Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica, dos 200 GW de potência centralizada do Brasil, 84,25% são de fontes renováveis e 15,75% de fontes não renováveis. (Nitat Termmee/Getty Images)
EXAME Solutions
Publicado em 18 de junho de 2024 às 17h19.
Última atualização em 19 de junho de 2024 às 13h02.
Para a geóloga Elena Morettini, diretora de negócios sustentáveis da Globant, empresa nativa digital focada em reinventar negócios por meio da inovação, a caminhada rumo a um futuro sustentável, especialmente na geração de energia, ponto crítico da emergência climática que o mundo enfrenta, começa na tabela periódica.
O documento, elaborado em 1869 pelo químico Dmitri Mendeleev, deixa alguns espaços vazios, como se imaginasse que séculos mais tarde novos elementos poderiam ser criados, o que, para Elena, é tangível. “Com a inteligência artificial posso desenhar dez elementos fantásticos e, depois, testá-los em laboratório”, diz a especialista.
Na Globant, Elena lidera o Estúdio de Negócios Sustentáveis, especializado exatamente em fazer a convergência dessas duas pontas, que tendem a seguir caminhos paralelos nas empresas: sustentabilidade e tecnologia.
A proposta é levar às organizações novos conhecimentos, ferramentas e competências para construir roteiros climáticos responsáveis e acionáveis, auxiliando as empresas na solução de problemas com base na Agenda 2030 da ONU a partir de dados, IoT, inteligência artificial (IA), blockchain, nuvem e outras tecnologias.
Em entrevista à EXAME Solutions, Elena Morettini e Kefreen Batista, vice-presidente de tecnologia da Globant Brasil, falaram sobre como essa abordagem conjunta – sustentabilidade e tecnologia – é o caminho para aperfeiçoar a gestão energética e, consequentemente, acelerar a transição para um mundo de baixo carbono.
Elena Morettini – O Brasil, sendo uma economia relevante, tem desempenhado um grande papel nessa transição. A sustentabilidade e todas as questões relacionadas à nova economia verde estão sendo compreendidas, viabilizadas e analisadas com, possivelmente, mais foco e mais relevância do que outros países da América Latina. Na COP28, de Dubai, o país foi um ator relevante, pois instituiu o impacto em termos sociais de todas as minorias étnicas e populações indígenas. Nesse sentido, o cenário internacional não é o mesmo com e sem o Brasil, que tem um impacto grande nas transações de energia, alterações climáticas e sustentabilidade.
Um gigante em energia renovávelSegundo a Agência Nacional de Energia Elétrica, dos 200 GW de potência centralizada do Brasil, 84,25% são de fontes renováveis e 15,75% de fontes não renováveis. |
Kefreen Batista – Temos um potencial enorme, mas ainda nos falta evoluir na capacidade de políticas públicas adequadas, que realmente motivem as empresas a andar nesse caminho verde. Também nos falta mais sensibilização no orçamento e conscientização das organizações.
Elena Morettini – Vemos quais são as necessidades corporativas da companhia e, com uso de tecnologia, certificamos toda a cadeia de dados, que vão para um relatório de sustentabilidade. Depois, dependendo do grau de maturidade da organização, estabelecemos um roteiro de novas necessidades, que podem incluir metas de redução de emissões, aumento do impacto social e alteração da estrutura de governança para acomodar o financiamento do clima e a gestão do carbono.
Elena Morettini – Sim. A União Europeia, por exemplo, estabelece que a tecnologia e a sustentabilidade sigam uma única jornada, que a entidade chama de twin transition (ou “transição dupla”), para que não tenhamos de fazer duas vezes. Portanto, o papel do Kefreen e o meu andam de mãos dadas quando acompanhamos parceiros e clientes na redução do impacto negativo.
Elena Morettini – Há bastante otimismo da nossa parte para convencê-los, mas seria ótimo que todos fizéssemos um esforço de comunicação, especialmente em termos de financiamento. Há bastante financiamento disponível para que as empresas efetivamente façam essa transição. Elas precisam entender que isso também gera benefícios fiscais e outros mecanismos – outro ponto que a nossa consultoria contempla.
Elena Morettini – Os Estados Unidos têm um novo Plano Marshall, que foi uma ajuda pós-guerra que eles deram à Europa e que, mais tarde, ajudou na reconstrução de 1945. Hoje, eles têm o Inflation Reduction Act (IRA), que pode ser proporcionalmente ainda maior do que o Plano Marshall, utilizando os fundos que existem. Certamente também há fundos na realidade brasileira.
Inflation Reduction Act (IRA)Lançado em 2022, é o maior programa voltado para o clima e para a energia limpa na história americana. Abrange mais de 20 incentivos fiscais e o investimento de dezenas de bilhões de dólares em subsídios e empréstimos para impulsionar a implantação de tecnologias de energia limpa e a transição para uma economia verde. O IRA está promovendo não apenas a construção de um sistema energético de baixo carbono, mas também garante custos de energia mais baixos, particularmente em comunidades carentes ou sobrecarregadas pela poluição. |
Kefreen Batista – Ela é a chave desse processo. É o que nos permite não só escalar as ações, mas também trazer transparência às atividades. É como a questão das certificações usando blockchain, usando capacidades técnicas de uma forma que seria impossível construir sem essa camada tecnológica. As empresas são, por natureza, resistentes a mudanças, é algo cultural. Esse ciclo virtuoso que a Elena mencionou – “tenho financiamento, vejo resultados, continuo a investir” – muda a cultura dentro das organizações. A tecnologia entra como uma facilitadora.
Elena Morettini – O setor de energia é complexo, técnico e difícil, para dizer o mínimo. Mas me preocupa, por diversas vezes, a rapidez com que estabelecemos que uma matriz energética composta de energias renováveis é, necessariamente, melhor do que a anterior.
Elena Morettini – Porque há também diversos materiais que não são fáceis de eliminar no final do ciclo de vida de um produto ou de um processo, e que hoje participam das cadeias de valor das energias renováveis. Por isso, penso que é bastante importante que o mundo compreenda que sim, os combustíveis fósseis têm claramente todas as emissões associadas de CO2 e metano e outros materiais negativos para o clima. Isso é o que todos nós sabemos. E sabemos que as alterações climáticas são 60% um problema energético. No entanto, a cadeia de valor da energia do petróleo e gás, que chamamos de well-to-wheel, é ordenada e sumamente rigorosa em termos de processo, devido ao perigo e aos investimentos. Enquanto isso, a energia renovável, especialmente a fotovoltaica, tem uma cadeia bastante casual.
Cadeia well-to-wheelDo poço à roda, na tradução literal em português, é a cadeia energética em que há a medição de toda e qualquer emissão de CO2 ao longo do ciclo de vida da fonte de energia fóssil, desde a obtenção do combustível em sua forma bruta, passando por transporte e refino até a combustão nos motores dos veículos. |
Elena Morettini – É fundamental que essas duas cadeias – uma pesada, rigorosa, perigosa, dispendiosa, e a outra certamente mais amigável e, digamos, mais alegre no imaginário comum – estejam muito presentes para podermos calcular o impacto de uma e da outra. Em ambas, o cálculo deve compreender todo o ciclo de vida. Entretanto, no caso das renováveis, esse ciclo de vida ainda não está em cima da mesa. Dizemos apenas “tenho energia limpa porque é renovável, tenho os certificados, tenho a neutralidade etc.” Porém, a desordem não nos permite ter números claros quando comparamos. E precisamos desses dados para poder escolher ir para a biomassa, as renováveis, as pequenas centrais hidrelétricas ou a nuclear, por exemplo. Sem números, não é possível fazer a comparação correta da energia que merecemos. Como fazer? Esse é o trabalho da tecnologia. É a calculadora.
Elena Morettini – Falta de comunicação é o fracasso da maioria das iniciativas e processos. Porém, é preciso ter conhecimento do assunto para perceber qual peso dar.
Kefreen Batista – Estamos falando principalmente de inteligência artificial e blockchain, mas também de sensorização. Por exemplo, IoT. Temos muitos anos de construção de sensores de todos os tipos: ópticos, químicos, biológicos... E isso é um originador de informação. Unindo as três tecnologias que, teoricamente, estariam isoladas, conseguimos obter resultados mais sustentáveis.
Elena Morettini – Existem exemplos incríveis do uso da tecnologia, especialmente IA, bem antes do boom do ChatGPT. Elas ajudam, por exemplo, a otimizar o fluxo de energia na rede, tornando-o até 40% mais eficiente. O papel da tecnologia também é vital na solução de emergências, como alterações climáticas, terremotos e furacões.
Kefreen Batista – Trago um caso real. Vivi sete ou oito anos em Porto Rico e, entre setembro e dezembro, todos os anos, há pelo menos 30 furacões passando pela região. A primeira coisa que acontece, quando um furacão se aproxima, é desligarem toda a rede elétrica da ilha. Quatro milhões de pessoas ficam sem luz até que percebam que o furacão passou, e fazem isso visualmente. As cidades ficam 30 horas sem eletricidade sempre que passam furacões, ou seja, quase todo esse período de setembro a dezembro. Imagine que, em vez de checar visualmente, poderiam mapear por IA e simulações quando há o risco de um furacão passar. Esse é o tipo de cálculo. Por que é um cálculo complexo? Porque não se sabe a trajetória do furacão. Quantas vezes estive na ilha e ele passou pelo meio, deu a volta e regressou? E ninguém consegue explicar. Mas é possível simular e fazer de forma inteligente, para ativar e desativar a energia nos pontos de mais risco. Penso que é esse o objetivo da tecnologia.
Elena Morettini – A resposta está em toda parte. A verdade é que a tecnologia pode fazer muito, para não dizer tudo. No meu doutorado em geoquímica, adorei meus anos no laboratório, pois é o lugar no mundo onde você pode se permitir a todos os erros. Afinal, é assim que a ciência realmente funciona: o resultado positivo de um experimento é tão importante quanto o negativo. São valores numéricos que contribuem para um percurso de testes e ensaios. Sempre disse que, para mim, a grande evolução tecnológica é feita de materiais. Por isso, fiz referência aos tempos de laboratório. A química envolve muito a compreensão das coisas que podemos criar de novo. Quem inventou a tabela periódica deixou dentro dela um espaço livre para incluir os elementos que serão criados ou descobertos no futuro. E pensar que foi nos anos 1800 que foi deixado esse espaço para o que viria mais tarde. Por isso, sempre me fascinou a tabela periódica. Não por acaso, a Agenda 2030 da ONU está desenhada como ela, com números e uma característica. Aí está o caminho para o futuro.
Elena Morettini – Posso recriar materiais em laboratório com uma determinada característica graças à IA. Posso desenhar dez elementos fantásticos e depois vou testá-los num laboratório. Portanto, muda literalmente tudo. Essa tecnologia, obviamente controlada pela nossa inteligência criativa e rede neural, nos permite seguramente ir a lugares ainda pouco explorados. Com bastante otimismo, penso que é para lá que vamos. E o primeiro passo do caminho, na minha visão, está na tabela periódica.