Demian Waldman: "As brocas que faço são tributadas como joias" (Fabiano Accorsi)
Da Redação
Publicado em 12 de junho de 2012 às 15h35.
São Paulo - O momento parece ser especial para quem quer inovar no Brasil. Há uma porção de mercados com necessidades a ser atendidas por pequenas e médias empresas capazes de desenvolver novas tecnologias.
É o caso da cadeia petrolífera, que precisa encontrar formas de trazer para a superfície o óleo escondido nas profundezas do oceano, ou do agronegócio, que procura meios para aumentar a produtividade das lavouras em regiões onde o campo já convive com o avanço tecnológico.
Há também mais recursos para negócios nascentes - só nos últimos três anos, pelo menos 100 novos fundos foram criados no país ou chegaram de fora, segundo um estudo da Fundação Getulio Vargas. Existe, no entanto, uma ameaça a esse cenário.
É a existência de uma realidade paralela marcada pelo atraso da burocracia, uma pedra no caminho de qualquer inovador. Nas próximas páginas, Exame PME mostra a história de quatro empreendedores que, depois de muito investimento e anos de dedicação à pesquisa de novos produtos e serviços, tiveram seus planos comprometidos pela burocracia.
As vespas que não podiam voar
Em fevereiro, o engenheiro agrônomo Diogo Rodrigues Carvalho, de 38 anos, recebeu dezenas de telefonemas de clientes, amigos e pesquisadores que o cumprimentavam pelas notícias divulgadas na internet.
A Bug Agentes Biológicos, empresa fundada por ele e outros dois sócios há 11 anos nos laboratórios da Universidade de São Paulo, em Piracicaba, no interior paulista, havia sido incluída no ranking anual das 50 companhias mais inovadoras do mundo divulgado pela revista americana Fast Company, especializada em empreendedorismo e inovação.
Numa lista em que os três primeiros lugares são, respectivamente, a Apple, o Facebook e o Google, a Bug obteve a 33a colocação — a melhor posição entre as empresas brasileiras. "Foi uma grande surpresa para todos nós", diz Carvalho. "Ganhamos projeção imediata."
A Bug faz algo pouco usual — é especializada no cultivo de vespas do gênero Trichogramma, utilizadas para o controle biológico de pragas em lavouras de cana-de-açúcar e de soja. Seu produto é uma placa de papelão com 24 células descartáveis que contêm, cada uma, de 50.000 a 100.000 ovinhos de vespas.
Vendidas a agricultores e engenheiros agrônomos, as placas são colocadas nas lavouras à distância de 20 metros umas das outras. Ao nascer, as vespas atacam os ovos de borboletas e mariposas, impedindo que essas pragas ataquem e destruam a plantação. Cada cartela é suficiente para proteger uma área de aproximadamente 10.000 metros quadrados.
O trabalho das vespas da Bug substitui o uso de inseticidas químicos, a um custo até 40% menor, dependendo do tamanho da área e do tipo de produto cultivado. "Há notícias de uso de insetos para o controle biológico de pragas que datam de 30 anos atrás", afirma Carvalho. "A diferença é que, agora, estamos desenvolvendo a técnica para proteger plantações comerciais em grande escala."
A tecnologia desenvolvida pela Bug reunia algumas das principais características buscadas pelo setor agroindustrial — o controle biológico de pragas reduzia custos, tinha potencial para diminuir os problemas ambientais causados pelo uso de produtos químicos na lavoura e podia ser aplicado em culturas economicamente importantes para a cadeia do agronegócio.
Mesmo assim, os donos da Bug passaram por maus bocados para obter todos os registros e licenças necessários para começar a vender as vespinhas inseticidas. Carvalho e seus sócios demoraram quatro anos para concluir os testes e as exigências burocráticas feitas por órgãos como o Ministério da Agricultura e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) — praticamente o mesmo tempo consumido nas pesquisas que deram origem à Bug, quase uma década atrás.
O caso da Bug é um exemplo de como é difícil fazer com que produtos e serviços inovadores vençam os obstáculos impostos pela burocracia brasileira. O grande problema para a Bug, segundo os especialistas na área de atuação da empresa, é que os órgãos públicos responsáveis pela regulamentação dificilmente conseguem acompanhar a velocidade com que empresas, universidades e institutos fazem pesquisas e desenvolvem novas tecnologias.
"As autoridades brasileiras não conheciam a diferença entre o controle biológico de pragas e os agrotóxicos convencionais até a Bug tentar registrar suas vespas comercialmente", diz Alexandre de Sene Perito, doutor em entomologia, que acompanhou os processos de registro das vespas da empresa.
"Durante um bom tempo, os burocratas queriam que os insetos seguissem as mesmas regras de registro e licença de um produto químico convencional."
A principal dúvida dos analistas dos órgãos técnicos que avaliavam a tecnologia da Bug era saber se a vespa, parasita natural das mariposas e lagartas que atacam as plantações, não poderia virar uma praga incontrolável e se espalhar pelos campos - uma preocupação natural nesse tipo de negócio, em que um descuido tem potencial para causar um desastre ambiental.
A dificuldade foi que, na maioria das vezes, os técnicos de repartições diferentes não se entendiam e repetiam várias vezes as mesmas exigências. "Fui chamado dezenas de vezes para entrevistas em que técnicos diferentes faziam praticamente as mesmas perguntas", afirma Carvalho.
"Para todos os questionamentos, respondíamos com estudos feitos em laboratórios da USP e com resultados obtidos no exterior com o uso de uma tecnologia semelhante." Mesmo com testes conclusivos em mãos, foi um calvário conseguir todas as autorizações de que a Bug precisava para ter sua atuação no mercado autorizada.
Os problemas burocráticos fizeram a Bug inverter a lógica normal dos negócios. Antes mesmo de vender no Brasil, a empresa tinha clientes em países como Suíça, Bélgica, Espanha, Alemanha, Canadá e Israel, para onde exportava ovos de vespa para ser utilizados no controle biológico de plantações.
Depois que os primeiros produtos foram lançados, em 2010, a empresa já conquistou 300 clientes. No período da safra, entre outubro e junho, as vespas respondem por 70% das receitas da empresa, que neste ano deve chegar a 4,5 milhões de reais, 40% mais que em 2011. "Poderíamos ter o dobro do faturamento se não fosse o peso da burocracia", diz Carvalho.
Turbulências no trajeto
Uma das principais características de pequenas e médias empresas inovadoras é fazer algo melhor, mais barato ou mais rapidamente que seus concorrentes tradicionais. Foi o que conseguiu a AGX Tecnologia, de São José dos Campos, no interior paulista. Na última década, a empresa desenvolveu veículos aéreos não tripulados - uma espécie de aeromodelo para uso profissional.
Equipados com câmeras fotográficas e softwares para analisar o solo, os aviõezinhos podem ser usados para diagnosticar problemas nas lavouras a tempo de corrigi-los e evitar prejuízos para os agricultores. Com seus aparelhos, a AGX pode cobrar menos que a maioria dos concorrentes, que precisam decolar com aviões de verdade, tripulados com pilotos e fotógrafos para fazer o mesmo serviço.
"Nossos preços são, em média, dez vezes menores que os praticados pelas empresas de imagens aéreas convencionais", diz Adriano Kancelkis, de 41 anos, dono da AGX.
Nos últimos dez anos, Kancelkis investiu 16 milhões de reais para desenvolver suas aeronaves. Mas ao tentar decolar para seu primeiro voo comercial, realizado pela AGX em 2006, o projeto deparou com um grande obstáculo. A empresa descobriu que não havia no Brasil uma legislação para regulamentar o uso de aeronaves não tripuladas - e, sem normas para regulamentar esse tipo de atividade, a AGX não seria autorizada a usar seus aviões para prestar serviços.
Foi um duro golpe no modelo de negócios que ele havia esboçado. "Minha intenção era produzir uma frota de aviões não tripulados e alugá-los para os clientes, gerando receitas recorrentes", afirma. "Só depois fui descobrir que isso não era previsto pela lei."
Desde então, o serviço criado pela AGX está numa espécie de limbo, o que diminuiu seu potencial de crescimento e forçou a empresa a reformular seus planos. No ano passado, as receitas da AGX foram de 4 milhões de reais, bem menos do que Kancelkis previa quando começou o negócio. "Pelas consultas de potenciais clientes que temos de recusar, poderíamos ter faturado 10 milhões de reais em 2011", diz.
Ocorre que, por causa das restrições legais, o negócio da AGX ficou limitado à venda das aeronaves. Pelas normas brasileiras, Kancelkis não pode usar as aeronaves da empresa para prestar serviços aos clientes. As aeronaves da AGX custam de 30.000 a 600.000 reais, dependendo do modelo - com 2 a 7 metros de envergadura, os aviões têm autonomia de voo de 30 minutos a 20 horas e são capazes de voar de 100 a 3.000 metros de altitude.
"O equipamento custa caro, e isso limita bastante nosso mercado", afirma Kancelkis. Seus principais clientes, hoje, são usinas de açúcar, plantadores de soja, grandes consultorias agrícolas e fabricantes de herbicidas e agrotóxicos.
Segundo Kancelkis, apenas as companhias de grande porte têm recursos para adquirir suas próprias aeronaves, enquanto a maioria das empresas deixa de ser atendida porque a AGX não pode colocar os aparelhos não tripulados no ar para uso comercial. "A legislação é hoje nosso principal entrave para o crescimento", diz Kancelkis.
Por ora, não há nenhum sinal de que as coisas possam mudar. Procurada por Exame PME, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) enviou uma nota informando que, por enquanto, a regulamentação do uso de veículos aéreos não tripulados continua em discussão, e vai permanecer assim pelo menos até que os Estados Unidos publiquem sua própria legislação sobre o assunto.
A justificativa é que a Anac pretende utilizar a legislação americana como modelo. Não há, por enquanto, nenhuma parceria entre os dois países para acelerar o processo, ainda que o próprio governo brasileiro tenha incentivado pesquisas para o desenvolvimento de novas tecnologias na área.
Estima-se que, até 2020, cerca de 50 países, entre eles o Brasil, deverão investir, juntos, mais de 94 bilhões de dólares no desenvolvimento da indústria desse tipo de equipamento.
"Há anos estamos trabalhando junto à Anac para regulamentar os veículos não tripulados e, até agora, nada foi feito", afirma Kalinka Castelo Branco, diretora operacional do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sistemas Embarcados Críticos. "Ninguém sabe nem sequer como classificar esses equipamentos", diz Kalinka. "Eles não são aeromodelos, porque não são brinquedos, nem podem ser chamados de aeronaves tripuladas."
O ozônio fora da lei
Ao criar a Brasil Ozônio, em 2003, o engenheiro Samy Menasce, de 62 anos, tinha um objetivo bastante claro em mente. Ele planejava aproveitar as oportunidades de expansão que surgiam na indústria de alimentos para beneficiar empresas como a sua, cujo negócio era fabricar equipamentos que utilizam o gás ozônio para combater a contaminação por micro-organismos.
"Eu acreditava que o ozônio podia tomar o lugar do cloro, que era muito utilizado pelas empresas para higienizar os alimentos", afirma Menasce.
Menasce baseava seus planos numa tendência que via surgir no mercado internacional. Na Europa e nos Estados Unidos, o ozônio já era utilizado desde 1982 nas indústrias de bebidas e alimentos. Parecia ser apenas uma questão de tempo para que o Brasil seguisse pelo mesmo caminho, criando restrições ao uso de cloro e estabelecendo normas específicas para sua substituição pelo ozônio.
Menasce só não contava que fosse demorar tanto. Durante seis anos, ele assistiu aos burocratas dos órgãos públicos baterem cabeça, sem encontrarem solução.
"Ninguém sabia exatamente como regulamentar o uso do ozônio", diz Menasce. O principal entrave era que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Agricultura não se entendiam sobre quem, enfim, tinha poder para autorizar o uso dos equipamentos da Brasil Ozônio na higienização dos alimentos.
Menasce precisou comparecer dezenas de vezes à sede da Anvisa, em Brasília, onde participou de longas e cansativas reuniões com fiscais e técnicos e elaborou um volumoso dossiê com dados de pesquisas realizadas no Brasil e no exterior sobre o uso do ozônio. Mesmo assim, a resposta só veio em fevereiro de 2009.
Por carta, a Anvisa informou à Brasil Ozônio que não é de sua competência liberar a utilização dos equipamentos que a empresa fabrica, pois trata-se de um gás não residual. Disse, ainda, que os testes apresentados pela Brasil Ozônio comprovavam a eficácia do ozônio no tratamento microbiano de alimentos.
Ao menos, a carta da Anvisa permitiu que a Brasil Ozônio fizesse algum progresso. O documento liberou o uso das máquinas fabricadas pela empresa, que custam de 18.500 a 35.000 reais, para higienizar frutas, verduras e legumes. A Brasil Ozônio já vendeu mais de 2 000 equipamentos.
Neste ano, a empresa prevê atingir um faturamento de 3 milhões de reais, o dobro do ano passado. "Teríamos crescido muito mais rapidamente se os órgãos competentes tivessem sido mais ágeis", afirma Menasce.
Menasce agora espera que seus equipamentos sejam liberados para a higienização de carnes, aves e peixes. "Há uma enorme demanda dos frigoríficos, que enfrentam restrições cada vez maiores no mercado externo para carnes tratadas com cloro", afirma ele. No momento, a empresa também trabalha no desenvolvimento de um aparelho que usa o ozônio para esterilizar equipamentos cirúrgicos.
Há protótipos em fase final de testes e, para ter sua venda liberada, Menasce prevê uma nova batalha. "Assim como aconteceu com a máquina para higienizar alimentos, também estamos enfrentando a demora da Anvisa para registrar e aprovar o novo equipamento", diz Menasce.
"Já protocolamos os primeiros pedidos de avaliação há três anos e meio, e ainda estamos esperando pelas primeiras respostas da agência."
Tudo isso, segundo o dono da Brasil Ozônio, consome tempo e dinheiro — ambos os ingredientes particularmente preciosos para as pequenas e médias empresas. "Só de recursos próprios, já investimos algo em torno de 4 milhões de reais em pesquisas, sem contar com os recursos financiados por órgãos de fomento, como Finep, Fapesp e CNPq", diz Menasce.
Para que serve o diamante?
Eis uma distorção típica do sistema tributário brasileiro: qual a diferença entre um par de brincos e uma broca usada por companhias petrolíferas para perfurar o chão? Para a legislação tributária, nenhuma — desde que ambos sejam, pelo menos em parte, feitos de diamantes.
Foi o que descobriram os sócios da CVD Vale, de São Carlos, no interior de São Paulo. Nos últimos oito anos, a empresa vem desenvolvendo equipamentos de perfuração revestidos com diamantes artificiais. O objetivo é criar uma broca dura e ao mesmo tempo resistente para atravessar a rocha e abrir caminho para a extração do petróleo.
Os donos da CVD esperavam que seus produtos tivessem uma tributação reduzida, como é comum na produção de máquinas e equipamentos - mas, ao entregar seus primeiros protótipos para testes, perceberam que não seria bem assim. "Aos olhos da legislação, diamante é pedra preciosa, mesmo que seja artificial, independentemente de seu uso", diz Demian Waldman, de 43 anos, presidente da CVD Vale.
O peso dos impostos sobre os diamantes aumenta os custos dos equipamentos — hoje, as brocas diamantadas têm preços de 15% a 20% maiores que as convencionais, que custam de 60 000 a120 000 reais.
"O mais lógico seria, no nosso caso, o diamante sintético ser classificado como insumo industrial, o que diminuiria a carga tributária e seu impacto no preço de nosso produto final", afirma Waldman. "Se isso acontecesse, nosso equipamento poderia ter custo semelhante ao dos equipamentos de perfuração tradicionais."
O caso da CVD mostra como a burocracia atrapalha o desenvolvimento de tecnologias estratégicas para o país. Criar equipamentos para extração de petróleo mais resistentes e a custos competitivos ajudaria a impulsionar a exploração das reservas do pré-sal.
Cada vez que um cilindro convencional precisa ser substituído, a plataforma de petróleo deixa de operar por até dois dias. A cada 24 horas de interrupção, o prejuízo é estimado entre 500.000 e 1 milhão de reais.
Para levar o projeto adiante, a CVD tem um acordo com a Petrobras. Responsável por 80% do consumo de brocas de perfuração de óleo e gás no país, a estatal assumiu os custos dos testes dos equipamentos em campo, que já consumiram mais de 1 milhão de reais em investimentos."Com custos menores, poderíamos acelerar o desenvolvimento", afirma Waldman.
Enquanto espera concluir o desenvolvimento das brocas para petróleo, a CVD sobrevive fornecendo equipamentos para outros tipos de cliente. Em 2011, a empresa faturou 1,5 milhão de reais — boa parte disso veio da venda de brocas odontológicas com ponta de diamante para consultórios dentários.
As brocas para a área de petróleo e gás ainda estão em fase final de teste. Por enquanto, geram dinheiro apenas com a venda dos protótipos. Com o crescimento da cadeia de petróleo e gás no Brasil, Waldman estima que só a Petrobras consumirá 2.000 brocas por ano. “Quando esse mercado explodir, vamos precisar ter preços competitivos", diz ele. "Ou então correremos o risco de perder mercado para outras tecnologias."