Luciano de Mari, cooperado da Vinícola Aurora: produtor rural perdeu 3 hectares de plantação de uvas (Eduardo Benini / Cooperativa Vinícola Aurora/Divulgação)
Repórter de Negócios
Publicado em 12 de dezembro de 2024 às 14h31.
Última atualização em 13 de dezembro de 2024 às 17h32.
BENTO GONÇALVES (RS)* - Passava um pouco das três da manhã quando as famílias do viticultores Luciano e Nacir de Mari, parentes e vizinhos, escutaram um estrondo. Era a terra de seus vinhedos desmoronando em direção às suas casas.
Em maio deste ano, com as chuvas que tomaram conta do Rio Grande do Sul, a água acumulada no solo fez três hectares da propriedade da família ficarem completamente destruídos com os deslizamentos de terra.
Quando a terra ameaçou derrubar as suas casas, eles foram correndo para o salão da igreja da comunidade em que moram, na zona rural de Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Lá, dezenas de outras famílias aguardavam e rezavam pelo fim da chuva.
Com as estradas bloqueadas, o resgate demorou dois dias para chegar, por helicóptero. Quase todo mundo foi para a cidade. Luciano ficou, para tentar, já no dia seguinte ao deslizamento, começar a reconstruir a terra que a chuva lavou.
O processo de reconstrução completo destes hectares, porém, não terminará em menos de cinco anos.
Luciano e Nacir são dois dos 86 cooperados da Vinícola Aurora cujas propriedades foram afetadas pelas chuvas que arrastaram o Rio Grande do Sul no primeiro semestre do ano. Até este ano, os De Mari cultivavam 10 hectares de uvas para o suco e colhiam, em média, 280.000 quilos por safra. A história da família é de mais de 50 anos na atividade, com a produção iniciada pelo avô de Luciano, Magiorino.
Na serra gaúcha como um todo, foram 674 pontos de deslizamento, segundo dados da Embrapa.
“Ao todo, tivemos 1.267 hectares afetados, que foram medidos e mensurados”, diz Maurício Bonafé, gerente agrícola da Aurora. “ Nem todos estavam em áreas produtivas, obviamente, mas muitos desses deslizamentos pegaram áreas de mata e áreas que são cultivadas."
A recuperação total deste solo perdido deve levar cerca de cinco anos, e inclui a parte química (adubação), a parte física (estrutura de solo) e a parte biológica.
“Infelizmente, a parte biológica é a mais afetada e leva cinco anos para voltar completamente”, diz. "O terreno precisa de uns 20 dias, um mês de maquinário para deixá-lo plano novamente. Mas a recomposição do solo vai muito além, especialmente para recuperar a microbiologia e os nutrientes que foram levados."
O impacto das enchentes na serra gaúcha, com deslizamentos e perdas de hectares produtivos, exigiu mais do que estratégias técnicas. A Cooperativa Vinícola Aurora começou pela base: o apoio humano.
“O primeiro trabalho não foi técnico, foi humano”, disse o presidente da cooperativa, Renê Tonello. “Chegar nos produtores, consolar e dar força, porque foi uma perda muito grande. Estivemos diversas vezes aqui para dizer: ‘Vamos lá, vamos reconstruir’”.
Depois do acolhimento inicial, começou o trabalho técnico. As chuvas intensas e o inverno dificultaram o acesso às propriedades.
“Foi necessário esperar até que a terra pudesse receber as máquinas sem afundar ainda mais o solo”, afirma.
Com o terreno mais estável, a Aurora iniciou ações específicas para recuperar a área afetada.
“Patamares foram criados para ajudar no manejo da área e diminuir a erosão. Esses patamares controlam a velocidade da água e evitam que mais nutrientes sejam levados com futuras chuvas.”
As medidas incluem análises químicas do solo para planejamento da adubação e reestruturação do terreno. “Estamos estruturando o solo e, assim que for possível, colocaremos uma cobertura, porque a falta de barreiras expõe o solo ao sol e à chuva, dificultando a reconstrução microbiológica”, diz.
O replantio também segue um protocolo rigoroso para acelerar o ciclo produtivo.
“Estamos usando técnicas específicas, como plantar o cavalo, que é a base da planta, para depois enxertar a variedade. Esse processo vai agilizar a recuperação”, afirma.
A tragédia natural não foi o único desafio recente da Vinícola Aurora. Em 2023, a marca viu seu nome associado a acusações de trabalho análogo à escravidão. A cooperativa precisou lidar com uma crise de reputação que abalou a confiança do mercado e a imagem construída ao longo de décadas.
Diante da situação, a Aurora adotou uma série de medidas para adequar as propriedades às exigências legais.
“A grande maioria dos associados já vinha em um processo correto. Tivemos que fazer ajustes, como melhorar um armário com cadeado ou organizar os alojamentos, mas foi tudo muito natural”, diz Maurício Bonafé.
“A cooperativa já vinha nos preparando na questão trabalhista, com várias reuniões com advogados e orientações. Foi um processo muito fluido, e hoje nos sentimos mais seguros e tranquilos.”, afirma o produtor Vinicios Dall'Oglio, cooperado da Aurora em Bento Gonçalves.
Os investimentos realizados foram significativos.
“Alguns associados chegaram a investir 40 mil ou 50 mil reais em adequações, mas essas mudanças foram fundamentais para garantir que tudo estivesse dentro da lei”, afirma Bonafé.
Além disso, a Aurora implementou contratos CLT para as contratações pela cooperativa.
“No caso dos produtores, eles podem optar por terceirização, mas com regras claras: o trabalhador precisa ser alojado na propriedade e ter todas as condições asseguradas", diz o presidente da cooperativa.
A mudança de postura foi acompanhada por um forte trabalho de compliance.
“Assinamos o TAC, que é o mínimo, mas estamos avançando em uma agenda ESG robusta. O que foi escrito na história não se apaga, mas nosso compromisso é fazer a diferença, com transparência e responsabilidade”, afirma o diretor de marketing e vendas da Aurora, Rodrigo Valério.
O impacto da crise nas vendas, ao contrário do esperado, foi menor. “Depois do ocorrido, fizemos um trabalho muito forte de recuperação e reputação. Não tivemos queda de vendas no ano passado, e este ano seguimos firmes. A transparência foi essencial para mostrar que reconhecemos o erro e estamos fazendo diferente.”, diz Valerio.
A fiscalização também aumentou na região, o que a cooperativa avalia como positivo.
“Na última safra, mais de 60 produtores associados foram fiscalizados. Isso contribui para que toda a cadeia trabalhe corretamente”, afirma o presidente Renê. “Tivemos fiscalizações surpresas, com fiscais batendo à porta e entrando para avaliar tudo. Isso faz com que todos estejam alinhados às regras.”
Com quase 100 anos de história, a Aurora já planeja o futuro com grandes ambições. Para 2026, a meta é faturar 1 bilhão de reais. Para 2031, está prevista também a inauguração de uma nova unidade industrial.
“A ideia é inaugurar uma nova unidade preparada para receber até 120 milhões de quilos de uva”, diz o presidente da Aurora. “Hoje trabalhamos com uma capacidade de 90 milhões de litros, mas já estamos planejando essa expansão para atender à crescente demanda”.
A cooperativa também se prepara para lidar com mudanças climáticas, que afetam diretamente a produção agrícola.
“Estamos investindo em tecnologias, especialmente em sistemas de irrigação. Já tivemos anos de seca aqui na serra gaúcha, e precisamos entender como funciona em outras regiões para trazer soluções e garantir a produtividade.”, diz o gerente agrícola Maurício Bonafé.
Além disso, a inovação agrícola está no radar.
“Trabalhamos em parceria com a Embrapa para fomentar novas variedades de uvas. Sempre perguntamos ao mercado e aos enólogos o que está sendo demandado, e alinhamos isso às condições da nossa região. É um processo longo, porque uma videira demora pelo menos três anos para atingir o auge produtivo", diz Bonafé.
Por fim, a Aurora está de olho em novos terroirs.
“Estamos estudando novos terroirs, como a Campanha Gaúcha e o Vale do São Francisco, para entender as condições e, quem sabe, lançar produtos diferenciados”, diz Valerio. “Esses investimentos são estratégicos para diversificar nossa produção e atender às demandas do mercado.”
A adoção de tecnologia é outro pilar para o futuro. “Estamos incentivando o uso de drones para pulverização e sistemas de rastreabilidade que permitem acompanhar a uva desde a propriedade até a garrafa na gôndola. Essas inovações tornam o manejo mais eficiente e transparente", diz Bonafé.
A série de reportagens Negócios em Luta é uma iniciativa da EXAME para dar visibilidade ao empreendedorismo do Rio Grande do Sul num dos momentos mais desafiadores na história do estado. Cerca de 700 mil micro e pequenas empresas gaúchas foram impactadas pelas enchentes que assolaram o estado no mês de maio.
São negócios de todos os setores que, de um dia para o outro, viram a água das chuvas inundar projetos de uma vida inteira. As cheias atingiram 80% da atividade econômica do estado, de acordo com estimativa da Fiergs, a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul.
Os textos do Negócios em Luta mostram como os negócios gaúchos foram impactados pela enchente histórica e, mais do que isso, de que forma eles serão uma força vital na reconstrução do Rio Grande do Sul daqui para frente. Tem uma história? Mande para negociosemluta@exame.com.