Presidente da Ucrânia: Volodymyr Zelensky. (Agence France-Presse/AFP)
Agência de notícias
Publicado em 31 de maio de 2024 às 09h29.
Quando o Brasil é mencionado ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, seu rosto muda de expressão. O chefe de Estado tem um estilo de comunicação direto, e na hora de comentar posições e decisões do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em relação à guerra entre seu país e Rússia, Zelensky responde sem rodeios: "Como se pode priorizar a aliança com um agressor?".
A pergunta retórica foi feita durante um encontro com jornalistas latino-americanos num dos prédios do grande complexo presidencial em Kiev, ao qual se chega após caminhar alguns quarteirões isolados por segurança, medida que transformou um charmoso bairro da capital ucraniana numa espécie de studio de cinema.
Por lá passam apenas moradores registrados, soldados e funcionários. O controle é rigoroso, e ao entrar no palácio jornalistas devem deixar seus celulares, relógios e praticamente todos os seus pertences em armários. São permitidos apenas cadernos, canetas, passaportes e gravadores analógicos, praticamente extintos no trabalho de qualquer jornalista.
O prédio escolhido para o encontro tem estilo imperial e, segundo autoridades locais, é utilizado para receber visitas importantes. Durante quase uma hora, o presidente ucraniano deu sua visão sobre o conflito iniciado com a invasão da Rússia a seu território, condenada pelo Brasil no âmbito das Nações Unidas, em 24 de fevereiro de 2022. Quando se referiu a países como Argentina, Chile, Colômbia, Peru e El Salvador, Zelensky expressou desejos de cooperação, até mesmo em matéria de produção de armamentos e outros tipos de produtos do setor de defesa. Na hora de falar sobre o Brasil, só saíram de sua boca questionamentos, críticas e frases que refletem o clima de perplexidade que existe na Ucrânia em relação ao governo Lula.
"O Brasil deve estar do nosso lado e dar um ultimato ao agressor [a Rússia]… por que temos de voltar a repetir estas coisas? Pela memória histórica, por temas econômicos? A economia é importante até que chega uma guerra, e quando a guerra chega os valores mudam. Pesam mais as crianças, a família, a vida, só depois está o comércio com a Federação Russa", diz o presidente ucraniano, em uma de suas alfinetadas no governo brasileiro.
Em Kiev, existe consenso entre funcionários e diplomatas ucranianos sobre o que consideram uma posição pró-russa do governo brasileiro no conflito com seu país. A declaração conjunta entre Brasil e China sobre a guerra assinada em recente visita do assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim, a Pequim, reforçou a convicção entre membros do governo Zelensky, começando pelo próprio presidente, de que o governo Lula está do lado da Rússia. O chefe de Estado tenta não destruir pontes com o Brasil, mas já não consegue esconder sua irritação.
Em conversas informais, assessores de Zelensky admitem saber que Lula não participará da reunião convocada pela Suíça em meados de junho para discutir o conflito entre Rússia e Ucrânia. Tampouco irão as mais altas autoridades da China. Em ambos os casos, a justificativa é a mesma: Brasil e China não acreditam em conversas sobre um eventual processo de paz sem a participação dos russos.
"Não entendo. Por que não confirmar [a participação dos presidentes no encontro]? A última sinalização é de que Brasil e China estariam dispostos a participar se a Rússia participar. Mas a Rússia nos atacou. Por acaso o Brasil está mais próximo da Rússia do que da Ucrânia? A Rússia é hoje um país terrorista", afirma Zelensky, visivelmente incomodado.
A visita de Amorim à China é a última das iniciativas do governo Lula que a Ucrânia não consegue digerir. No ano passado, o assessor especial do presidente brasileiro fez sua primeira visita a Moscou no início de abril, após um pedido expresso de Lula, segundo comentou Amorim ao GLOBO meses depois. O ex-chanceler encarou o longo périplo para chegar a Kiev no começo de maio de 2023, mais de um mês depois de ter passado pela capital russa, cidade que voltou a visitar em abril passado. A viagem à Ucrânia do ano passado foi a única do assessor especial de Lula ao país.
A Rússia, por sua vez, ocupa mais espaço na agenda do governo brasileiro. O ministro das Relações Exteriores Mauro Vieira já teve vários encontros com seu colega de pasta russo, Serguéi Lavrov, e mês que vem participará de uma reunião de chanceleres do Brics (grupo formado originalmente por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, e que incorporou recentemente novos membros, entre eles o Irã), na cidade russa de Nizhni Nóvgorod. Vieira expressou seu desejo de que o presidente russo, Vladimir Putin, participe da cúpula de chefes de Estado do G20, em novembro, no Rio. Já o governo Zelensky ainda espera que o presidente ucraniano receba um convite para ir ao Brasil.
"Acho que uma aliança do Brasil com os países da América Latina é muito mais potente do que apenas com a Rússia. E seria justo que nos dessem esse apoio. Não tive uma declaração conjunta com o presidente Lula, ou entre Ucrânia e Brasil… por que é assim, se nós somos os atacados?", volta a perguntar retoricamente Zelensky, dando voltas em círculos.
Para o governo ucraniano, a única maneira de ajudar seu país, afirmam autoridades publicamente e em conversas informais, é isolando a Rússia de Putin. Que o Brasil de Lula não se alinhe com este posicionamento é algo que a Ucrânia não consegue admitir, nem entender.
"Estamos esperando os líderes de todos os países do mundo que querem terminar com esta guerra, mas não nas condições e com os ultimatos russos", enfatiza o presidente ucraniano, que acusa a Rússia de ter bloqueado todas as tentativas de negociações dos últimos anos.
Zelensky reiterou o desejo de seu país de ser parte da União Europeia e assegurou que Putin “não pode nos negar esse direito”. Para o presidente da Ucrânia, o chefe de Estado russo “não quer terminar com a guerra, quer congelar o conflito em nosso território e continuar avançando. Mas nós queremos ser independentes”.
Numa última fala sobre o Brasil, Zelensky disse que falta ao governo Lula “prever as consequências de uma [eventual] queda da Ucrânia”.
"Isso faria com que existisse uma alta probabilidade de que países pequenos possam ser suprimidos por países grandes", afirma o chefe de Estado.
Numa conversa prévia com o mesmo grupo de jornalistas, a primeira dama ucraniana, Olena Zelenska, também fez apelos ao Brasil: "Convido o presidente Lula para que participe da cúpula da paz [na Suíça]. Seria uma oportunidade de renovar relações acidentadas".
Tanto o presidente como a primeira dama falaram sobre a importância do humor até mesmo em momentos de guerra. Antes de chegar ao poder, Zelensky foi um comediante famoso em seu país, e sua mulher, que é roteirista, trabalhou junto a ele em vários programas de TV. O humor continua presente em suas vidas, concordaram, mas na hora de falar sobre Brasil ambos fecharam as caras.
Olena esboçou um leve sorriso ao ser perguntada pela primeira-dama brasileira, Janja Lula da Silva, com quem disse que gostaria muito de se encontrar e convidou para participar de futuros encontros de um grupo internacional de primeiras damas. Foram apenas alguns segundos de descontração.