanto fazia um tour com estrangeiros, chegou a dar de cara com um grupo armado, que logo se dispersou ao reconhecer a guia. Uma cena inimaginável para um local que, entre 2008 e 2015, ficou sem ouvir um disparo de arma de fogo.
Para não perder ainda mais clientes, Salete resolveu alterar a rota que costumava fazer com os turistas. Além disso, atendeu a um “pedido” dos traficantes para proibir turistas de fazerem fotos durante o passeio. O morro, que já chegou a receber até 500 pessoas por dia, recebe, hoje, cerca de 20% do registrado no passado. Felizmente, nunca houve qualquer incidente com visitantes. “Precisamos fazer um trabalho de divulgação muito focado na segurança do turista. Depois da alteração da rota, ficou bem mais seguro e não tem havido problema. Às vezes, claro, a gente precisa ligar para um cliente que marcou uma caminhada no bairro porque as facções estão em guerra. O movimento caiu, mas estamos nos recuperando”, diz Salete.
Enquanto alguns escolheram não desistir do sonho de empreender na favela, outros já jogaram a toalha e vão buscar espaço em outro setor. É o caso de um arquiteto, que pediu para o não ter o nome divulgado. Dono de um hostel na favela Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, decidiu abandonar o negócio após ficar refém da violência do entorno. No final do ano passado, uma operação da PM deixou três suspeitos mortos. No dia, o arquiteto estava no hostel, mas acabou ficando “preso” dentro do próprio local de trabalho, com medo de ser atingido por um disparo.
“Naquele dia, me dei conta de que não posso deixar nenhum cliente passar por essa situação. Nunca tinha presenciado uma guerra tão perto. O Pavão sempre foi um morro mais tranquilo, mas a violência explodiu em todas as comunidades do Rio. E lá não foi diferente. Aquela tarde fiquei de mãos atadas. Foi a gota d’água”, afirma o arquiteto.
Para conseguir reformar o imóvel onde manteve o hostel por seis anos, o empresário investiu boa parte do que acumulou quando trabalhou como arquiteto ao longo de uma década. Agora, a solução será vender a casa que herdou da família.
“É um fracasso, mas a culpa não é minha. É do Estado, que parece perdido e não sabe como enfrentar o crime organizado E o mais triste é que há muita gente trabalhando duro em várias comunidades do Rio passando pela mesma situação. A história que construí recebendo gente do mundo toda foi bonita. Pena que me obrigaram a interrompê-la”, afirma.