Flávia de Almeida, da Península, sobre investimento em startups: “Alguns fundos têm sido muito arrojados, beirando à irresponsabilidade” (Germano Lüders/Exame)
Carolina Riveira
Publicado em 19 de dezembro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 19 de dezembro de 2019 às 09h00.
Quando o magnata do varejo Abilio Diniz convidou Flavia Almeida para trabalhar em uma de suas empresas, há cerca de 15 anos, ela disse não.
Flavia já tinha uma carreira sólida como sócia na consultoria McKinsey Vários anos depois, ela voltou a dizer não a Diniz antes de finalmente aceitar uma proposta em 2013. Flavia passou a trabalhar na family office do empresário, a Península Participações. Ela lembra que Diniz disse: “Então, Flavia, agora você está pronta para ser feliz?”
Se a felicidade pode ser medida pela ascensão na carreira, Flavia está exultante hoje. Flavia, que assumiu o posto de presidente da Península em agosto, é a primeira mulher a comandar uma grande family office no Brasil. A Península administra US$ 3,7 bilhões de Diniz e sua família, cuja fortuna foi construída no negócio de varejo fundado pelo pai do empresário.
Flavia, 52 anos, tem uma longa carreira trabalhando junto aos principais tomadores de decisão nas empresas, o que a ajudou a conquistar a confiança de Diniz, de 82 anos. “Administrar é colocar as pessoas certas nos lugares certos”, disse Diniz em mensagem por WhatsApp. “Flavia alcançou a posição de presidente porque é muito competente, preparada e sólida em sua liderança.”
Um dos empreendedores mais polêmicos do Brasil e autor de duas autobiografias best-sellers, que são um misto de autoajuda e estratégia de gestão, Diniz esteve no centro de duas grandes batalhas corporativas. Uma delas foi com Jean-Charles Naouri, do Groupe Casino, uma disputa que terminou em 2013 quando Diniz perdeu o controle da rede de supermercados Pão de Açúcar, fundada pelo pai em 1948. Após um embate com investidores da processadora de alimentos BRF, Diniz renunciou à presidência do conselho da empresa em 2018.
Flavia, que fez mestrado na Harvard Business School, tenta minimizar a reputação de chefe temperamental de Diniz. “O Abilio é um cara que se reinventou muito ao longo do tempo, e isso é uma das coisas que eu mais admiro nele”, diz em entrevista no escritório da Península, em São Paulo. “Mesmo na BRF, que foi uma crise na qual eu participei ativamente e ajudei a solucionar, eu vi o Abilio tentando ser um conciliador. Que bom que a gente chegou a um nome de consenso sobre uma pessoa para substituir o presidente, e que bom que a gente está fazendo dar certo.”
Embora Diniz não seja mais presidente do conselho de administração da BRF, Flavia ainda tem um assento representando a Península, o sexto maior acionista, com uma participação de 3,9%, segundo dados compilados pela Bloomberg. Ela também senta ao lado de Diniz no conselho do Carrefour SA, no qual a Península é o terceiro maior acionista, segundo a varejista francesa.
Além da BRF e do Carrefour, os investimentos da Península incluem um vasto portfólio de imóveis comerciais, uma fazenda de orgânicos administrada por um dos filhos de Diniz e uma participação no Mind Lab, empresa especializada em tecnologia educacional. A Península também tem uma parceria com Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, com uma participação na rede Benjamin a Padaria.
“Flavia tem uma visão de longo prazo de uma companhia, uma visão estratégica; não é guiada por resultados de curto prazo”, diz Patricia Moraes, responsável pela empresa de private equity da família Trajano, que controla a varejista Magazine Luiza.
Patricia conheceu Flavia por meio de amigos em comum na McKinsey. Flavia, que trabalhou na McKinsey de 1989 a 2003, foi a primeira mulher a se tornar sócia da consultoria na América do Sul. Ela se aproximou de Patricia quando foi nomeada diretora da Fundação Bienal de São Paulo. Naquela época, o marido de Patricia estava investindo em pinturas e esculturas. Um dos traços que Patricia destaca em Flavia é seu esforço para promover a diversidade e os direitos das mulheres.
Nascida em São Paulo, Flavia iniciou a carreira como trainee na McKinsey. Depois de mais de uma década, assumiu o posto de presidente na Participações Morro Vermelho, holding da família Camargo Corrêa, que acumulou fortuna no ramo da construção. “Os projetos que eu mais gostei na minha vida foram quando eu trabalhei com a cabeça de dono, com a pessoa que ia decidir”, diz.
Desde 2004, Flavia já ocupou assentos em conselhos de administração de mais de 20 empresas de capital aberto ou fechado, em muitas delas como a primeira ou a única mulher nesse papel. Não é de surpreender que a desigualdade salarial entre homens e mulheres e piadas sexistas estejam entre os desafios enfrentados por ela em uma indústria dominada por homens.
Flavia admite que houve situações nas quais, como a única mulher em uma reunião, se sentiu desrespeitada a ponto de precisar ir ao banheiro para se recompor. Até isso pode ser um desafio, diz Flavia: em um dos primeiros conselhos de administração dos quais participou, não havia banheiro feminino.
Ela diz que tenta reagir com senso de humor, diplomacia e muito trabalho. “Eu vim de uma família na qual estudar e trabalhar era uma ética importante”, diz Almeida. Casada há 29 anos, ela diz que não teria conseguido criar os dois filhos sem a ajuda do marido, Rodrigo Ferreira Leite, que é publicitário.
Na Península, Flavia ajudou a criar uma equipe na qual mais da metade dos 164 funcionários são mulheres. Mas ela se opõe a cotas que determinam um porcentual de mulheres em um conselho de administração. “Uma mulher deve ter um cargo importante em uma empresa porque merece”, diz Flavia. “Acredito na meritocracia.”
Flavia, que fala fluentemente francês, espanhol, inglês e português, entrou na Península com a missão de estruturar o negócio de investimentos diretos, que incluem private equity. Ela diz que está aberta a novas tecnologias, mas olha as startups com cautela. “A Península sim olha inovação, sim quer participar de aceleração de crescimento, mas com responsabilidade”, diz Flavia. Embora a tecnologia esteja mudando muitos setores, “isso não quer dizer que duas pessoas com uma ideia e um PowerPoint” sejam uma startup legítima, afirma.
Flavia diz que vê uma bolha na qual alguns dos maiores investidores do mundo estão despejando bilhões de dólares. “A gente tem um nível de unicórnios totalmente desproporcional para o tamanho da nossa economia”, avalia. “O dinheiro que administramos aqui é o dinheiro que nossos acionistas suaram muito para ganhar. Não dá para a gente brincar de bolha.”
Ela tem evitado inúmeras startups de tecnologia na região, que caíram no gosto de investidores como SoftBank Group Corp. e Goldman Sachs Group Inc. Por outro lado, a Península não abre mão de suas participações na BRF e no Carrefour.
Flavia não se sente tentada a seguir a multidão, apesar dos US$ 2,6 bilhões em venture capital investidos em startups latino-americanas no primeiro semestre de 2019. O valor é o triplo do investido no mesmo período do ano anterior, segundo a Latin American Private Equity & Venture Capital Association.
O último investimento em private equity da Península ocorreu há três anos, quando comprou uma participação no site de comércio eletrônico de vinho Wine.com.br. “Alguns fundos têm sido muito arrojados, beirando à irresponsabilidade”, diz Flavia. “Olhar um negócio e entender se ele tem viabilidade econômica é fundamental.”
O SoftBank investiu mais de US$ 3,5 bilhões em novas empresas de tecnologia na América Latina desde 2017, segundo dados compilados pela Bloomberg. Goldman Sachs, Sequoia Capital e Tencent Holdings também estão investindo em startups na região.
Nos últimos cinco anos, o Brasil oscilou entre recessão e baixo crescimento econômico em meio à turbulência política marcada por um impeachment, um governo transitório de dois anos e a chegada de Jair Bolsonaro à presidência em uma eleição profundamente dividida. A Península vendeu algumas participações no período.
Os desinvestimentos incluíram a empresa de educação Anima Holding, e a Península reduziu sua posição no Atacadão, unidade do Carrefour no Brasil. Ao mesmo tempo, a family office aumentou a participação na operação global do Carrefour. Houve especulações de que Diniz queria assumir o controle da empresa francesa, mas isso nunca aconteceu.
A Península administra seus próprios fundos multimercado e avalia se vai abrir captação a investidores externos em meio ao boom da indústria no Brasil. A family office também investe em fundos oferecidos por gestoras globais. O Instituto Península, braço social da família, investe em iniciativas voltadas à educação e ao esporte, paixões da filha de Diniz, Ana Maria, e de seu filho João Paulo.
Flavia diz que a família Diniz quer “construir uma agenda de investimentos positivos” para o Brasil. “Era muito mais fácil pegar esse dinheiro, de uma família como essa, e botar em gestores de fundos em Nova York, em meia dúzia de caras”, afirma. “Mas a família está comprometida em transformar o Brasil através do empreendedorismo.”