Hospital em Brasília: estoque dos hospitais brasileiros caiu de 120 a 90 dias para menos de 45 dias (Ueslei Marcelino/Reuters)
Carolina Riveira
Publicado em 12 de abril de 2020 às 07h50.
Última atualização em 12 de abril de 2020 às 11h42.
Em um intervalo de poucas semanas, comprar um simples lote de máscaras para um hospital no Brasil virou operação de guerra. O mesmo vale para respiradores, álcool em gel, luvas e outros itens essenciais para a operação diária na linha de frente contra a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.
Só em máscaras e álcool em gel, produtos que costumavam ser baratos e acessíveis nas compras coletivas de hospitais, a procura mais que triplicou em março.
Os dados são de levantamento do marketplace de insumos hospitalares Bionexo, que conecta hospitais a mais de 10.000 fornecedores e transaciona 12 bilhões de reais por ano. Entre o começo de março e o dia 25 do mês, a alta na procura por máscaras e álcool em gel na plataforma foi de 240% e 216%, respectivamente.
O preço subiu na mesma linha da demanda. O custo médio das máscaras, por exemplo, foi de 2,83 reais para 12,12 reais no fim de março, alta de 328%. Há picos acima de 20 reais.
“É uma batalha não-clínica contra o coronavírus, que não tem só a ver com as pesquisas, a busca por uma vacina, pelo tratamento. É um desafio operacional de ter os insumos necessários para que o hospital funcione”, diz Rafael Barbosa, presidente da Bionexo.
A alta na procura pelos insumos reflete o crescimento da covid-19 no Brasil. Pouco mais de um mês depois do primeiro caso oficialmente confirmado, a doença já chega a mais de 20.000 casos no país e bateu, nesta sexta-feira, 10, a marca de 1.000 óbitos. No mundo, são mais de 100.000 vítimas e 1,6 milhão de casos.
À medida em que ficou claro que o novo coronavírus traria ao Brasil problemas tão graves quanto os de outros países no mundo, ficou também latente o desafio que os hospitais teriam para se abastecer e se preparar para a pandemia.
Comprar insumos hospitalares ficou não só mais caro em março, mas cada dia mais difícil, conforme relatam fontes do setor, empresas e associações de hospitais ouvidas pela EXAME.
A falta existe inclusive para hospitais que atendem às classes média e alta. A Associação Nacional de Hospitais Privados (ANHP) afirma que fez em meados de março um levantamento com os hospitais associados em todo o Brasil e constatou que, na ocasião, o estoque médio dos insumos hospitalares era de somente 47 dias. A associação também constatou alta de mais de 500% nos preços de insumos.
Antes da crise, o tempo médio de estoque era de 120 a 90 dias, segundo o levantamento da Bionexo. Dentre os clientes da plataforma, a maioria hospitais privados, o estoque estava entre 60 e 45 dias no fim de março. Desde então, alguns estoques podem ter entre 40 ou 30 dias restantes em alguns casos, segundo a EXAME apurou.
“O risco de desabastecimento aumenta a todo instante”, diz o presidente da ANHP, José Antonio de Lima. "Eu nunca vi uma crise como esta."
Itens como máscaras, luvas e roupas de proteção para os profissionais de saúde compõem o grupo dos chamados Equipamentos de Proteção Individual (EPI), essenciais no dia-a-dia dos hospitais. A maior urgência são as máscaras N95, necessárias para os profissionais de saúde. Mas até mesmo as máscaras cirúrgicas descartáveis estão em falta.
Os relatos de desabastecimento levaram a Associação Paulista de Medicina a divulgar na quinta-feira, 9, um formulário para que médicos preencham caso não estejam tendo acesso aos equipamentos de proteção. “Com o aumento exponencial do número de casos [da covid-19], as queixas pela ausência desses instrumentos em hospitais e locais de atendimento são cada vez mais recorrentes”, escreve a organização no comunicado anunciando a ação. Com as informações, a associação afirma que tentará coordenar uma resposta à cada situação.
O Brasil é só um dos personagens de uma guerra global na busca por insumos hospitalares. A pandemia levou o mundo a um capitalismo às avessas, em que mesmo hospitais, estados e países com dinheiro para arcar com os custos não conseguem fechar a compra.
A fabricação mundial dos insumos antes da crise estava majoritariamente concentrada em alguns poucos países. As máscaras, por exemplo, vêm sobretudo da China, da Coreia do Sul e da Malásia, países cujas próprias linhas de produção foram prejudicadas pela pandemia logo no começo do ano. Mais de 80% das máscaras usadas no Brasil vêm da Ásia.
É também da China que vem boa parte dos novos testes rápidos aprovados pela Anvisa para detectar alguns casos do novo coronavírus. Já a fabricação de remédios à base de hidroxicloroquina, uma das substâncias que vêm sendo testadas contra a doença, vem da Índia. Peças para respiradores também podem vir de países europeus e dos Estados Unidos.
Com a demanda global pelos produtos, esses insumos importados ficaram mais caros. “Nós queremos comprar, mas a Europa, os Estados Unidos também querem, e pagam em dólar. Os importadores, fabricantes e hospitais no Brasil ficam todos em situação muito complicada”, diz Barbosa, da Bionexo.
Em uma bola de neve das más notícias, a própria crise econômica gerada pelo coronavírus fez o real se desvalorizar ainda mais, encarecendo as importações. “É claro que, mesmo neste momento de crise, há empresas aumentando o preço. É o livre-mercado em seu melhor momento. Mas parte do problema vem, sim, do custo de importação”, diz uma fonte próxima ao setor.
A Associação Brasileira da Indústria de Equipamentos Médicos e Hospitalares (Abimo) disse à EXAME que a indústria especializada está operando em sua capacidade máxima para aumentar a produção. A Abimo nega que os fabricantes estejam aumentando o preço de forma abusiva. "O aumento de demanda é mundial e muito acima do que qualquer nação seja capaz de atender neste momento”, diz a associação, em nota.
O grupo Mafra, que cobre 60% da demanda por materiais hospitalares no Brasil e 80% da demanda por remédios, disse em entrevista anterior à EXAME que está fazendo em abril uma “operação de guerra” para fabricar parte dos insumos localmente, segundo o presidente Leonardo Byrro. O Mafra doou um lote de máscaras ao Hospital das Clínicas de São Paulo e diz estar reduzindo suas margens de lucro nas vendas aos hospitais.
Antes da pandemia, as linhas de produção de itens hospitalares estavam montadas apenas para atender à demanda regular, e não estavam preparadas para produzir os equipamentos na velocidade em que eles estão sendo necessitados agora, diz a professora Ana Maria Malik, do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Fundação Getúlio Vargas.
“Precisaremos de uma ação coordenada do governo federal e dos estados para tentar organizar a demanda e garantir que não faltem insumos”, diz Malik. “E o governo também precisará fiscalizar para impedir que se aumentem os preços indiscriminadamente. Já temos visto medidas parecidas no exterior.”
Fabricantes, por sua vez, reclamam de ações de confisco de equipamentos de saúde que vêm pipocando pelo país. Uma lei de fevereiro permite que os governos confisquem estoques do setor pagando preço médio dos últimos 12 meses ou o menor valor praticado. Os fabricantes afirmam que esses preços pré-crise não cobrem mais os custos de produção durante a pandemia.
Uma fonte próxima ao setor afirma que, se o governo seguir confiscando insumos, fabricantes podem começar a reduzir o nível de importação. “E aí, faltaria ainda mais produto. Nessa hora, tem de dialogar e achar um equilíbrio”, diz.
Com esforços hercúleos para comprar mesmo os mais básicos EPIs, hospitais temem que falte recurso para fechar as contas.
Na outra ponta, enquanto os preços sobem, a receita dos hospitais deve cair nos próximos meses: para reservar os leitos aos pacientes de coronavírus, as instituições estão cancelando operações que costumavam render maior margem de lucro, como cirurgias. Segundo a Bionexo, a demanda por equipamento cirúrgico na plataforma também caiu mais de 40% até o fim de março na comparação com o ano anterior.
A Federação Brasileira de Hospitais, que representa 4.200 hospitais no Brasil, pediu ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) uma linha de crédito específica para os hospitais – negada pelo BNDES até o momento, segundo a FBH. “Os hospitais privados necessitam, hoje, de um capital de giro, com taxas diferenciadas”, diz em nota o presidente Adelvânio Morato. A FBH classifica o aumento de preços dos insumos hospitalares como “prática abusiva”.
Os mais impactados pela combinação entre falta de insumos e finanças em colapso tendem a ser pequenos e médios hospitais fora dos grandes centros no Brasil. O problema fica maior à medida em que o coronavírus se espalha para além do Sudeste, onde surgiram os primeiros casos brasileiros. Estados como o Ceará e o Amazonas já concentram algumas das maiores altas no número de casos confirmados e mortes nos últimos dias.
O Ministério da Saúde vem centralizando parte das compras de itens como máscaras, testes para coronavírus e respiradores e promete distribuí-los aos estados, mas também voltou a recomendar que os próprios estados tentem também comprar seus insumos separadamente. Os estados mais ricos ou hospitais com mais caixa tendem a sair na frente.
Até agora, das máscaras compradas em março pela plataforma da Bionexo, mais de 76% foi adquirida por hospitais da região Sudeste. São Paulo comprou mais da metade dos insumos (53%). Os hospitais paulistas também compraram 26% do álcool em gel.
As compras refletem um cenário em que o Sudeste ainda concentrava quase todos os caso de coronavírus. Mas ainda é uma incógnita se a distribuição dos insumos a partir de agora conseguirá ser feita de forma a atender a todos os lugares.
A cadeia logística também é outro empecilho para os hospitais fora dos grandes centros. "Tem pouco ou quase nenhum avião rodando, que traziam essas compras do exterior. Carga marítima chega também, mas é demorada. E na demanda interna, e se os caminhoneiros resolvem parar? A logística precisaria estar funcionando perfeitamente agora, mas também tem dificuldades", diz Lima, da ANHP.
Mesmo quando o comprador está disposto a pagar, a encomenda pode nunca chegar. Nas coletivas do próprio Ministério da Saúde, o ministro Luiz Henrique Mandetta enfatizou diversas vezes as dificuldades de importação. "Só acredito na hora que estiver dentro do país e na minha mão. Tenho contrato, documento e dinheiro. Às vezes o colapso é quando tem dinheiro e não tem o produto. O mundo inteiro também quer. Tem problema de demanda hiperaquecida", disse o ministro sobre compra de máscaras importadas em coletiva no dia 1º de abril.
A Saúde anunciou na semana passada, por exemplo, que compraria todo o estoque no Brasil da fabricante de máscaras da americana 3M. Seria o equivalente a mais de 1,5 milhão de máscaras no mês de abril.
Mas, nestes tempos de pandemia, nunca é certeza que uma compra chegará: nos Estados Unidos, a 3M enfrenta uma batalha com o presidente americano, Donald Trump, que quer proibir a companhia de vender máscaras para qualquer governo que não o americano. Em outra frente, o governo brasileiro diz que fretará dezenas de aviões para buscar 240 milhões de máscaras diretamente na China.
Se importar está difícil, empresas de outros setores vêm tentando, no mundo inteiro, adaptar suas linhas de produção para fabricar localmente os insumos que faltam. Um exemplo no Brasil veio logo no começo da crise com o álcool em gel, o primeiro símbolo do desafio da falta de insumos que se avizinhava.
Com o produto rapidamente desaparecendo das prateleiras de farmácias, empresas de diversos setores terminaram por fabricar mais milhões de unidades. O esforço incluiu nomes como a empresa de cosméticos L’Oreal, a cervejaria Ambev ou a fabricante de itens de limpeza Ypê.
O álcool em gel, inclusive, teve menor alta no preço em março nas compras dos hospitais, apesar da demanda: o litro do produto, que custava 32,30 reais no começo de 2019, girava em torno de 36 reais no dia 25 de março, alta de 12,3%, segundo a Bionexo.
A mobilização rápida de outros setores da indústria para aumentar a produção foi importante, mas, segundo Barbosa, contou também o fato de o Brasil ter a matéria-prima para o produto dentro de casa. Algo que não acontece tão rapidamente com outros produtos. “Não temos no Brasil os polímeros necessários para fazer máscara ou luva rapidamente. A indústria está precisando se adaptar”, diz.
Para esses outros EPIs, uma das opções de matéria-prima nacional veio do chamado não-tecido usado em fraldas e absorventes. A gaúcha Fitesa adaptou sua fábrica no Rio Grande do Sul em 15 dias e diz que terá matéria-prima para 40 milhões de máscaras por mês. A fabricação fica a cargo de parceiras. Uma delas é a Renner, que já anunciou a doação de 1,2 milhão de máscaras e 150.000 aventais hospitalares produzidos em sua fábrica. Além da Fitesa, a Renner também contou com a parceria da petroquímica Braskem para conseguir matéria-prima 100% nacional. A Alpargatas, dona da Havaianas e da marca de roupas Osklen, também anunciou que vai fazer 200.000 máscaras neste mês na Paraíba.
Pesquisadores do Centro de Inovação da USP também divulgaram estudo com as matérias-primas nacionais para a fabricação de máscaras. Segundo o grupo, serão fabricadas 1 milhão de máscaras com o apoio de cooperativas de costureiras.
Para respiradores, outro equipamento fabricado às centenas mas demandado aos milhares mundo afora, a fabricante de aeronaves Embraer está atuando junto a fornecedores para fazer algumas das peças do produto, substituindo as importações. Uma parceria entre a fabricante Magnamed e empresas como Fiat, Klabin e Suzano conseguirá fornecer ao governo federal um lote de 6.500 respiradores em 180 dias.
Apesar da força-tarefa do setor de saúde e de empresas de outros segmentos, o cenário é um dos mais complicados possíveis. A perspectiva é que o Brasil chegue rapidamente a mais de 100.000 casos confirmados da covid-19. Os especialistas de saúde não sabem, a esta altura, quanto tempo a pandemia ainda deve durar, mas uma vacina levaria pelo menos seis meses para começar a chegar ao mercado.
Até lá, entre fabricantes, hospitais, empresas e especialistas ouvidos, não há um consenso sobre como resolver os desafios. Mas um pedido é consenso: que empresas e os governos municipais, estaduais e federal façam ações organizadas e estratégicas para minimizar o problema. A hora é de cooperação.