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Tarifas de Trump vão devastar indústria do Canadá, diz analista

Andrew Cohen, autor de livros sobre a política do país, diz que situação atual tem feito o país repensar seu futuro e rever dependência dos EUA

Bandeira do Canadá perto da Rainbow Brigde, que conecta o país aos EUA, em Niagara Falls (Joe Raedle/AFP)

Bandeira do Canadá perto da Rainbow Brigde, que conecta o país aos EUA, em Niagara Falls (Joe Raedle/AFP)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 8 de fevereiro de 2025 às 08h00.

O Canadá vive atualmente sua maior crise internacional em décadas. Seu vizinho e maior parceiro, os Estados Unidos, agora sob comando de Donald Trump, ameaça impor tarifas comerciais que poderão travar a economia do país. Além disso, Trump tem falado em anexar o Canadá aos EUA, e transformar o país em um "51º estado" americano.

"As tarifas, se forem impostas, poderiam devastar a indústria do sul de Ontário, começando com a indústria automobilística canadense, que é muito alinhada com a indústria automotiva americana em Michigan e Ohio", diz à EXAME Andrew Cohen, analista político e professor na universidade Carleton, em Ottawa.

"Se Donald Trump impusesse uma tarifa de 25%, essa indústria fecharia em uma semana. Essa parte do Canadá, que inclui Toronto, é o motor da economia canadense. Ontário é a maior província, a mais rica", afirmou.

As ações de Trump geraram revolta no país e, ao mesmo tempo, tem levado os canadenses a se unirem e a começarem a pensar em formas de mudar seu futuro, para depender menos dos EUA,

"É uma conversa que o país não tem há muito tempo sobre si mesmo e sobre sua dependência dos Estados Unidos. O desafio do Canadá agora é perguntar: como podemos reformular nossa economia para sermos mais abertos ao mundo?", disse.

Cohen é formado em ciência política, jornalismo e relações internacionais. Ele acompanha a política canadense há 40 anos, como jornalista, autor de livros e analista do canal CTV News. Um de seus livros analisou a trajetória de Pierre Trudeau, pai do atual premiê, Justin Trudeau, e que governou o Canadá de 1968 a 1984.

Na conversa, ele analisa ainda como as ameaças de Trump mexem com a política do país e traça cenários para a sucessão de Trudeau. O premiê canadense renunciou no início de janeiro e o país terá eleições nos próximos meses, em data ainda a ser definida.

Como os ataques de Trump ao Canadá foram recebidos no país?

Achamos que ele é louco. O Canadá é um país desde 1867. Somos uma das democracias mais antigas do mundo. Estamos aqui há mais de 150 anos, e nosso sistema de governo, que chamamos de monarquia constitucional, não mudou muito. Na França, você teve cinco repúblicas, e na Alemanha, três reichs.  Essa coisa do 51º estado é uma piada no Canadá. Nenhum político, nenhum grupo, nenhuma escola de pensamento, nenhum jornalista que eu conheça, nenhum político que eu já tenha falado considera essa ideia. Está só na cabeça de Donald Trump. 

Como avalia a resposta do Canadá, que conseguiu um acordo para adiar as tarifas por 30 dias?

Gastamos 1 bilhão de dólares, compramos helicópteros, drones, enviamos 10.000 soldados para a fronteira. Fazemos um grande espetáculo, porque essa é a linguagem, a imagem e a realidade que o presidente dos Estados Unidos entende. O México está fazendo o mesmo, enviando tropas para a fronteira, porque sabe que é mais barato fazer isso do que devastar sua economia com tarifas. Menos de 1% do fentanil, das drogas que entram nos Estados Unidos, vem do Canadá. O restante vem todo do México. O presidente Trump quer cortar impostos e precisa gerar dinheiro para isso. Muitas pessoas acham que isso não é realmente sobre drogas, sobre a fronteira. Essa coisa do 51º estado, que é muito insultante para os canadenses, é uma forma de pressionar para fazermos um acordo comercial melhor, no qual abriríamos setores que protegemos, como laticínios.

Quais seriam os efeitos das tarifas americanas, se forem aplicadas?

As tarifas poderiam devastar a indústria do sul de Ontário, começando com a indústria automobilística canadense, que é muito alinhada com a indústria automotiva americana em Michigan e Ohio. Se Donald Trump impor uma tarifa de 25%, essa indústria fecharia em uma semana. Essa parte do Canadá, que inclui Toronto, é o motor da economia canadense. Ontário é a maior província, a mais rica. Tem a maior população e a maior indústria, e é muito, muito integrada à economia americana. 

Como vê as chances de um acordo entre Canadá e Estados Unidos?

Gostaríamos de ter um acordo com os EUA. Temos um acordo de livre comércio desde 1988 com os Estados Unidos. No primeiro mandato de Trump, renegociamos esse acordo e ele conseguiu algumas coisas que queria. O Canadá sempre buscará um acordo com os Estados Unidos, porque precisamos. A maioria das nossas exportações, quase todas, vai para os EUA. A maioria dos investimentos no Canadá vem de empresas americanas. Somos muito vulneráveis. 

Que outros efeitos uma eventual anexação poderia ter?

Se você fosse um republicano nos EUA, não gostaria que o Canadá se tornasse o 51º estado. O Canadá tem uma população do tamanho da Califórnia e é um país liberal e progressista. Mesmo que eleja um governo conservador, ainda é mais liberal do que os EUA. A Califórnia tem 52 assentos no Congresso e apenas dois senadores. Se o Canadá fosse anexado como o 51º estado, isso daria quase uma maioria permanente aos democratas na Câmara dos Representantes e acrescentaria dois senadores liberais ao Senado dos EUA. Os republicanos não querem um país progressista e liberal nos Estados Unidos. Eles podem querer nossos recursos, outras coisas, mas não querem o Canadá como um estado americano. Isso é simplesmente uma ideia que existe na cabeça de Donald Trump.

De que formas a crise atual poderá moldar o futuro do país?

Esta é uma conversa que o país não tem há muito tempo sobre si e sobre sua dependência dos Estados Unidos. O desafio do Canadá agora é perguntar: como podemos reformular nossa economia para sermos mais abertos ao mundo? Há três ou quatro coisas que deveríamos estar fazendo. Primeiro, diversificar nosso comércio. Não podemos continuar dependendo dos Estados Unidos. Precisamos comprar e vender mais para a América do Sul, para o Brasil, para o México, para a União Europeia, para a Ásia. Já enviamos muitas exportações para a Ásia, mas ainda é uma porcentagem pequena. Em segundo lugar, deveríamos tentar criar um mercado interno mais eficiente dentro do Canadá. Hoje, temos barreiras comerciais entre províncias. Por exemplo, se você produz vinho na Colúmbia Britânica, é muito difícil vendê-lo em Ontário. Criamos barreiras dentro do nosso próprio país. Precisamos construir uma união econômica verdadeira no Canadá. Em terceiro lugar, precisamos levar a questão da água a sério. Ainda não pensamos na água de forma organizada e coerente. Precisamos discutir como regular a água e garantir que tenhamos reservas adequadas. Você pode ter muita água, mas se não consegue distribuí-la corretamente pelo país ou se a desperdiça, ela perde valor. Quarto, não levamos a sério nosso setor militar. Embora não possamos fazer muito se os Estados Unidos nos ameaçarem, precisamos ser um membro mais forte da Otan e pensar de forma mais estratégica sobre nosso papel no exterior.

Postagens de Trump que mostram o Canadá e os Estados Unidos como um só país (Reprodução)

Como as ameaças de Trump poderão afetar as eleições no Canadá este ano?

Este passou a ser o tema existencial: qual governo ou primeiro-ministro tem mais capacidade para negociar com Donald Trump? Os dois principais candidatos do Partido Liberal são a ex-ministra das Finanças, Chrystia Freeland, e o ex-governador do Banco do Canadá e ex-governador do Banco da Inglaterra—porque ele teve ambos os cargos—, Mark Carney, que não está no Parlamento agora, mas é o favorito para a liderança liberal. Se os liberais escolherem como seu novo líder Mark Carney, a situação muda. Ele é um economista. Ele gerenciou o Brexit na Inglaterra. Ele gerenciou a recessão de 2008 no Canadá. Em ambas as posições, ele foi governador [presidente]—primeiro do Banco do Canadá e depois do Banco da Inglaterra. E isso pode mudar as coisas. Quero dizer, as pesquisas ainda não estão mostrando isso, mas estão mostrando os liberais subindo.Todos pensávamos que a eleição seria sobre o meio ambiente e o imposto sobre carbono, porque era isso que os conservadores queriam. Pierre Poilievre, o líder do Partido Conservador, é um jovem que passou a vida toda na política. Os conservadores ainda são os favoritos para vencer a eleição, mas agora tudo pode mudar.

Quais são as principais razões por trás do movimento de Trudeau para renunciar?

O primeiro-ministro foi eleito com uma grande maioria em 2015. Isso foi há quase 10 anos. Ele foi reeleito em 2019, mas com um governo minoritário. Isso significa que ele precisava governar com a ajuda do Novo Partido Democrático. Trudeau foi reeleito novamente em 2021. Os canadenses, historicamente, não gostam de eleger um primeiro-ministro ou um partido quatro vezes, e esta seria a quarta vez. Ele estava muito impopular, mas não é que ele tenha feito algo terrivelmente ruim. É apenas que os canadenses gostam de mudar de governo. Não houve um primeiro-ministro reeleito concorrendo pela quarta vez, para um quarto mandato, em mais de 100 anos. É muito raro. Os parlamentares sentiram que, se ele os liderasse na próxima eleição, seria um desastre para o Partido Liberal. E provavelmente seria.

Além do conflito com Trump, quais são os outros principais temas que preocupam os canadenses hoje?

O Canadá, como todos os países, enfrentou inflação. O preço da habitação é muito mais alto do que antes. O preço médio de uma casa em Toronto está em várias centenas de milhares de dólares, chegando a 1 milhão de dólares canadenses, e isso é muito dinheiro. Tivemos a menor taxa de desemprego em 50 anos, que agora subiu um pouco para cerca de 6%. A economia está crescendo, mas há inflação e o custo da habitação subiu. A imigração agora também é um problema.  Estamos admitindo quase um milhão de pessoas por ano no país, o que equivale a mais de 1% da nossa população, e fazemos isso há muitos anos. O problema é que isso colocou uma pressão sobre a habitação e o sistema de saúde. Os canadenses estão tendo dificuldades para encontrar médicos, e para pagar uma casa. Esses são problemas que a oposição está explorando.

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