Em menos de 24 horas, dois anúncios do presidente Jair Bolsonaro sacudiram o mercado. Depois de divulgar no domingo, 22, uma medida provisória (MP 927) que flexibiliza as regras de contratos de trabalho, com o objetivo de mitigar os impactos do novo coronavírus, Bolsonaro voltou atrás e revogou o artigo que permitia a suspensão do pagamento de salários por até 4 meses. O governo informou que deve editar, nos próximos dias, uma nova medida sobre a suspensão dos contratos, mas enquanto isso não acontece, a MP 927, que já está em vigor, causa dúvidas. Caso o texto não se torne lei, as mudanças propostas podem ser questionadas futuramente na Justiça, segundo especialistas ouvidos pela EXAME.
O texto anunciado no domingo amplia o escopo de alternativas para as empresas sobreviverem à crise. Algumas medidas já vinham sendo adotadas, como férias coletivas, trabalho remoto e antecipação das férias individuais.
"No geral, a nova MP não é ruim, pois ajuda empregadores a tomar decisões importantes, com requisitos formais de temas como teletrabalho, férias, horas extras e o acordo individual", afirma Mariana Machado Pedroso, sócia da área trabalhista do Chenut Oliveira Santiago Advogados.
Como toda MP editada pelo presidente da República, as medidas entram em vigor imediatamente. No entanto, para se tornar lei, a MP precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado em no máximo 120 dias. Caso isso não aconteça, existem riscos para as empresas que adotarem as medidas? Advogados da área trabalhista acreditam em possíveis brechas para questionamentos futuros na Justiça.
O artigo que previa a suspensão dos salários por um período de até 4 meses, por exemplo, poderia gerar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), segundo Pedroso. Essa proposta recebeu fortes ataques e, segundo a especialista, o caso poderia ser enquadrado no princípio da irredutibilidade do salário: previsto na Constituição Federal, não permite a redução dos vencimentos de um funcionário.
"A grande recomendação é para que as empresas avaliem a adoção simultânea de diversas medidas previstas na MP, pois dentro de uma mesma operação as alternativas não surtem efeitos da mesma forma", diz Carlos Eduardo Dantas, especialista em direito trabalhista e sócio do Peixoto & Cury Advogados.
Não pagar férias: vantagem ou risco?
O principal ponto de atenção agora que a suspensão dos salários foi revogada é para com as férias. Pela legislação atual, as empresas podem antecipar o descanso remunerado dos funcionários, desde que os avise com, no mínimo, um mês de antecedência; com a MP 927, esse prazo muda para 48 horas.
De acordo com o texto, os empregados que fazem parte do grupo de risco para o novo coronavírus (idosos, hipertensos, diabéticos ou portadores de doenças respiratórias crônicas) devem ter prioridade. Férias coletivas também devem ser notificadas no mesmo prazo, sem a necessidade de avisar os órgãos públicos e entidades sindicais. Em qualquer caso, é dispensado o intermédio do sindicato.
A questão polêmica reside na possibilidade de o pagamento do adicional de um terço do salário ser adiado, podendo ser feito até a data de pagamento do 13º salário. A empresa também fica isenta de pagar o adiantamento das férias.
“As férias são para descanso. Se elas não são remuneradas como a lei determina, se esvazia o significado delas”, afirma Diogo Conter Junqueira, sócio do escritório Feijó Lopes.
Mas diante do "estado de calamidade" que o país já se encontra, o especialista acredita que o empregador poderia "seguir com esse risco” e usar os mecanismos previstos no texto.
Outros pontos
Há artigos na MP 927 que somente regulamentam práticas que já estão sendo amplamente adotadas, como o trabalho remoto. “Nesse sentido, a MP não trouxe nenhuma novidade. Penso que ela deveria ter sido editada há uma semana, pois traria maior segurança jurídica a empregadores e empregados”, diz Lisiane Mehl Rocha, especialista em direito do trabalho e membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/PR.
A MP determina que os empregados precisam ser comunicados com 48 horas de antecedência antes da mudança para o regime de trabalho remoto. As regras sobre o uso de equipamentos e reembolso de despesas precisarão ser colocadas em contrato, assinado em até trinta dias após o início do período de home office.
A medida também permite que o empregador negocie com o funcionário individualmente para instituição do banco de horas, que poderá ser compensado em até 18 meses depois do fim do estado de calamidade. Até então, as horas do banco precisavam ser compensadas de seis a doze meses.
Um ponto importante, que pode ajudar imediatamente na redução de custos das empresas, é a suspensão temporária da exigibilidade do recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). A medida prevê que os empregadores não precisarão pagar as parcelas de março, abril e maio de 2020. A partir de julho deste ano, o valor equivalente ao período poderá ser pago parcelado e sem encargos.
“Com a demanda em baixa, faz sentido para todo mundo, da padaria até a multinacional”, diz Fábio Chong, sócio da banca L.O Baptista Advogados.
Suspensão de contratos
Mesmo com a revogação do artigo que previa a suspensão de salários, empregadores ainda podem adotar estratégia semelhante, prevista na CLT (artigo 476A). A legislação prevê a suspensão temporária de contratos, por períodos de dois a cinco meses, para a realização de cursos de qualificação oferecidos pelo empregador, o chamado layoff.
A diferença é que na CLT, para a suspensão ser válida, é preciso que a empresa faça um acordo coletivo de trabalho com o sindicato, que normalmente inclui o pagamento de um auxílio e a manutenção dos benefícios, como plano de saúde. Além disso, o empregado tem direito à bolsa de qualificação profissional, paga pelo governo mediante comprovação da realização do curso.
“Vai de cada empregador ver a situação financeira atual e propor ao sindicato alguma forma de compensação durante o período de suspensão do contrato”, diz o advogado Diogo Conter Junqueira.
Ainda no layoff, o governo precisa entrar com uma parte da remuneração, através do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). "Mas hoje, o governo não teria como pagar", destaca Mariana Pedroso.