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Quando o nazismo perdeu mas ganhou

A natureza da política, isto é, da luta pelo poder e pelo controle de outros homens, continua a mesma

SUPREMACISTAS BRANCOS NA VIRGINIA: impossível não traçar paralelos daqueles anos tão conflituosos com os nossos (Alejandro Alvarez/ News2Share/Reuters)

SUPREMACISTAS BRANCOS NA VIRGINIA: impossível não traçar paralelos daqueles anos tão conflituosos com os nossos (Alejandro Alvarez/ News2Share/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 19 de agosto de 2017 às 06h50.

Última atualização em 19 de agosto de 2017 às 16h48.

The Trial of Adolf Hitler: The Beer Hall Putsch and the Rise of Nazi Germany (“O Julgamento de Adolf Hitler: o Putsch da Cervejaria e o Surgimento da Alemanha Nazista”, numa tradução livre)

Autor: David King

Editora: W. W. Norton & Company

480 páginas

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Na última semana uma discussão um tanto insólita tomou as redes sociais: o nazismo é de esquerda ou de direita? Eu penso que esses termos são antes ferramentas retóricas do que de análise da realidade, e não me interessa aqui entrar numa guerra lexical para colar o nazismo no lado contrário ao meu (é o que todo mundo quer fazer com essa batata quente). Fico feliz, contudo, que todo mundo universalmente condene o nazismo e considere Adolph Hitler um dos piores indivíduos que jamais viveu.

Talvez por isso mesmo ele exerça tanto fascínio, e livros sobre ele tenham tanto sucesso de público, mesmo quando tratam de algum aspecto ou período muito específico de sua vida. Sempre pensamos nele como o grande tirano, e nos esquecemos que ele teve toda uma trajetória pregressa, de altos e baixos, que nem de longe parecia prenunciar sua força nos anos 30. Foi o caso, por exemplo, do malfadado golpe da cervejaria, no qual os nazistas tentaram tomar o poder pela força.

Em novembro de 1923, Hitler – então um líder local do Partido Nacional-Socialista na Bavária – e mais nove comparsas iniciaram uma tentativa de golpe, partindo de uma cervejaria, contra o governo em Munique. Chegou armado, rendeu oficiais do governo que dariam alguns discursos naquele dia e anunciou que a revolução nacional começava ali.

O golpe foi, é claro, um fracasso. As forças do governo logo desbarataram os revoltosos. Hitler chegou a se esconder na casa de uma mulher (que mais tarde deixou suas memórias dos dias em que hospedou Adolph), mas pouco tempo depois foi capturado, preso e julgado, assim como oito outros comparsas. Parecia o fim de seus planos.

Jornais chegaram a escrever o obituário do Partido Nazista. O New York Times previu, então, o fim da carreira de Hitler – que era agora motivo de gozação internacional. Não seria a última vez que a mídia erraria a sorte política de figuras importantes…

Era para ser a hora da decadência final de Hitler. Mas ele reverteu o jogo, e foi ali que ele soube, por meio de sua retórica agressiva e personalidade egomaníaca, transformar o fracasso em uma escada para o sucesso total. É desse julgamento, que foi o ponto de virada da carreira política de Hitler, que trata o livro The Trial of Adolf Hitler: The Beer Hall Putsch and the Rise of Nazi Germany (“O Julgamento de Adolf Hitler: o Putsch da Cervejaria e o Surgimento da Alemanha Nazista”, numa tradução livre), de David King, professor de história e autor recorrente da lista de best-sellers do New York Times. Neste seu novo título, acompanhamos em detalhe cada um dos dias e dos depoimentos do julgamento que mudaria a história da Alemanha e do mundo.

O clima na Alemanha era tenso. Os pelegos do Partido Nazista já eram uma ameaça pública, tanto que o tribunal teve que restringir a entrada de pessoas e garantir segurança do lado de fora para impedir que simpatizantes viessem causar tumulto e soltar Hitler à força.

Hitler era já uma importante liderança nazista, mas o destaque do golpe até então era o general Erich Ludendorff, heroi da Primeira Guerra. Foi nos julgamentos que o general perdeu sua importância – em sua narrativa, ele não era o protagonista do golpe; tentou de todas as maneiras se desligar dele para não receber uma punição. Hitler, ao contrário, aproveitou para se colocar como o líder do movimento.

A fala de Hitler transportava a audiência para um mundo de fatos alternativos, ao mesmo tempo em que apelava para os instintos mais baixos e violentos deles. O juiz se via compelido a advertir Hitler de que ali não era um teatro. Para o futuro tirano, era exatamente isso: um palco privilegiado para transmitir sua mensagem. Ele não estava mais restrito ao público de uma cervejaria; agora ele falava não só para um tribunal mas, graças ao jornalismo, para o país inteiro e para o mundo. Jornais que no início o tratavam como um bufão caricato, e nem eram capazes de escrever seu nome direito (“Hittler” e “Von Hitler” eram alguns dos erros), no final daquele processo já sabiam muito bem quem ele era e o levavam a sério. A política nunca dorme; toda ocasião é propícia para conquistar os corações dos homens.

Hitler era um estrangeiro (austríaco), sofrendo um processo gravíssimo por alta traição – coisa que ele não negava. A lei estava contra ele. A deportação permanente era o desfecho mais provável de acordo com uma análise puramente técnica dos dados em jogo. Sua defesa era o ataque frontal: ele não era o traidor; o verdadeiro traidor do povo alemão era o governo da República de Weimar, que entregara o país nas mãos dos vencedores da Primeira Guerra e deixaram a situação se deteriorar a tal ponto que agora o povo convivia com uma hiperinflação de milhões por cento. Ele questionava e criticava testemunhas, falava basicamente sem impedimento, discursava sua visão de mundo.

É claro que a defesa não funcionou na Justiça. Hitler foi condenado, ainda que com uma pena leve e que no futuro ainda permitiria que ele saísse da prisão em liberdade condicional. Nos anos que ficou preso, escreveu o Mein Kampf (Minha Luta) e se tornou a liderança inconteste do Nazismo.

O trabalho de pesquisa de King é primoroso. O livro resulta de leitura meticulosa da transcrição do julgamento – aí que vemos a retórica de Hitler em todo seu vigor -, além dos arquivos da polícia alemã que dizem respeito ao golpe (eles inclusive confiscaram tudo no escritório do Partido Nazista), artigos da mídia, correspondência (muitas vezes raivosa) enviada ao promotor de justiça que tinha a audácia de processar Hitler, memórias de pessoas que viveram aqueles dias, etc. É difícil pensar numa obra, acessível ao grande público como esta, apresentando um trabalho tão rico e detalhado de pesquisa inédita.

Muita coisa mudou desde os anos 20 e os dias de hoje. A propaganda é muito mais sofisticada, a tolerância com líderes autoritários, pelo menos no Ocidente, é menor. Mas a natureza da política, isto é, da luta pelo poder e pelo controle de outros homens, continua a mesma. Em contextos diferentes, vemos líderes sendo gravemente feridos em suas pretensões para logo em seguida, com muito senso de oportunidade, virar o jogo e usar aquilo para se promover. A percepção pública às vezes difere radicalmente do que os formadores de opinião e as mentes mais esclarecidas pensam.

Impossível não traçar paralelos daqueles anos tão conflituosos com os nossos. É claro que cada um colocará no lugar de Hitler aqueles atores de quem gosta menos. Estaremos bem se não dermos a nenhum deles o tipo de obediência cega que Hitler comandou, mesmo tendo partido de uma situação muito desfavorável.

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