Apesar de todos esses obstáculos a compra da Netflix pela Apple é um boato que se recusa a morrer (Aly Song/Reuters)
Da Redação
Publicado em 8 de janeiro de 2018 às 12h36.
Última atualização em 8 de janeiro de 2018 às 14h05.
Quando um meteorologista diz que há 40% de chances de chover amanhã, em geral ele chega a essa taxa observando o estado atual da atmosfera e rodando modelos no computador para prever as mudanças ao longo do tempo.
Quando um comentarista afirma que há 30% de chances de o time de futebol A ser campeão, normalmente ele computou todos os resultados possíveis dos próximos jogos, com suas respectivas probabilidades, e verificou que em três de cada dez cenários o A teria mais pontos que os demais concorrentes.
Mas quando um par de analistas do Citi afirma que há 40% de chances de a Apple comprar a Netflix… a conclusão cheira a chute.
Sempre é possível, claro, tentar interpretar de onde veio essa estimativa. E o primeiro ponto é que a Apple deverá ter uma bela de uma bolada nas mãos.
Como no final do ano o Congresso americano aprovou, e o presidente Donald Trump sancionou, uma nova lei de impostos que reduz de 35% para 15,5% a mordida que o governo dá nos lucros das empresas, supõe-se que a Apple finalmente vá trazer para sua sede os 250 bilhões de dólares em dinheiro que tem em paraísos fiscais.
Considerando que a Netflix tem um valor de mercado de 88 bilhões de dólares (suas ações subiram cerca de 5% no início do ano, possivelmente com a ajuda do relatório do Citi), dá e sobra. A Apple só usaria cerca de 40% do dinheiro (depois de deixar a parte do governo).
Três fatores pesam contra a hipótese de compra da Netflix.
O primeiro é que a Apple pode estar planejando repatriar apenas metade da sua fortuna, de acordo com uma pessoa envolvida no assunto ouvida pela revista Fast Company.
O segundo é que uma aquisição desse tamanho vai contra o histórico da Apple, acostumada a comprar apenas empresas pequenas, para trazer tecnologia ou talentos de que precise. A maior aquisição que a Apple já fez em sua história foi a Beats Audio, em 2014, por 3 bilhões de dólares – uma fração do preço da Netflix.
O terceiro fator é que, embora a Apple tenha demonstrado que quer entrar no mercado de conteúdo (a essa altura da história do setor, parece que todo o mundo quer), seus investimentos têm sido na direção de caminhar com as próprias pernas: Ela contratou executivos especificamente para desenvolver shows de TV, e começou a criar filmes para exibir em seu canal de assinatura de música, o Apple Music (que deverá mudar de nome, em algum ponto).
A contratação de executivos da Sony Pictures vem acompanhada de um orçamento de 1 bilhão de dólares para contratar ou produzir conteúdo original em 2018. Para ter uma ideia, com essa verba daria para fazer cerca de 15 séries de alto padrão, como House of Cards, da Netflix, e Game of Thrones, da HBO. Sairia muito mais barato que comprar a Netflix, cujas ações estão valorizadas demais na Bolsa.
Apesar de todos esses obstáculos a compra da Netflix pela Apple é um boato que se recusa a morrer. Especialmente porque, do ponto de vista da análise de mercado, ela faz muito sentido.
Seria um modo rápido de entrar no jogo do conteúdo, e no pelotão da frente. A Apple ganharia de uma hora para outra 115 milhões de assinantes no mundo, metade deles nos Estados Unidos.
Teria ainda os contratos de transmissão de uma bela coleção de shows e filmes, muitos deles de produção própria (os estúdios da Netflix deverão realizar 110 filmes e séries este ano, quase sete vezes mais do que o planejado pela Apple).
Melhor ainda, e se uma parte desses assinantes da Netflix se encantasse com o universo da Apple e começasse a usar os aparelhos da empresa, ante alguma oferta cruzada de marketing? Seria um novo impulso para as suas divisões de hardware e serviços…
Além disso, embora não seja costume da Apple comprar companhias grandes, seu executivo-chefe, Tim Cook, afirmou no ano passado que não é o tamanho que vai determinar o que a empresa pode ou não comprar, e sim o valor estratégico da compra.
Mais do que o valor estratégico de uma fusão dessas, porém, o que o rumor revela são os problemas por que passam a Apple e a Netflix.
Para a Apple, as coisas vão muito bem no terreno conhecido. Apesar da recente decepção com a informação de que a empresa piorou o rendimento do software dos iPhones 6 e 6s para não comprometer suas baterias (e tenha tido que pedir desculpas e oferecer uma troca de baterias com 50 dólares de desconto), sua liderança é tamanha que seu caixa aumenta a uma razão de 50 bilhões de dólares por ano.
O problema são nas novas iniciativas. A Apple investiu com afinco na ideia de um carro autônomo, e no ano passado viu que o projeto não se dirigia a lugar nenhum. Ela também está enfrentando dificuldades para tornar a Siri – sua aposta no mundo da inteligência artificial – competitiva, ante rivais como Cortana, Alexa e Google.
A expectativa de uma compra no estratégico campo de conteúdo, portanto, não é tanto a identificação de uma oportunidade incrível, mas a desconfiança de que a Apple consiga entrar sozinha nesse mercado e dominá-lo.
Pelo lado da Netflix, o problema é o bom e velho dinheiro. Seu fundador, Reed Hastings, já deu duas viradas espetaculares na empresa: primeiro, depois de lançar um serviço de entrega de DVDs a domicílio, girou-o para a oferta de streaming (na época, pouca gente achava que ele conseguiria); depois, percebendo que a competição o alcançava, vislumbrou antes de todos que o segredo era diferenciar-se com conteúdo próprio irresistível.
A questão é que conteúdo próprio irresistível custa caro. Até aqui, a empresa tem se sustentado pelo mercado financeiro: sua expansão, seus prêmios, sua audiência encantam os investidores. Mas a concorrência cresce a cada dia.
O último baque foi a decisão da Disney (cuja parceria fez as ações da Netflix subirem muito) de fazer seu próprio canal de distribuição, retirando parte de seus programas da grade da Netflix.
Nesse oceano cada vez mais vermelho, a parceria com a Apple seria um baita impulso. Mas como seria a vida de Hastings na Apple?
Talvez em vez de comprar a Netflix, disseram os analistas Jim Suva e Asiya Merchant, do Citi, a Apple prefira uma outra empresa. Para a Disney, por exemplo, eles deram uma chance de 20% a 30%.
Apesar de as duas empresas já terem participações cruzadas (que remontam à compra da Pixar, de Steve Jobs, pela Disney) e o CEO da Disney, Robert Iger, ter uma cadeira no conselho de administração da Apple, este seria um movimento ainda mais esquisito para a Apple.
Primeiro, ela teria que gastar toda a sua fortuna em caixa, talvez mais do que ela – alguns analistas estimam que a Disney não sairia por menos de 260 bilhões de dólares, contando um prêmio de 40% para os acionistas para concordar com o negócio. Especialmente agora, que a Disney acaba de comprar a 21st Century Fox.
Em segundo lugar, as culturas não batem. A Apple funciona com pequenos times e alto controle; a Disney, com grandes equipes e delegação. A Disney tem quase 200.000 empregados, 80.000 a mais que a Apple.
Outras hipóteses levantadas pelos analistas seriam a Tesla – uma volta à ideia de construir seu próprio carro autônomo e, de novo, uma especulação que revela mais os problemas da Tesla (em cumprir prazos, por exemplo) do que uma oportunidade irresistível – ou alguma empresa de games.
Essas estimativas carregam a nódoa de serem fáceis de fazer e só trazer vantagens aos adivinhos: se nada acontecer, eles podem dizer que, afinal de contas, disseram que havia 60% de chances de a compra não se realizar e, se a compra for feita, podem dizer que anteciparam a realidade antes de qualquer um.
Probabilidades assim valem pouco. Se você quer uma estimativa realmente confiável sobre um futuro negócio da Apple, o melhor que se pode oferecer é o seguinte: existem 100% de chances de a empresa repatriar uma parte entre nada e tudo de sua fortuna no exterior, e 100% de chances de ela usar esse dinheiro para algo, desde aumentar os dividendos para os acionistas ou recomprar ações até comprar alguma(s) empresa(s), pequena ou grande.