Dólares: quando as 15 empresas decidem se houve ou não um calote, elas estão determinando, na prática, quanto dinheiro mudará de mãos (AFP)
Da Redação
Publicado em 27 de outubro de 2015 às 20h34.
Quinze dos maiores players do mercado de US$ 14 trilhões de seguro de crédito são também seus árbitros.
Empresas como JPMorgan Chase Co. e Goldman Sachs Group Inc. escreveram as regras, são os compradores e vendedores dominantes e, em última análise, ajudam a decidir quem são os vencedores e os perdedores.
Será que um país como a Argentina pagou o que deve? Será que uma empresa como a Caesars Entertainment Corp. honrou suas contas?
Quando surge a pergunta, as 15 empresas se reúnem em uma teleconferência para decidir se um calote desencadeou o pagamento do seguro garantia, chamado de swap de crédito, ou CDS, na sigla em inglês.
Os investidores usam o CDS para se protegerem de pagamentos de dívidas não realizados ou para lucrar com eles.
Quando as 15 empresas decidem se houve ou não um calote, elas estão determinando, na prática, quanto dinheiro mudará de mãos.
E agora, sete anos depois de a crise financeira ter colocado a atenção geral pela primeira vez sobre o CDS, é crescente a pressão dentro e fora do chamado comitê de determinações para solucionar os conflitos de interesse, segundo entrevistas com mais de três dezenas de pessoas com conhecimento direto do funcionamento do painel, que pediram anonimato.
Os escândalos que expuseram a forma como os traders dos bancos manipularam as taxas básicas de juros e fixaram os valores do câmbio deram munição para aqueles que dizem que os swaps de crédito também podem ser suscetíveis a conluios, ou pior, à manipulação direta.
O grupo que supervisiona o processo, a Associação Internacional de Swaps e Derivativos (Isda, na sigla em inglês), atualmente está propondo mudanças nas regras que, segundo ela, reformarão o comitê de determinações. Entre as propostas estão a limitação das pessoas habilitadas a se envolverem com a tomada de decisões e a proibição aos membros do painel de discutirem as decisões fora das reuniões, de acordo com um documento obtido pela Bloomberg News.
Para os céticos, a questão é se as mudanças seriam suficientes. Como apenas os maiores traders de CDS têm assento no painel, os conflitos não são apenas tolerados, mas inevitáveis.
“Trata-se de um órgão autorregulatório que entregou a autoridade de todo um mercado àqueles que têm o maior interesse próprio e nenhuma proibição para colocar seus interesses à frente do mercado como um todo”, disse Joshua Rosner, diretor-gerente da empresa de pesquisas financeiras Graham Fisher Co., que escreveu um relatório sobre as deficiências do comitê de determinações no início deste ano.
Conflitos mitigados
A Isda diz que seu sistema é transparente. “Os órgãos reguladores mantêm plena transparência em relação aos negócios e posições mantidos por todos os participantes do mercado”, segundo o porta-voz da Isda, Nick Sawyer.
Em seu site, a Isda diz que os conflitos são mitigados pelo fato de existirem tanto compradores quanto vendedores no painel.
“Eu acho que temos um processo robusto e transparente”, disse Scott O’Malia, CEO da Isda. “Mas como todos os processos robustos, é preciso que haja uma análise, um feedback e uma melhoria contínua. Nós continuaremos analisando as políticas e os procedimentos à medida que as práticas do mercado se adaptarem”.
Raramente, ou nunca, o mundo, de uma forma mais ampla, sabe como ou por que as decisões do comitê são tomadas. Apesar de a contagem final e a forma como cada empresa votou serem postadas na internet, o mesmo não ocorre com as discussões entre os membros do painel.
Nenhum dos 15 membros do comitê, nem as empresas que eles representam, quis comentar essa reportagem. Um executivo de uma das empresas disse, sem especificar, que a discussão de assuntos internos do painel provoca repercussões potencialmente severas.
Os swaps de crédito de dívidas corporativas e soberanas, que estão sujeitos às decisões do painel, ganharam destaque nos últimos tempos. Com a queda dos preços do petróleo e de outras commodities, algumas corporações e governos enfrentaram dificuldades para se manter em dia com os credores. Por exemplo, os preços dos swaps de crédito mostram que os traders precificaram uma probabilidade de 95 por cento de a Venezuela dar um calote dentro de cinco anos, segundo dados de CDS da S&P Capital IQ divulgados terça-feira.
Dívida argentina
A forma de lidar com os conflitos de interesse veio à tona no ano passado, durante uma conferência sobre as finanças em perigo da Argentina.
O país havia dado calote em sua dívida? A pergunta foi submetida ao comitê de determinações no dia 31 de julho.
Se o painel decidisse que sim, até US$ 532 milhões fluiriam para os compradores de CDS. Entre esses compradores estava o fundo hedge de Paul Singer, a Elliott Management Corp. -- que também é membro do comitê de determinações.
A Elliott tinha uma história com a Argentina. A empresa era credora durante o calote da dívida do país nos anos 1990 e não havia aceitado um pagamento reduzido por uma parte de seus bonds. Para recuperar seu dinheiro, a Elliott utilizou como tática, por exemplo, a tentativa de apreensão de um navio argentino atracado em Gana e uma ação judicial contra a empresa Space Exploration Technologies, de Elon Musk, para tentar assumir o controle dos direitos de dois contratos de lançamento de satélites da Argentina.
No dia 1o de agosto, o comitê decidiu pelo sim. A Argentina havia dado calote. Segundo a Isda, o comitê votou como em quase todas as suas decisões: por unanimidade.
Só que a coisa não foi tão simples assim.
A representante de Elliott -- Mary Kuan, sócia do escritório de advocacia novaiorquino Kleinberg, Kaplan, Wolff Cohen -- fez algo que nenhum membro jamais havia feito, segundo fontes com conhecimento direto sobre o assunto. Ela pediu que a Elliott se abstivesse de votar.
As regras não permitem abstenções. E se uma empresa-membro por alguma razão se abstém duas vezes durante seu mandato, ela é expulsa do painel.
Se todos os que têm um conflito se abstivessem, possivelmente não sobraria ninguém para tomar as decisões, disseram fontes das empresas, sob a condição de anonimato. Há conflitos em quase todas as votações, segundo elas.
Michael O’Looney, porta-voz da Elliott, preferiu não comentar em nome de Kuan e do fundo hedge.
A Elliott acabou se unindo ao voto pelo sim.
A origem
Depois que o colapso do Lehman Brothers Holdings Inc., em setembro de 2008, expôs a complexidade do mercado de CDS, Timothy Geithner, à época presidente do Federal Reserve de Nova York, decidiu que era necessária uma reformulação -- e rapidamente. A pedido dele, executivos das maiores negociantes de CDS e empresas de gestão de recursos se reuniram na sede do Goldman Sachs, no Baixo Manhattan. Trabalhando com canetas sobre quadros brancos em papel, o grupo elaborou um novo sistema para melhorar a liquidação das obrigações de CDS.
A Isda, que foi criada em 1985, supervisionaria o comitê de determinações e todos respeitariam suas decisões. Se uma votação não atingisse a maioria absoluta necessária de 12 membros, o comitê nomearia um painel externo de revisão, formado por três pessoas -- algo que aconteceu apenas duas vezes em seis anos.
A criação do comitê “fez parte de uma série de medidas para garantir uma padronização e uma transparência maiores”, disse Sawyer, o porta-voz da Isda. Suas decisões podem ser baseadas apenas em informações disponíveis publicamente, como reportagens da imprensa e declarações regulatórias. O comitê é orientado por definições de calote “pensadas para garantir que o processo seja objetivo e previsível”, disse Sawyer.
Representantes de mais de metade dos membros do comitê disseram que o processo poderia ser melhorado, que é o que a Isda diz que está tentando fazer atualmente. Três executivos do ramo de derivativos em Wall Street que ajudaram a criar o comitê de determinações disseram que as empresas deveriam ter a opção de se abster sem sofrer penalidades. As novas regras propostas pela Isda não abrangem as abstenções. Outros representantes recomendam que as regras sejam mudadas para que o painel de três pessoas tome mais decisões.
Rosner iria além. A melhor forma de corrigir o processo é pedir que os membros revelem possíveis conflitos e as razões de seu voto, diz ele.
“Se você quer que as pessoas confiem no fato de o comitê trabalhar em prol dos melhores interesses do mercado, então você precisa ter transparência”, disse ele.