JUAREZ VALDUGA: “ainda há muito preconceito com o vinho brasileiro” / Divulgação
Da Redação
Publicado em 16 de julho de 2016 às 08h58.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h56.
Jardel Sebba
Pouco conhecido no próprio país, subjugado nas prateleiras ao lado de seus pares sul-americanos, ignorado por boa parte dos especialistas, o vinho brasileiro tem uma história relativamente curta que combina alguma tradição, muita vontade e pouca ação coletiva. Alguma tradição porque a origem de sua principal região produtora, a Serra Gaúcha, remonta aos imigrantes italianos do fim do século 19, ainda que as vinícolas como empresas só tenham se consolidado nos últimos trinta anos. Muita vontade porque o entusiasmo e a dedicação das empresas, quase todas familiares, em torno do vinho produzido aqui estão mais relacionados à paixão do que propriamente a planos de investimento a médio e longo prazo e de desenvolvimento como indústria. E pouca ação coletiva porque, apesar de colecionarem um número expressivo de entidades de classe, a indústria demonstra saber quais são os entraves para o seu desenvolvimento, mas mostra pouca capacidade de articulação para resolvê-los. Diante desse panorama, o vinho brasileiro tem futuro?
Para olhar em perspectiva, primeiro é preciso entender o contexto. De Minas Gerais ao Paraná, no Brasil faz-se vinho onde menos se espera. Santa Catarina, por exemplo, busca se desvencilhar da associação com o Rio Grande do Sul. Da centenária Adega Maziero, em Jundiaí, interior de São Paulo, saiu o vinho que esteve no altar do Papa Francisco na missa celebrada em Aparecida, em 2013. Mas são apenas duas as regiões que indicam caminhos para essa produção. A Serra Gaúcha, pela tradição, pelo clima, pela expertise, pelo volume produzido e principalmente pela excelência de alguns de seus produtos, revelada nos últimos anos, é a referência. Em diferentes regiões do Rio Grande do Sul, em particular no Vale dos Vinhedos, que recebeu do Instituto da Propriedade Industrial (Inpi) o primeiro selo de Denominação de Origem (D.O.) do país, a tradição dos imigrantes italianos se reflete na busca por vinhos finos com características europeias.
Bem atrás, e com proposta completamente diferente, os produtores do Vale do Rio São Francisco, concentrados principalmente em Pernambuco, iniciaram no começo deste século a busca por um outro vinho, tipicamente brasileiro, tropical e fresco. Segundo dados da Associação Brasileira de Enologia (ABE), as duas regiões somam mais de de 40.000 hectares de área plantada, o que equivale a cerca de 70% do espaço de produção nacional.
Que o vinho brasileiro evoluiu, ninguém duvida. “Nos últimos cinco anos, tenho provado vinhos brasileiros, se não excelentes, bons”, revela Manoel Beato, sommelier do Grupo Fasano desde 1992 e um dos profissionais mais respeitados do mercado. “Até então você tinha um ou outro vinho bom, mas o resto da produção era muito irregular. Isso mudou por vários motivos, um deles foi o entendimento mais claro do que produzir em cada região”, analisa Beato.
Além da evolução na produção, o enoturismo passou a ter um papel importante na economia especialmente do Vale dos Vinhedos. A Casa Valduga, a segunda maior vinícola do Vale, foi pioneira ao asfaltar esse caminho comercial para a região. “Começamos com o nosso complexo enoturístico há 25 anos. No começo era para apoiar a imagem do grupo e hoje já é responsável por cerca de dez por cento do nosso faturamento”, revela Juarez Valduga, presidente da Famiglia Valduga, grupo empresarial que inclui, entre outros, a vinícola e o complexo, que recebeu 150.000 visitantes ano passado. “Provavelmente por causa do dólar, a gente recebe hoje muito turista brasileiro. Queremos vender o conceito da visita, não só um passeio, mas uma experiência para quem gosta de vinho”, completa Valduga.
A lenda do espumante dourado
Marcelo Copello, especialista e publisher do Anuário Vinhos do Brasil, acompanha o vinho brasileiro há duas décadas e acredita que erros do passado ajudaram a formular os acertos de hoje. “Os erros históricos passaram principalmente por plantar variedades inadequadas ao clima e por tentar fazer vinhos em estilo incompatível com a matéria prima que temos. O grande acerto foi a descoberta da vocação para os espumantes, consagrados internacionalmente.” O espumante é o grande vinho brasileiro: quem gosta de beber já deve ter ouvido isso algumas vezes. “Antigamente diziam que o espumante brasileiro era bom e eu dizia que era mentira”, conta Manoel Beato. “O que acontecia era que alguns poucos produtores faziam espumantes muito bons, e o resto pegava carona. Hoje a qualidade está mais presente”, garante o sommelier do Fasano.
Diretor superintendente do Miolo Wine Group, a maior empresa do Vale dos Vinhedos, Adriano Miolo não tem dúvida que o espumante é o grande vinho brasileiro. “Conseguimos fazer espumantes de qualidade em todas as regiões que a Miolo produz. Já é uma bebida reconhecida no mercado externo e muito consumida no mercado interno”, revela Miolo, cuja empresa tem Galvão Bueno entre os investidores minoritários e investiu cerca de 120 milhões de reais nos últimos dez anos. “Temos capacidade de produção de 18 milhões de litros, quatro unidades industriais, agora o grande investimento é esperar o mercado crescer”, diz Miolo. Essas quatro unidades industriais incluem uma no Vale do São Francisco, o que faz com que o Miolo Wine Group seja a única empresa a fazer vinho nas duas regiões principais do país.
Apesar da quase unanimidade dos espumantes, algumas vinícolas forjaram suas identidades de forma mais ousada, com tintos finos. “Nós só começamos a investir mais em espumantes a partir de 2010”, conta Flavio Pizzato, enólogo-chefe, sócio-fundador e diretor geral da Pizzato Vinhas e Vinhos, que ficou conhecida pelo seu emblemático tinto da uva Merlot, primeiro vinho lançado pela empresa, em 1999. “Foi a aposta que nos restou diante da mudança cambial de 2005. Tintos e brancos brasileiros foram trocados por chilenos e argentinos, num primeiro momento por causa do câmbio e depois pela competitividade dos vinhos daqueles países”, lembra Pizzato.
Brasil, decime que se siente…
Uma questão sempre presente para o vinho brasileiro na competição com chilenos e argentinos nas prateleiras é a escala. “Para você ter uma ideia, o total de vinhos finos brasileiros é algo entre 50 e 60 milhões de garrafas por ano. Só a Concha Y Toro, uma única vinícola chilena, produz seis ou sete vezes mais que isso”, conta Pizzato. “No espumante, isso não aconteceu, o que ajudou a reforçar a qualidade do produto nacional. O brasileiro é responsável por algo entre 65 e 75% do consumo no país”, garante.
Juarez Valduga acha injusta a comparação com os estrangeiros. “Nossos vinhos caros não chegam a custar 200 reais, nossos vinhos baratos custam 10, 12 reais, mas querem comparar um vinho nosso de 70 reais com um sul-americano de 30 reais. Aí não dá”, reclama Valduga, que acredita que ainda há muito preconceito com o vinho brasileiro. Ideia repetida por quase todos os seus colegas.
“A gente precisa pegar chilenos, argentinos e brasileiros nas mesmas faixas de preço, até 20 reais, entre 20 e 50 reais, entre 50 e 80 reais e aí sim fazer uma degustação às cegas, para ver como o nosso vinho é bom”, garante Márcio Brandelli, proprietário da Vinícola Almaúnica e presidente da Associação dos Produtores do Vale dos Vinhedos (Aprovale) até março de 2017. “Os jornalistas às vezes acham que o nosso vinho de barrica, com produção limitada, tem que custar até 20 reais. Nós temos que comparar um grande com outro grande. Numa degustação às cegas, com certeza você ficaria surpreso com o posicionamento do vinho brasileiro”, garante Brandelli, ajudando a esquentar ainda mais o clima dessa espécie de Copa Libertadores das Vinícolas. Ele vai além: “Ouço gente dizendo: ‘ah, comprei um vinho chileno de 30 reais, como é que eles querem cobrar 60 num vinho brasileiro?’ Mas tem que ver que vinhos são esses”.
O Chile tem um particular protagonismo no nosso mercado que as estatísticas revelam. Dados do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) indicam que o Brasil importou em 2014 mais de 80 milhões de litros de vinho –a exportação somou pouco mais de três milhões de litros. E o Chile está disparado em primeiro lugar entre os países que mais vendem para nós – quem mais compra nosso vinho é o Reino Unido.
Mas o importado é mais barato?
A reação de Brandelli, além de revelar uma auto-estima em relação à qualidade do vinho produzido no Vale dos Vinhedos que é essencial para qualquer mercado, joga luz sobre um outro problema que todos são unanimes em apontar como grande entrave à competitividade. “Chile e Argentina cobram entre 18 e 20% de imposto, enquanto 53% do preço de uma garrafa de vinho brasileiro é imposto. Essa carga tributária é estagnante”, desabafa o presidente da Aprovale. “Para você ter uma ideia, até primeiro de dezembro de 2015 a gente pagava de IPI por garrafa 0,73 centavos de real. Desde então, ele passou para 10% do valor da garrafa. Ou seja, se você faz um vinho de 50 reais, passou a pagar de 0,73 centavos de Real para 5 Reais de IPI”, reclama Brandelli. Essa reação avança sobre uma das maiores reclamações sobre o vinho brasileiro: ele é caro.
“O que é barato no Brasil? O computador é barato? A gasolina é barata? A banana é barata?”, pergunta provocativamente o português João Santos. Ele é diretor comercial da Vitivinícola Santa Maria, mais conhecida como Rio Sol, um dos rótulos que produz, situada em
Lagoa Grande, Pernambuco, é uma das pioneiras no Vale do São Francisco. Responsável por cerca de um milhão e meio dos sete milhões de litros de vinho produzidos na região por ano, a empresa nasceu de um projeto do grupo português Global Wines em 2003. E Santos, que também é vice-presidente do Instituto do Vinho do Vale do São Francisco (VINHOVASF), foi um dos que chegaram no primeiro momento para implantar a ideia de um vinho mais jovem. “Estou no Nordeste, aqui faz quarenta graus, não faria sentido fazer um vinho cheio de madeira”, sintetiza. O diferencial do vinho feito no vale do rio São Francisco é a presença de sol o ano inteiro, em função do clima tropical, diferente do temperado da Serra Gaúcha. Há quem não acredite muito neles. “O futuro do vinho brasileiro está no sul, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, onde tem clima temperado, estações bem marcadas”, opina Manoel Beato. “No mundo inteiro, é isso que faz a diferença”, completa.
Contando coma crença alheia ou não, a Rio Sol segue produzindo, especialmente espumantes. E como europeu, Santos tem dificuldade para entender certos hábitos locais de consumo. “O vinho branco, por exemplo, não representa nem cinco por cento do mercado brasileiro, o que é uma pena, faria uma combinação perfeita com o clima. Mas muita gente acha que tinto é superior, o que não faz sentido”, aponta.
Como será o amanhã
Afinal, o que a indústria precisa fazer para responder à pergunta inicial e garantir um futuro ao vinho brasileiro? “Acabar com vinhos feitos de uvas não-viníferas, deixa-las só para a fabricação de sucos”, responde João Santos. “O governo apoiar as famílias produtoras para elas renovarem suas plantações e finalmente tirar do mercado vinhos de baixa qualidade, que confundem a imagem do produto com os consumidores.”
Do outro lado do país, Mário Brandelli concorda. “O Vale dos Vinhedos hoje produz 65% de uvas americanas e 35% apenas de uvas viníferas, as necessárias para produzir vinhos de qualidade, e os pequenos produtores não têm incentivo do poder público para fazer a reconversão de seus vinhedos. Estamos já há uma década sem olhar para isso, e o investimento na reconversão de um vinhedo é hoje de cerca de 100.000 reais”, diz o presidente da Aprovale. Segundo números da Uvibra, o Rio Grande do Sul produziu em 2015 70 milhões de quilos de uvas destinadas a vinhos finos e quase dez vezes mais, 632 milhões de quilos, das chamadas uvas americanas.
Outros produtores acreditam que a questão principal não está diretamente relacionada à produção. “Nós precisamos deixar de ter vergonha dos nossos produtos”, responde Flavio Pizzato. “Eles são muito bons, as medalhas, avaliações às cegas e prêmios estão aí para confirmar”, garante, buscando atingir a autoestima da indústria. Para ele, tudo depende de uma mudança de postura dos produtores. “Em alguns momentos sinto que nós, e me incluo nisso, somos muito produtores e pouco vendedores. Nosso futuro depende de mudarmos isso”, resume Pizzato.
Já Juarez Valduga é mais sentimental. “Só a paixão nos leva para frente, é o que nos move hoje”, diz.
“Tem um caminho bem interessante para o futuro dos vinhos brasileiros nos tintos feitos com uvas menos badaladas, como Marselan, Teroldego, Arinarnoa, que têm rendido bebidas elegantes, peculiares”, indica Manoel Beato. Marcelo Copello também acredita nos tintos nacionais como a solução: “O futuro aponta para tintos de médio corpo e com as qualidades naturais de nossos vinhos, como a boa acidez e o frescor, de castas como a Cabernet Franc, Merlot e Pinor Noir, com pouca ou nenhuma madeira”.
Mário Brandelli é o mais otimista de todos. “O futuro é muito promissor. Vejo essa nova geração trabalhando com uma visão global do negócio, um entendimento do consumidor no mercado internacional, eles vão fazer um vinho brasileiro ainda melhor”, crê o sócio da Almaúnica. “Tenho fé nos empreendedores da região, todos passamos dificuldades muito piores há 20, 30 anos”, relembra.
Em resumo, a julgar pelo empenho e paixão dos envolvidos, futuro há. Mas o caminho é longo e passa, além de tudo o que foi indicado, por algo que foi menos citado do que deveria, e que é fundamental para ganhar qualquer campeonato: a conquista da torcida local.