Canteiro de obras do Parque Olímpico, em Londres: rumo a uma vitória com folga (.)
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
Em 2004, ao saber que a África do Sul tinha sido escolhida para sediar a Copa do Mundo de 2010, o bispo Desmond Tutu, uma das figuras do país com maior prestígio internacional, prometeu à direção da Fifa que a organização do evento, o primeiro em solo africano, seria "uma passagem aérea para o paraíso". Um ano depois, Londres foi eleita para sediar a Olimpíada de 2012. Ken Livingstone, então prefeito da cidade e famoso por declarações controversas, foi comedido. Ganhamos porque temos um plano rigoroso, disse ele. "Mesmo já tendo algumas instalações construídas, vamos começar a trabalhar amanhã mesmo." Hoje, em ambos os países, é possível observar máquinas e operários em movimento para concluir os preparativos dos eventos.
Há diferenças, porém. Faltando seis meses para o jogo inaugural da Copa, os africanos correm contra o relógio e não se sabe se conseguirão resolver seus problemas, em especial os de infraestrutura. Enquanto isso, em Londres, as providências estão adiantadas em relação ao cronograma e deverá haver tempo de sobra não apenas para concluir mas também para testar, e eventualmente corrigir, a infraestrutura da Olimpíada. Mesmo considerando o desnível entre uma potência econômica e um país emergente, há uma diferença-chave a ser notada entre os dois modelos de execução - a gestão. A comparação entre as duas organizações soa como uma poderosa advertência para o Brasil definir como colocar de pé tanto a Copa de 2014 quanto a Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016. Dentro de três anos, às vésperas da Copa, estaremos mais próximos da tranquilidade de Londres ou do sufoco da África do Sul?
Para chegar à situação confortável atual, os britânicos não só começaram a trabalhar logo como definiram um modelo de coordenação-geral com poder efetivo para tocar o evento. Em março de 2006, o governo do Reino Unido e a prefeitura de Londres criaram a Olympic Delivery Authority (ODA), órgão público dedicado a cuidar do planejamento e da construção das instalações esportivas e da infraestrutura necessária. A ODA tem formato de empresa privada, contando com um conselho de administração e uma diretoria executiva, cujos membros são passíveis de demissão. Nasceu com tempo de vida calculado: ao final da Olimpíada será dissolvida, impedindo que se torne um cabide de empregos. Compra de terrenos, contratos de serviços de construção e desenvolvimento de um plano de transportes são algumas de suas atribuições. Para a execução propriamente dita, a ODA recorre a fornecedores privados, por meio de licitações. Empresas de consultoria e auditoria foram contratadas para a fiscalização independente das obras e das contas.
Todos os pagamentos feitos pelo órgão, assim como o status de cada obra, são divulgados em um site na internet. "Produzimos relatórios diários com detalhes sobre progresso dos custos, do prazo, do risco e da sustentabilidade dos projetos", diz Jacqueline Rast, vice-presidente da empresa americana de engenharia CH2M Hill, contratada pela ODA como espécie de supervisora das obras de Londres. A mesma empresa presta serviço semelhante na construção do segundo canal do Panamá, entre o Atlântico e o Pacífico. "Em eventos desse tamanho, é extremamente importante que os governos tenham informação cedo para tomar decisões continuamente e com rapidez." A CH2M Hill atua em consórcio com as britânicas Lang O'Rourke e Mace. O consórcio assinou um contrato avaliado em 190 milhões de dólares, e parte de seu pagamento depende do desempenho no serviço.
Um dos segredos do modelo inglês foi começar com planejamento exaustivo, que consumiu os dois primeiros anos de trabalho. Orçamentos, projetos e preparação de licitações saíram nesse período. "No começo, éramos criticados pela imprensa, que dizia não entender por que demorávamos tanto para construir a estrutura", diz Allison Nimmo, diretora da ODA. "Mas sabíamos que o desafio de montar a estrutura dos Jogos era tão complexo e visível globalmente que não podíamos fazer nada com pressa."
Em paralelo ao planejamento, começou a limpeza e a preparação do terreno que sediará o Parque Olímpico, em Lower Lea Valley, uma área antes degradada na região leste de Londres. A escolha de um bairro habitado por imigrantes pobres vindos da Ásia e da África tem o objetivo de promover a inclusão social. Moradores da região foram recrutados e capacitados, o que deverá ajudá-los a se sustentar após o fim das obras - aí começa o legado da Olimpíada. Ainda na primeira etapa, decidiu-se que os projetos não poderiam ser tocados todos ao mesmo tempo. Foi fixada uma ordem para que o comitê organizador não perdesse o controle.
O resultado é que, hoje, 56% das obras já estão prontas. A perspectiva é que tudo seja entregue até meados de 2011, um ano antes da Olimpíada, com tempo de folga para testes prévios. Nos canteiros de obras trabalham 7 000 operários. O número deverá crescer para 10 000 em 2010, no pico dos trabalhos. Outro trunfo de Londres é a sustentabilidade, tanto ambiental quanto financeira. Para evitar que os estádios olímpicos se convertessem em elefantes brancos após o evento - como ocorreu com o Engenhão, construído para o Pan do Rio e hoje subutilizado -, as arenas londrinas terão arquibancadas em parte desmontáveis. É o caso do Estádio Olímpico, projetado para 80.000 lugares que, posteriormente, serão reduzidos para 25.000.
Em tempos de turbulência econômica, para não estourar o orçamento, fechado em 15 bilhões de dólares, a organização foi forçada a cortar custos. A última tesourada atingiu a arena de peteca, que não mais será feita. Apesar da chiadeira da federação internacional da modalidade, as partidas serão realizadas no estádio de Wembley. "Um de nossos desafios é fazer remanejamentos orçamentários que não comprometam a integridade dos Jogos", diz Heather Hancock, sócia da consultoria Deloitte, que presta serviços à ODA em troca da exibição da marca como patrocinadora.
Na África do Sul, o cenário é bem diferente. O governo corre para compensar atrasos na construção de estádios e hotéis, na ampliação de aeroportos e na conclusão de outras melhorias em transportes, como a entrega de um trem rápido entre duas das maiores cidades do país, Pretória e Johannesburgo. Tais percalços derivam de falhas no planejamento e na realização dos preparativos para a Copa. De saída, não foram levadas em conta as carências sul-africanas, como a falta de capital humano - de engenheiros a contadores -, e também de parceiros privados locais, como consultorias e construtoras capacitadas.
Teoricamente, a Copa de 2010 teve um planejamento com metas e prazos claros, como o que ditava que todos os dez estádios seriam entregues até outubro deste ano. Na prática, por falta de uma estratégia que conciliasse os interesses conflitantes das dez cidades-sede, que disputavam recursos e mão de obra qualificada, dois estádios - o Peter Mokaba, na cidade de Polokwane, e o Mbombela, em Nelspruit - ainda não estão prontos. Agora, uma legião de 10.000 operários, que fez greve no mês de julho por aumento de salários, se reveza em turnos de até 12 horas. Como era de prever, o orçamento estourou. Em 2004, estimava-se que chegasse a 400 milhões de dólares. Depois, ele foi fechado em 2 bilhões de dólares, mas devido a custos de última hora ainda não existe um número final.
Outros pontos preocupantes são a acomodação e o deslocamento dos 500.000 turistas estrangeiros esperados. Os organizadores já admitem que boa parte deles fique em universidades e pousadas em pontos remotos do país. "Teremos acomodações suficientes para o público, mas nem sempre nos lugares certos", disse Dany Jordaan, presidente da comissão organizadora da Copa de 2010, ao jornal britânico The Guardian. "Para os jogos mais importantes vamos ter de transportá-los de lá pra cá." Para tanto, o governo sul-africano promete uma nova frota de 1.000 ônibus e 200 aviões, ainda não totalmente entregue. O país tem graves problemas de logística.
Nas grandes cidades, a população pobre depende de vans que circulam poucas vezes ao dia. Neste ano, o caos foi tamanho que antes da Copa das Confederações, a Fifa cogitou transferir o evento para outro lugar, possivelmente os Estados Unidos. Não foi necessário. A África do Sul conseguiu escapar do vexame sofrido pela Colômbia nos anos 80. Em razão de problemas como a guerrilha e uma grave crise econômica, a Colômbia desistiu da Copa de 1986, realizada no México. Mas a África do Sul ainda enfrenta outros riscos, como a violência urbana - são mais de 18 000 assassinatos por ano - e os apagões. Durante a Copa, em casos de emergência, a Eskom, concessionária de energia local, acionará geradores a diesel.
Certamente, grande parte das vantagens de Londres tem a ver com o desenvolvimento econômico e social do Reino Unido, assim como os tropeços sul-africanos são típicos de um país emergente. Seja como for, tirar lições dos erros e acertos alheios pode ser o caminho para superar entraves históricos e produzir eventos não apenas capazes de encher os olhos do mundo como também de gerar benefícios duradouros para o país. "A grande diferença entre a experiência londrina e a sul-africana é que os britânicos conceberam a Olimpíada para ir além de um mero evento esportivo," diz Paulo Resende, professor de gestão de infraestrutura da Fundação Dom Cabral, de Minas Gerais. Até agora, no entanto, ao menos para organizar a Copa de 2014, cujo prazo começou a contar há dois anos, o Brasil não deu sinal de que esteja seguindo o exemplo londrino.
Bola dentro e bola fora
A estratégia de gestão da Olimpíada de Londres em 2012 é considerada exemplar. Por outro lado, desde que a Colômbia teve uma Copa cancelada, nos anos 80, até as agruras enfrentadas pelo Pan do Rio de Janeiro de 2007 e também pela África do Sul, é possível observar uma série de erros de organização.
O bom exemplo londrino...
1 - Comando: Logo após a escolha de Londres, os britânicos constituíram uma organização, a Olympic Delivery Authority, para comandar todo o processo;
2 - Cronograma: a organização dividiu os sete anos até o evento em três fases. A primeira, de dois anos, foi dedicada ao planejamento exaustivo, além de licitações e da infraestrutura da futura Vila Olímpica. A segunda, de quatro anos, compreende a construção de estádios, a montagem de sistemas de TI e a melhoria da infraestrutura urbana. Sobra um ano só para testes e treinamento da equipe;
3 - Orçamento: o orçamento, de 15 bilhões de dólares, não pode mais crescer. Em caso de imprevistos que aumentem os custos num setor, é preciso fazer cortes em outras áreas;
4 - Racionalidade: para evitar elefantes brancos, decidiu-se erguer arenas semi-desmontáveis. O Estádio Olímpico, para 80 000 espectadores, será depois reduzido para 25 000 lugares permanentes;
5 - Transparência: a organização conta com um comitê de auditoria, que checa e publica permanentemente os gastos realizados. Além disso, para garantir a lisura, o comitê toma decisões independentes daquelas de caráter executivo;
6 - Sustentabilidade: com a ambição de fazer o evento esportivo mais sustentável da história, Londres dedica 5% do orçamento ao legado ambiental para a cidade, que ganhará como saneamento do rio Lea e a construção de um parque.
...E os tropeços de outros megaeventos
1 - Instabilidade política e econômica: após ter ganho a indicação para a Copa de 1986, a Colômbia, em razão de conflitos com guerrilheiros e traficantes de drogas, além de sérios problemas fiscais, jogou a toalha, reconhecendo que não poderia cumprir as exigências da Fifa. O campeonato foi realizado no México;
2 - Falta de planejamento: essa costuma ser uma mazela típica de eventos em países emergentes. A falta de planejamento ameaçou a realização da Olimpíada de Atenas, o Pan carioca e agora assombra a África do Sul. A ausência de um projeto consistente, pensado antes de qualquer obra ser iniciada, está na origem dos problemas que se seguem;
3 - Estouro do orçamento: o Pan do Rio ficou marcado por terminar com gasto de 3,6 bilhões de reais, dez vezes a previsão inicial. Na África do Sul, o orçamento, de 2 bilhões de dólares, já estourou. O custo dos 11 estádios subiu até 400%. As causas vão da inflação dos materiais a aumentos para 70 000 operários, que fizeram greve em julho;
4 - Corrupção: a um custo de 40 bilhões de dólares, a Olimpíada de Pequim, em 2008, é apontada também como uma das mais afetadas pela corrupção. Em 2006, o construtor-chefe, Liu Zhihua, foi preso, acusado de desviar 1 milhão de dólares;
5 - Desperdício: sede das provas de atletismo no Pan, o estádio do Engenhão, que custou 380 milhões de reais, é um típico elefante branco: está subutilizado e não gera receita nem sequer para manter sua operação.