Sebastião Medeiros Ferreira: Por meio de fornecedores chineses, a fabricante de bicicletas Ciclipeças conseguiu reduzir em cerca de um mês o tempo de desenvolvimento de novos produtos. O custo dos projetos caiu 30% (Luis Morais)
Da Redação
Publicado em 31 de maio de 2012 às 15h36.
São Paulo - Nos últimos anos, o gaúcho Carlos Henrique Kray, de 45 anos, tem empreendido uma longa jornada em busca de custos mais baixos para sua empresa, a fabricante de calçados femininos Strada Shoes, de Campo Bom, no interior do Rio Grande do Sul.
Em 2007, Kray seguiu o exemplo de muitos calçadistas gaúchos que, desde a década de 90, vinham transferindo sua produção para Dongguan, no litoral sul da China.
"Na época, os chineses pagavam salários até sete vezes menores do que meus trabalhadores recebiam no Rio Grande do Sul", diz ele. "Não dava para competir, e minha única chance de garantir a sobrevivência da empresa era me juntar aos chineses."
Desde que começou a fazer negócio com fornecedores da China, Kray aproveitou os custos baixos para transformar a Strada Shoes numa empresa global. No ano passado, suas receitas chegaram a 105 milhões de reais, 15% mais que em 2010.
Cerca de 60% do faturamento é obtido com a venda de três marcas próprias de calçados femininos no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos - os 40% restantes vêm da produção de sapatos com marcas de redes de varejo americanas, como GAP e Abercrombie&Fitch. Hoje, 80% da produção da Strada Shoes está na China.
Recentemente, no entanto, Kray tem visto a história se repetir. Desde o seu desembarque em Dongguan, o custo para produzir nos principais centros industriais chineses não parou de aumentar.
Um estudo da consultoria Mercer mostra que, de 2008 para cá, o custo médio de um trabalhador chinês — o que inclui salários, benefícios e encargos tributários — aumentou mais de 40%. Há pelo menos três anos, Kray começou a procurar fornecedores em cidades cada vez mais distantes.
"Mão de obra é o principal componente de meus custos", diz ele. "Estou sendo empurrado para regiões ao norte, rumo ao interior, onde os salários não estão subindo tanto."
A trajetória da Strada Shoes é um bom exemplo das transformações que estão acontecendo na China. O país que hoje é a fábrica do mundo pode ser visto por empresários de muitos lugares - incluindo o pouco competitivo Brasil - como inimigo ou como aliado. Depende do lado em que se está.
Para quem decide brigar de frente com os preços baixos e a escala de produção altíssima, costuma ser o inferno na Terra. Para quem busca alternativas, ainda é um grande fornecedor e, agora, começa a aparecer como comprador de alguns produtos. A China rapidamente está enriquecendo e mudando seu perfil de produção e de consumo. Alguns indicadores:
• Em 2011, a renda média das famílias que vivem nos centros urbanos cresceu 25%, segundo um levantamento do governo chinês. Desde 2009, 7 milhões de pessoas passaram a integrar a classe média, formada hoje por quase 500 milhões de chineses.
• Com mais dinheiro no bolso, os chineses estão consumindo mais produtos ocidentais. Segundo dados do governo, entre 2009 e 2011, as compras chinesas de manufaturados aumentaram 60%, chegando a 1,1 bilhão de dólares no ano passado, e começa a se desenhar um novo perfil de pauta de importações do país, ainda amplamente dominada por produtos primários, como minérios e alimentos. No mesmo período, as exportações brasileiras de produtos manufaturados para a China cresceram 42%, de acordo com as estatísticas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
• Outrora vista como uma fonte de produtos baratos, geralmente copiados de grandes marcas internacionais, a China é cada vez mais inovadora. De 2010 para 2011, o país subiu da 43a para a 29a posição no ranking de nações mais inovadoras do estudo The Innovation Index, elaborado pela Organização Internacional de Propriedade Industrial, agência ligada à ONU, o que garantiu a primeira colocação entre os países do Bric.
Adaptar-se à nova realidade chinesa é um desafio para empreendedores como Kray, da Strada Shoes. "Tenho clientes globais, e qualquer pressão nos custos pode ser fatal para meus negócios", diz ele.
Por isso, a principal missão dos 30 funcionários que a Strada Shoes mantém em seu escritório em Dongguan é procurar novos fornecedores em rincões do território chinês. "Ainda há muito espaço para aumentar a produção em fábricas do interior chinês", diz Kray. "Mas vai ser preciso ir cada vez mais longe para manter a mesma competitividade."
Deslocar a produção para pontos longínquos da China é uma tendência dos empreendedores em busca de fornecedores de produtos básicos.
Nos últimos anos, o governo tem incentivado a instalação das indústrias que exigem mão de obra mais intensiva no interior do país - o objetivo é deter a migração de milhões de trabalhadores, que saíam do campo para trabalhar no leste da China. Nas regiões mais desenvolvidas, o desafio chinês, agora, é intensificar a transferência tecnológica.
Foi basicamente essa exigência - levar novas tecnologias para a China - que o paulista Hélio Tatsuo Yostsui, de 43 anos, encontrou quando começou a negociar com fornecedores chineses em 2007. Ele é dono da empresa de filtros e purificadores de água Hoken, de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo.
"Os fornecedores mais confiáveis sempre me faziam propostas que envolviam troca de conhecimento", diz Yostsui. "Eles diziam que, além de produzir para mim, também queriam aprender alguma coisa."
Para fechar contratos mais vantajosos, Yostsui se comprometeu a criar uma espécie de intercâmbio entre os chineses e os demais fornecedores de peças para os filtros de sua empresa, entre os quais há companhias americanas e alemãs.
"Em troca da ajuda, os chineses concordaram em abrir mão de atender outras empresas brasileiras", afirma Yostsui. Hoje, 70% dos filtros e purificadores da Hoken terminam de ser montados na China. No ano passado, a Hoken faturou 120 milhões de reais, 10% mais que em 2010.
Não é que os fornecedores de baixa qualidade, que não cumprem prazos nem dão a mínima para a garantia dos produtos, tenham desaparecido da China num passe de mágica. Hoje, esse tipo de indústria da velha China convive com fábricas capazes de fornecer para as principais marcas do mundo.
"Nos últimos anos, os investimentos de empresas multinacionais na China contribuíram para que o país desse um salto em seu modelo de produção", diz Michael Thorneman, diretor da consultoria Bain&Company na China. "Além dos tradicionais centros de manufaturados, já começam a despontar alguns polos de tecnologia."
Em muitos casos, os chineses estão deixando de ser meros vendedores de componentes para fornecer projetos de novos produtos. Um exemplo é o do empreendedor potiguar Sebastião Medeiros Ferreira, de 51 anos, dono da Ciclipeças, de Parnamirim, no Rio Grande do Norte. No ano passado, a empresa faturou 26,7 milhões de reais, um crescimento de 12% em relação a 2010.
Durante sete anos, seu negócio era importar peças chinesas e distribuí-las por pequenas oficinas de manutenção do Nordeste brasileiro. Em 2010, Ferreira decidiu levar o negócio a outro patamar - começou a encomendar projetos de bicicletas para seus fornecedores e transformou a Ciclipeças numa montadora.
"Os chineses são projetistas muito ágeis", diz ele. "Em média, demoro menos de um mês para receber os projetos que encomendo, com todas as especificações." Foi assim quando Ferreira precisou encomendar um modelo de bicicleta com uma corrente mais resistente, capaz de suportar as estradas de chão esburacadas que os clientes das cidades do interior nordestino enfrentam no dia a dia.
"O custo do projeto foi 30% menor do que se eu mandasse fazer aqui no Brasil", afirma. Anualmente, a Ciclipeças coloca até quatro novos modelos de bicicleta no mercado.
Há anos, empresas de todo o mundo transformaram a China numa fornecedora prioritária. A grande novidade é a possibilidade de vender produtos acabados para os chineses, algo impensável até pouco tempo atrás e que hoje depende do grau de diferenciação que as empresas brasileiras podem oferecer.
"Esse é um bom momento para que empresas de pequeno e médio porte comecem a vender seus produtos no mercado chinês", diz Michael David, chefe do escritório do Boston Consulting Group em Xangai. A China é hoje uma estrela ascendente nos negócios da vinícola Miolo, de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha.
A empresa entrou no mercado chinês há dois anos. Desde então, abriu duas lojas e pôs seus vinhos e espumantes na adega de alguns dos restaurantes mais sofisticados de Xangai. (É bom lembrar: a China - ainda - não produz vinhos em larga escala.)
Recentemente, a Miolo incluiu três de seus vinhos no cardápio do restaurante The House of Roosevelt, uma espécie de ponto de encontro de ricos industriais emergentes, membros da cúpula do Partido Comunista e executivos estrangeiros expatriados. "Temos grandes ambições na China", diz o gaúcho Darcy Miolo, de 71 anos, fundador da vinícola.
O que Miolo mais quer hoje é tornar seus produtos conhecidos no mercado chinês, que no ano passado se tornou o quinto maior consumidor de vinhos do mundo, superando a Grã-Bretanha no ranking da International Wine Research. Seu objetivo é aproveitar o momento para se estabelecer no país - e colher os frutos da iniciativa no futuro.
"O novo consumidor chinês ainda está se acostumando a comprar artigos antes considerados muito caros ou de difícil acesso", diz a especialista em classe média chinesa Helen Wang, autora do livro The Chinese Dream: the Rise of the World’s Largest Middle Class and what it Means to You ("O sonho chinês: a ascensão da maior classe média do mundo e o que isso significa para você", numa tradução livre).
"Empresas que se estabelecerem na China agora poderão se tornar conhecidas a tempo de aproveitar o aumento do consumo interno que ainda está por vir."
Em 2011, o mercado chinês respondeu por um sexto das exportações da Miolo, que chegaram a 7% dos 120 milhões de reais em receitas. Nos próximos oito anos, o objetivo da empresa é obter no exterior um terço de seu faturamento.
"Hoje, a China é nosso terceiro maior mercado fora do Brasil, atrás de Holanda e Inglaterra", afirma Miolo. "Até 2020, a maior parte das nossas exportações deverá seguir para a China."
O primeiro passo da Miolo em território chinês foi divulgar a marca entre o público que entende de vinhos. Em 2010, fechou contrato com uma importadora chinesa, que passou a organizar eventos para chefs e sommeliers dos principais restaurantes em centros como Xangai, Pequim e Hong Kong.
O crescente investimento das empresas chinesas no exterior é outro aspecto da prosperidade da China que começa a se refletir no Brasil. Em 2010, os chineses anunciaram investimentos da ordem de 17 bilhões de reais no país, de acordo com um levantamento da Sociedade Brasileira de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica, com dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
"Muitas dessas empresas estão interessadas em áreas como energia e mineração ou visam aproveitar o potencial do consumo interno brasileiro", diz Sérgio Amaral, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China.
A chegada desses competidores pode ser interessante para donos de pequenas e médias empresas preparadas para se estabelecer como fornecedores de grandes cadeias de produção. Um exemplo disso é o da operadora logística Transpax, de Porto Real, no Rio de Janeiro.
Até recentemente, seu negócio era transportar automóveis em caminhões-cegonha. Em 2010, os sócios da empresa, os empreendedores Jocimar Souza, de 42 anos, e João Gualberto dos Santos, de 52, entraram numa concorrência para prestar serviços de logística para a Sany, fabricante chinesa de guindastes e máquinas pesadas, que está investindo 200 milhões de dólares na construção de uma fábrica em Jacareí, no interior de São Paulo.
No começo, a Transpax era encarregada de levar as máquinas chinesas que chegavam ao porto de Vitória, no Espírito Santo, até a cidade de São José dos Campos, no interior paulista, onde a Sany tem uma unidade de montagem de equipamentos. "Investimos quase 4 milhões de reais para comprar carretas e adaptá-las para o transporte das máquinas", afirma Gualberto.
A nova frota vai ser ainda mais importante a partir de agora, quando a Sany dará mais um passo em seu projeto de expansão no país. "Até o fim de 2012, deveremos assumir todas as entregas de equipamentos aos clientes aqui no Brasil", diz o gerente de logística da Sany, Wladimir Rodrigues. "A Transpax deve desempenhar um papel decisivo nesse processo."
A expectativa dos sócios é que o faturamento triplique nos próximos meses. “Nosso objetivo é transportar 40% de todas as máquinas vendidas pela Sany no Brasil”, diz Souza. No ano passado, os contratos com a Sany representaram 20% do faturamento total da Transpax.
Em grande medida, os sócios apontam os chineses como os grandes responsáveis pelo crescimento de 35% nas vendas na comparação com o ano de 2010. "Sem eles, cresceríamos no máximo 20%", diz Souza.