Latas de Coca-Cola (Chris Ratcliffe//Bloomberg)
Mariana Desidério
Publicado em 19 de junho de 2018 às 06h00.
Última atualização em 19 de junho de 2018 às 06h00.
São Paulo – De um lado, pequenas marcas locais de refrigerantes. Do outro, grandes companhias como Coca-Cola e Ambev. É esse o cenário de uma briga antiga do setor de bebidas, que ganhou vida nova recentemente.
Os fabricantes da bebida foram escolhidos pelo governo para ajudar a pagar a conta bilionária do desconto no preço do diesel, criado após a greve dos caminhoneiros. A medida desagradou grandes empresas, mas, curiosamente, atendeu a uma demanda antiga de pequenos produtores do setor, das chamadas tubaínas, que se dizem prejudicados na hora de concorrer com essas gigantes.
A mudança proposta em um decreto do governo é a seguinte: o xarope de refrigerante passará a pagar uma alíquota de 4% de IPI, contra os 20% que eram cobrados anteriormente. Aparentemente, portanto, é uma redução no imposto.
Porém, muitas companhias do setor, em especial as grandes, produzem esse xarope na Zona Franca de Manaus, com isenção de tributos. Então, os 20% de IPI que seriam cobrados dessas companhias na verdade tornam-se créditos para elas.
A empresa não paga os 20% porque está na Zona Franca de Manaus. Mas na hora que o xarope sai de Manaus para as engarrafadoras que estão em outros Estados, elas ganham um crédito de 20%. Com a nova regra proposta pelo governo, o desconto passa a ser de 4%.
“Fica impossível empreender no setor de bebidas no Brasil e abrir uma concorrência leal”, afirma Fernando Bairros, presidente da Afrebras (Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil).
A associação representa pelo menos 132 companhias de refrigerantes, dentre elas o Guaranita Cibal, de Passa Quatro (MG), o Devito, de Catanduva (SP), e o Guaraná Pureza, de Riacho Queimado (SC), no mercado há 113 anos.
Segundo a entidade, além do crédito recebido, as grandes companhias superfaturam o produto que sai da Zona Franca, aumentando ainda mais a distorção. Material divulgado pela Afrebras afirma que o preço do concentrado produzido em Manaus “chega a ser 20 vezes maior que o insumo produzido nos demais estados”.
A lógica, segundo a Afrebras, é aumentar artificialmente o preço para assim ganhar mais nos créditos de IPI. A renúncia fiscal das multinacionais de concentrado localizadas na Zona Franca de Manaus foi de 9,1 bilhões de reais em 2016, diz a entidade.
Isso tem levado à morte de diversas pequenas fabricantes de refrigerantes, afirma Bairros. Em 1960 eram 892 empresas no setor; em 2015 ficaram 235, diz. Para as que sobrevivem, a consequência é a dificuldade de crescer. “Os pequenos acabam ficando restritos a seus próprios Estados, para economizar na distribuição. Muitos também não conseguem usar embalagens de vidro, que são ecológicas, mas mais caras”, afirma.
Do outro lado dessa briga está a Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas), entidade que reúne 59 fabricantes, dentre elas Coca-Cola, Pepsi e Ambev.
A associação diz que representa tanto grandes quanto pequenas fabricantes ,e defende que sua presença na Zona Franca de Manaus movimenta a economia local. Segundo ela, há hoje 31 fabricantes de concentrados na região, responsáveis por 14 mil postos de trabalho. A entidade diz ainda que o “regime de compensações tributárias da Zona Franca de Manaus, reconhecidamente bem sucedido como modelo de desenvolvimento regional, está disponível para empresas de todos os portes”. Segundo a associação, 90% do concentrado utilizado pelas indústrias brasileiras de refrigerantes vem da região.
Questionada sobre a acusação de superfaturamento dos xaropes, a associação afirmou que “não há prática desigual nem qualquer concorrência desleal” por parte de suas associadas.
A Abir tem pressionado o governo para reverter a decisão sobre o IPI e ameaça cortar os 14 mil empregos que gera na região amazônica. Segundo os fabricantes, com o decreto, há aumento de 8% nos preços dos refrigerantes para os consumidores, o que provocará recuo de 15% nas vendas, com queda de R$ 6 bilhões de faturamento e R$ 1,7 bilhão na arrecadação de impostos. Segundo a Abir, a mudança na tributação inviabiliza a presença da indústria em Manaus.
Na visão da Afrebras, o problema não está nos incentivos para atividade econômica na Zona Franca de Manaus, mas no fato de essas empresas fabricarem o xarope por lá. “Criou-se essa figura do xarope de refrigerante, que na verdade tornou a matéria-prima para o produto final. A Zona Franca de Manaus deveria ter apenas empresas de produtos finais”, diz Bairros. O correto para uma concorrência saudável, na visão da Afrebras, seria que cada fabricante fizesse o seu concentrado internamente.
O tema será debatido hoje em audiência pública em Brasília. O governo espera arrecadar 740 milhões de reais com a mudança somente este ano. Para o ano que vem, a expectativa é de um incremento de 1,9 bilhão de reais na arrecadação.
Vale registrar que a Afrebras assinou recentemente um acordo com o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), onde responde a um processo por práticas anticompetitivas. A suspeita é de combinação de preços entre os integrantes da associação. Em nota, a entidade afirma que não infringe normas de proteção e defesa da concorrência.
Essa não é uma briga nova. Em março deste ano, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) julgou procedente um pedido da Fazenda Nacional sobre o caso.
Uma nota no site da Receita Federal afirma o seguinte: “(...) a prática que vem sendo adotada por grandes empresas do setor é a de se aproveitarem de benefícios fiscais oriundos de insumos de baixo valor agregado. Dentre os insumos que geram créditos os para fabricantes de bebidas, incluem-se até mesmo substâncias que são adquiridas no centro do país e passam por simples reacondicionamento em Manaus”.
Também não é primeira vez que o governo tenta mexer no IPI do xarope de refrigerante, que já foi alvo da então presidente Dilma Rousseff, em 2013.
O cabo de guerra das empresas de refrigerantes aparece em um momento de forte tensão para o governo, que desde a greve dos caminhoneiros busca conciliar interesses de diversos setores da economia.
Além do desconto de R$ 0,46 no preço do diesel, o governo também prometeu aos caminhoneiros criar uma tabela do frete. Só que a medida é considerada nociva pelo Cade. Segundo documento enviado pelo órgão ao STF (Superior Tribunal Federal), a tabela cria uma espécie de cartel, tem graves efeitos ao consumidor, prejudica o mercado e representa uma afronta à livre concorrência. Os caminhoneiros ameaçam parar o país novamente caso a reivindicação não seja atendida.
A celeuma expõe ainda um problema antigo, que é o dos benefícios fiscais. Só em 2018 a União vai abrir mão de R$ 283,4 bilhões por causa de benefícios fiscais. Na lista dos produtos agraciados com um desconto nos impostos estão itens como salmão, caviar, filé mignon e todos os tipos de queijo. Alguém, certamente, está pagando essa conta.