De olho no mar: chegou a hora de descobrir como os pescados chegam até nossos pratos — e a que custo. (Thinkstock)
Vanessa Barbosa
Publicado em 9 de maio de 2016 às 15h04.
São Paulo – O rastreamento de produtos da origem ao consumidor é uma tendência crescente no mundo. A tecnologia já atende uma ampla variedade de produtos — de papel e eletrônicos, passando pela agricultura orgânica à indústria de carne e ovos — e, aos poucos, vem sendo adotada em cadeias mais complexas, como a de pescados.
E o mar está favorável. Atualmente, o comércio de pescados e frutos do mar é o maior negócio global entre todas as proteínas animais, de acordo com a instituição financeira Rabobank, superior ao comércio de carnes bovina, suína e de aves. Segundo dados mais recentes disponíveis sobre o setor, o consumo de peixe per capita aumentou de 10 kg na década de 60 para mais de 19 kg em 2012 e já representa 17% do consumo de proteína no mundo.
Nunca a humanidade consumiu tanto pescado como agora. Chegou a hora de descobrir como eles chegam até nossos pratos — e a que custo. O que você sabe sobre o peixe que compra? É provável que a resposta se resuma apenas aos nomes populares de várias espécies: “é um salmão”, “um dourado”, “um robalo”, “uma corvina” ou, quiçá, a um simples “é da peixaria”, e para por aí, certo?
Ir além é desvendar uma realidade absolutamente preocupante. A cadeia de abastecimento de pescados tem um rastro de impactos negativos que deixam essa atividade à beira do colapso. Um relatório recente do grupo conservacionista WWF aponta que a quantidade de peixes nos oceanos caiu pela metade desde 1970, uma redução causada pela pesca predatória, poluição e outras ameaças.
Mudanças profundas na gestão da cadeia de pesca não são apenas necessárias mas urgentes.
Por definição, rastrear um pescado é tornar visível todo o caminho percorrido entre a captura no mar (ou o cultivo no viveiro) e a prateleira do supermercado, a barraca na feira livre ou o cardápio do restaurante. É conhecer, igualmente, as condições sob as quais ele é capturado e os intermediários pelos quais passa até chegar ao consumidor final. Sem essas informações, todos os varejistas de frutos do mar e restaurantes correm risco de sofrer com problemas de fornecimento provocados pela insustentabilidade do negócio.
O que se descobre ao rastrear a cadeia de pescados
No Brasil, a gigante dos supermercados Walmart foi pioneira ao lançar um programa de monitoramento da cadeia de pescado há um ano e meio, em parceria com a ONG Sustainable Fisheries Partnership (SFP). A varejista, que tem 80% do volume de pescados comercializados já rastreados, compartilhou com EXAME.com os primeiros resultados desse trabalho.
Atualmente, a empresa tem um diagnóstico do risco ambiental e social das 21 espécies de peixes congelados mais vendidas em suas lojas. Ela descobriu, por exemplo, que a merluza argentina comprada de uma pescaria no sul do país foi diagnosticada como “risco vermelho” em relação à sustentabilidade.
“A gestão da merluza é feita em conjunto por Brasil, Uruguai e Argentina, mas não há um plano de manejo unificado e ecologicamente correto. Por isso, seu estoque é considerado de risco”, explica Tatiana Trevisan, gerente de Sustentabilidade do Walmart Brasil. “Identificamos também que não existe informação pública suficiente sobre a situação da sardinha. Com isso, montamos um plano de ação para sentar com os fornecedores e discutir estratégias e levantar estes dados”, acrescenta.
Identificar espécies prioritárias e os desafios associados a elas é o primeiro passo para desenvolver projetos de melhoria ao longo da cadeia de pesca. Após o diagnóstico, a empresa desenha o plano de ação para cada espécie e seus respectivos fornecedores nacionais e internacionais (mais de 50% dos pescados congelados vendidos na rede são importados).
Toda as informações levantadas sobre as espécies seguem para um banco de dados online global mantido pela SFP, a ONG parceira do projeto. O banco, chamado de FishSource (fishsource.com), contém as análises da sustentabilidade e as necessidades de melhoria das pescarias, e é acessível a todos.
Ele está ligado com um software chamado Sistema Metrics que informa aos varejistas o estado de sustentabilidade dos pescados que eles comercializam. “Quando qualquer mercado no mundo abastece o banco com dados sobre a situação das espécies, essa informação fica disponível para todos os outros. O fluxo em rede é uma das características mais legais desse projeto”, diz Tatiana.
O passo seguinte, e ansiosamente aguardado, conta a executiva, é tornar essas informações acessíveis para o consumidor final, que poderá optar por um produto que não degrada o meio ambiente. “Nosso objetivo é chegar nessa comunicação direta. Visitei mercados nos Estados Unidos onde é possível saber de que pescaria o produto vem e qual o risco atrelado a ela. Ainda precisamos amadurecer esse processo no Brasil”, reconhece a gerente de sustentabilidade da rede .
Um exemplo de como essa comunicação pode avançar vem da Whole Foods Market, varejista norteamericano que comercializa alimentos orgânicos, naturais e locais. Em 2010, a empresa passou a informar os seus clientes sobre a origem dos seus pescados, que na ocasião eram classificados em três categorias: verde, amarela e vermelha.
A primeira inclui espécies abundantes e capturadas de forma amigável, enquanto a segunda apresenta certa precaução quanto ao método de pesca. A categoria vermelha identificava espécies de pesca predatória, captura acidental ou métodos que causam sérios impactos ambientais. Dois anos após o início do projeto, a Whole Foods levou ao extremo a sua política de compra e venda de peixes, suspendendo a venda de peixes e frutos do mar que tivessem origem insustentável.
Hoje, os clientes da rede encontram apenas produtos com selo verde ou amarelo em suas lojas. Quem opta pelo primeiro sabe que está levando para casa um alimento oriundo de um processo produtivo manejado de forma ecologicamente adequada e socialmente justo.
O mar está para mudanças no Brasil
Atualmente, mais de 80% das espécies comerciais pescadas na costa brasileira estão ameaçadas pela captura predatória, segundo estimativa da organização não governamental Conservação Internacional Brasil (CI-Brasil).
“Ainda estamos muito atrasados no Brasil quando o assunto é pesca sustentável, que garante a segurança do ecossistema. Por aqui, houve um investimento enorme em rastrear a cadeia de alimentos, mas apenas da costa para dentro, à exemplo da produção agropecuária. Precisamos expandir essa preocupação para o oceano”, diz à EXAME.com Rodrigo Medeiros, vice-presidente da CI-Brasil.
O grupo coordena, há dois anos, o projeto Pesca + Sustentável, voltado para comunidades pesqueiras tradicionais, que tem como objetivo construir um sistema de rastreamento do pescado que ofereça mais transparência às cadeias de produção e comercialização no país.
Cinco mil famílias foram beneficiadas na primeira fase do projeto. “São colônias de pescadores, pessoas profundamente ligadas à arte da pesca, que têm noção da necessidade de seu trabalho. O projeto garante sustentabilidade da atividade nessas áreas, acesso ao mercado com garantia de qualidade (o programa envolve certificação), e também gera um ganho de renda maior”, explica Rodrigo.
A ONG espera atingir até 22 reservas extrativistas no país nos próximos cinco anos, passando a envolver 60 mil famílias de comunidades pesqueiras. “A conservação é uma ferramenta que dá longevidade à atividade econômica. No ritmo de exploração absurda da pesca atual, coloca-se em risco a própria sobrevivência da atividade”, afirma o especialista.
Os pescados oriundos do projeto Pesca + Sustentável já têm destino certo em restaurantes no Rio de Janeiro e São Paulo, onde “a receptividade foi enorme, maior do que a capacidade de fornecimento”, diz Rodrigo.
Eles podem ser encontrados nos restaurantes do grupo carioca Ecochefs, idealizado pela chef Teresa Corção, dona do restaurante O Navegador, um dos mais prestigiados em culinária brasileira no Rio, e também nos restaurantes do Grand Hyatt São Paulo.
“Um consumidor consciente é capaz de mudar tudo. E quando grandes empresas também atuam, elas puxam toda a cadeia de fornecimento junto e isso, eventualmente, altera o mercado. Essa combinação às vezes é mais rápida e eficiente que política pública”, crava Medeiros.
O mais bacana é que, no meio disso tudo, a ONG está desenvolvendo com apoio do Google (o projeto venceu o Desafio de Impacto Social Google Brasil 2014) um aplicativo para leitura de códigos QR Code. A tecnologia permitirá ao consumidor escanear o pescado utilizando o leitor instalado no smartphone ou tablet e conhecer toda a origem do alimento.
Saber de onde vem o que se come, hoje em dia, significa não apenas ter segurança, mas, também, consciência limpa.