O governo russo, que sempre tentaram não escolher entre o legado soviético e o legado czarista, não preveem qualquer comemoração oficial (Paul Marotta/Reuters)
AFP
Publicado em 16 de julho de 2018 às 09h47.
Por ocasião do centenário da execução do último czar da Rússia pelos bolcheviques, ressurge um conflito entre o Estado russo e a poderosa Igreja Ortodoxa. O que fazer com os supostos restos mortais da família imperial?
O patriarca ortodoxo Cirilo vai liderar, nesta segunda-feira (16), uma procissão em memória de Nicolau II, czar e chefe da Igreja Ortodoxa, e de sua mulher, Alexandra Feodorovna, suas quatro filhas e seu filho, fuzilados na madrugada de 17 de julho de 1918, perto de Ecaterimburgo, nos Urais, e canonizados em 2000.
As autoridades russas, que sempre tentaram não escolher entre o legado soviético e o legado czarista, não preveem qualquer comemoração oficial.
Vinte anos depois da exumação dos restos do czar, de sua mulher e de três de suas filhas - descobertos em 1979 -, a Igreja Ortodoxa continua se negando a reconhecer sua autenticidade e a aceitar que se façam testes de DNA para confirmá-la.
Dominado pelos conservadores, o clero também se nega a reconhecer a autenticidade dos restos de outros dois filhos do czar, Alexei e Maria, cujos corpos foram separados dos demais e foram encontrados apenas em 2007. Suas ossadas ainda não foram exumadas por falta de acordo entre as autoridades e a Igreja.
Em 1998, o então patriarca, Aleixo II, desprezou os funerais de Estado organizados pelas ossadas de Nicolau II na fortaleza de São Pedro e São Paulo de São Petersburgo. Em seu lugar, enviou um padre para enterrá-los como "restos de uma pessoa desconhecida".
Com a comemoração do centenário, a imprensa russa pede ao patriarca ortodoxo Cirilo que reconheça os restos da família imperial.
A Igreja considera não haver provas suficientes a favor da autenticidade dos restos mortais para realizar testes de DNA e acusa o Estado de tentar afastar o clero desse assunto.
Na opinião da Igreja, os bolcheviques queimaram, sem deixar rastros, os corpos das 11 vítimas - a família imperial e seu entorno mais próximo - em uma vala de um bosque dos Urais, onde depois se construiu um amplo mosteiro.
Segundo o teólogo e missionário Andrei Kuraiev, conhecido por suas opiniões reformistas, essa versão foi aquela defendida pelas forças czaristas durante a guerra civil na Rússia.
"Em 20 anos, isso se tornou uma enorme teoria do complô", resume Ksenia Luchenko, especialista na Igreja Ortodoxa russa.
Segundo uma dessas versões conspiratórias, Lênin guardava a cabeça de Nicolau II em seu gabinete. Outra diz que os filhos mais jovens do czar, Alexei e Maria, escaparam da morte e se refugiaram no exterior.
No ano passado, monsenhor Tikhon, um bispo encarregado da investigação realizada pela igreja e próximo do presidente Vladimir Putin, referiu-se à possibilidade de que o fuzilamento da família imperial tenha sido uma espécie de "assassinato ritual".
"Os círculos favoráveis à ciência dentro da Igreja ficaram afastados, após o escândalo das Pussy Riot em 2012", explica Andrei Kuraiev, em alusão ao grupo de música ativista que entrou na principal catedral de Moscou para cantar uma "oração punk" contra Putin.
Esse caso reforçou a Igreja e sua ala conservadora, que, desde então, cresce "cada dia mais", na opinião de Kuraiev.
O patriarca Cirilo tem "medo" da reação que teriam os conservadores - já indignados com sua reunião em 2016 com o papa Francisco - se considerasse autênticos os restos da família imperial, afirma Andrei Kuraiev.
No ano passado, a estreia na Rússia do filme "Matilda", que narra a história de amor entre o futuro czar Nicolau II com uma bailarina, provocou mal-estar entre os ortodoxos mais radicais, que se manifestaram para impedir sua difusão nos cinemas.
"Este filme mostrou que Nicolau II é uma figura que pode dividir a sociedade ortodoxa", afirma o especialista Roman Lunkin, da Academia das Ciências russa.
De acordo com Lunkin, o último czar é objeto de um "imenso culto" no mosteiro perto de Ecaterimburgo, ao qual se dirigirá a procissão liderada pelo patriarca Cirilo nesta segunda.
Já o presidente Vladimir Putin "não professa um culto por Nicolau II" e se mostra "menos interessado" na resolução do conflito do que seu antecessor, Boris Yeltsin, aponta a especialista Ksenia Luchenko.
A situação continua sendo "desconfortável" para Putin, porém, que sempre se posicionou como um aliado próximo da Igreja, destaca Ksenia.