FRONTEIRA MÉXICO-EUA: homem olha através de cerca construída na cidade de Tijuana; local é usado para encontro entre mexicanos deportados e seus familiares que ficaram nos EUA / John Moore/ Getty Images (John Moore/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 26 de janeiro de 2017 às 19h57.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h12.
Lourival Sant’Anna, de Washington
Ele não estava blefando. A primeira semana de Donald Trump no Salão Oval foi iniciada na segunda-feira 24 com a saída da Parceria Transpacífico, o congelamento das contratações de funcionários federais e a retirada da permissão para imigrantes parentes de nascidos nos EUA permanecerem no país. E coroada na quarta pelas ordens de construção do muro no México, de criar novos centros de detenção, contratar mais 5 mil policiais de fronteira e 10 mil funcionários da imigração e retirar recursos federais de cidades que não cooperarem com a repressão aos ilegais. O pacote incluirá também restrições para entrada de muçulmanos, segundo assessores.
Agora se sabem duas coisas sobre Trump: ele não é hiperativo só no teclado do Twitter ou no microfone do palanque, mas também com a caneta, e, em algumas de suas promessas mais ousadas, não haverá estelionato eleitoral.
“Vamos restaurar a lei e a ordem nos Estados Unidos”, prometeu o presidente a funcionários do Departamento de Segurança Interna, ao qual está subordinada a Patrulha de Fronteira. “A partir de hoje, os Estados Unidos assumem o controle de suas fronteiras.” Os funcionários interromperam Trump várias vezes para aplaudir. Embora o governo de Barack Obama tenha batido recorde de deportação de imigrantes ilegais (2,5 milhões), o departamento se sentiu relegado a terceiro plano pelos cortes de verbas e preocupações com os direitos dos imigrantes.
“Esperamos muito mais verbas, que são muito necessárias, por causa dos contingenciamentos”, disse a EXAME Hoje o vice-diretor de Operações da Patrulha de Fronteira, Michael Allen. “Têm faltado recursos nos últimos quatro anos. O moral da agência não está muito alto. No governo passado, não pudemos fazer nosso trabalho. Muitos esperam que agora possam.”
Allen, que durante 21 anos serviu no Exército, e há oito passou para o funcionalismo civil, salienta que “segurança de fronteira não é uma coisa política; é um trabalho arriscado lidar com cartéis de drogas, manter criminosos perigosos fora das nossas fronteiras”. Ecoando o discurso de Trump na campanha, o funcionário argumenta: “Imigração ilegal é apenas uma porta de entrada para pessoas perigosas”. Allen explica que não se trata só da construção do muro: “Tudo bem, o muro é bom, mas precisamos também de pessoas, cercas, tecnologia”.
Ele também está otimista com a aparente valorização de Trump da capacidade de gestão: “Acho que é renovador nomear pessoas que têm experiência nas áreas que vão comandar. Muitos americanos, incluindo eu, querem ver gente de fora da política nomeada para cargos do governo, porque muitos políticos têm muito pouca experiência na área que estão comandando. Essa parece ser a tendência desse governo: levar em conta a experiência na área. Mas ainda há muita política, republicanos pressionando para conseguir cargos no governo”, ressalva.
Do outro lado do espectro, ativistas de direitos humanos repudiaram as iniciativas do presidente: “A retórica de ódio, xenofóbica, anti-imigrante e anti-muçulmana que foi a marca da campanha de Trump está começando a se tornar realidade”, criticou Marielena Hincapie, diretora do Centro Nacional do Direito de Imigração, ao jornal The Washington Post. “O resultado será caos e destruição.”
Durante a campanha, Trump disse que forçaria o México a pagar pelo custo da obra, que especialistas calculam em 20 bilhões de dólares. Pouco antes de assumir, ele explicou que começaria logo a construção, e que depois daria um jeito de os mexicanos pagarem, nem que fosse por ganhos resultantes da reversão do déficit comercial a partir da renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que inclui também o Canadá.
O presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, voltou a descartar essa possibilidade depois dos decretos de Trump. Diante disso, o presidente americano tuitou que seria melhor cancelar a visita de Peña Nieto a Washington, prevista para a terça-feira 31. O presidente mexicano o fez nesta quinta-feira. Ele já estava sendo pressionado internamente para cancelar a viagem, como reação às medidas adotadas por Trump.
Há 35 milhões de pessoas de origem mexicana nos EUA, das quais, 24 milhões nascidas nos EUA e 11 milhões, no México. É esse também — 11 milhões — o número estimado de imigrantes ilegais nos EUA, embora ele inclua estrangeiros de outras nacionalidades.
De acordo com José María Ramos, pesquisador do tema no Departamento de Estudos de Administração Pública, em Tijuana, na fronteira com a Califórnia, 600 mil imigrantes, na maioria mexicanos, estão detidos nos EUA, em geral por violar as regras de permanência no país. “Não haveria problema de expulsar esses, porque já estão nos cárceres”, explicou Ramos a EXAME Hoje. Mas outros 2,5 milhões de ilegais, também na maioria imigrantes, que já passaram pela polícia, estão soltos. As autoridades enfrentarão dificuldades de localizá-los, até pela falta de colaboração das prefeituras de cidades que se opõem à política de Trump, como Los Angeles, Nova York e Chicago, assinala Ramos, acrescentando que nelas se concentram 60% dos mexicanos sem documentos. Daí a ameaça de Trump de retirar verbas federais desses municípios “rebeldes”. “Essas cidades se negam a colaborar não só por suas posições políticas mais liberais, mas também porque se beneficiam economicamente da mão-de-obra barata desses imigrantes”, explica o pesquisador. Por outro lado, ele observa que grandes empresas americanas têm interesse nos contratos da construção do muro: “Quando estavam erguendo as barreiras, olhei e pensei que fosse uma base naval, tal a magnitude dessas obras deles. Até por isso, ele será feito”.
Ramos relembra que, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o então presidente George W. Bush implantou um programa para reforçar a segurança, chamado Fronteira Século 21, que inclui a adoção de “travessias rápidas” para a população local que entra todos os dias para trabalhar e fazer compras nos Estados Unidos. Essas pessoas, que comprovadamente não oferecem ameaça, e que representam 40% do fluxo de mexicanos pela fronteira, receberam “cartões inteligentes”. Em vez de demorar 3 horas nas filas, passaram a levar cinco minutos para entrar. A facilitação do trânsito levou a um incremento de 50% na atividade econômica dos dois lados da fronteira, estima o especialista.
Em 2000, havia 15 passagens na área de Tijuana; hoje, são 25. O programa começou com duas passagens para cartões inteligentes; agora já há nove, só em Tijuana. O programa reduziu drasticamente a entrada de imigrantes ilegais, diz o pesquisador. “Curiosamente, apesar do aumento do controle e da segurança, o narcotráfico não diminuiu; ao contrário, acompanhou o aumento da demanda nos EUA por drogas como heroína”, observa Ramos. “Isso demonstra que controlar a passagem de pessoas é muito mais fácil que a de drogas, que entram escondidas.” Ele acha que o governo mexicano deveria apresentar uma “agenda positiva” aos americanos, com os êxitos obtidos nessa última década e meia, e propostas que contemplem três preocupações de Trump: narcotráfico, lavagem de dinheiro e contrabando de armas. “Há espaço para negociação. Mas não vi o governo mexicano se mover nessa direção até agora.”
E provavelmente não verá. “O fato de ter feito o decreto da construção do muro e anunciado com muita publicidade é um insulto e uma bofetada no México, um começo muito ruim”, avalia o embaixador Andrés Rozental, presidente fundador do Conselho Mexicano de Assuntos Internacionais, um centro de estudos independente. O anúncio coincidiu com a presença em Washington dos ministros mexicanos das Relações Exteriores, Luis Videgaray, e da Economia, Ildefonso Guajardo.
“Estamos diante de uma situação inédita, com um presidente dos EUA que atua de maneira totalmente improvisada e diferente do que estamos acostumados com um líder político de qualquer parte do mundo”, diz Rozental, que foi vice-chanceler no governo de Carlos Salinas de Gortari (1988-1984), quando se negociou o Nafta. “Ele disse que o Nafta é o pior acordo que o governo dos EUA já negociou, o que é absurdo, pois todos sabem que foi muito benéfico para os três países membros. Criou uma série de plataformas e cadeias de valor para muitas empresas americanas. Muitos setores nos EUA dependem dos mercados mexicano e canadense, e muitas exportações do México e do Canadá têm em sua cadeia de valor muito conteúdo dos EUA.”
A questão é traduzir esses benefícios difusos para a linguagem direta da política, na qual — como bem sabemos no Brasil — falam mais alto os grupos organizados.