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Primeiro mandato de Trump impulsionou estudos de fake news

Ciência revê conceitos no momento em que Facebook e Instagram deixam de checar veracidade de conteúdos

Agência o Globo
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Publicado em 13 de janeiro de 2025 às 07h32.

O volume de pesquisas científicas buscando entender melhor o fenômeno das fake news passa por um período de rápido crescimento que completa uma década em 2025. Tendo como marco inicial a primeira eleição de Donald Trump para presidente nos EUA em 2016, esse campo de estudo que antes reunia poucos curiosos na academia se multiplicou desde então por 16 vezes. Segundo a consultoria de métrica científica Dimensions Analytics, em 2015 foram publicados apenas 352 estudos formais com a expressão “misinformation” (informação falsa) no título ou no resumo. Em 2024, o número acumulado foi de 5.804.

A década da ciência da desinformação se consolida num momento emblemático, quando a Meta anuncia que suas plataformas Facebook e Instagram não farão mais checagem de veracidade de conteúdo. Esta vinha sendo uma das formas relativamente eficazes para combater as fake news até agora.

Com a proliferação de estudos sobre o tema (mais de 36 mil artigos acadêmicos publicados em 10 anos), cientistas estão hoje mais preparados para diagnosticar o fenômeno e prover soluções pontuais para combatê-lo. Mas mesmo antes do anúncio da Meta, já havia um clima de frustração instalado, uma sensação de que a sociedade está perdendo a guerra contra as fake news nas redes sociais, o principal campo de batalha.

Mentira como estratégia

Trump, que assume a Presidência no próximo 20 de janeiro, é um usuário recorrente das fake news como ferramenta de relações-públicas e o grande vetor dessa frustração.

"Avalio que os estudiosos da informação falsa têm feito um bom trabalho em prover as melhores maneiras para correções, mas há um elefante na sala, que é a próxima administração dos EUA", afirma Javier Samaoya, psicólogo da Universidade da Pensilvânia que estuda o assunto. "Não sei dizer se estamos ganhando ou perdendo, mas estamos lutando com coragem".

Trump foi eleito ano passado semeando mentiras que proliferaram, mesmo ancoradas em narrativas absurdas. Entre as informações falsas usadas em campanha estavam, por exemplo, a de que imigrantes em Ohio estavam comendo animais domésticos e que escolas públicas estavam encaminhando crianças para cirurgias de troca de gênero.

Um estudo liderado pelo psicólogo Killian McLoughlin, da Universidade de Princeton, mostra que conteúdo desse tipo, com intenção de causar grande indignação, tem sido particularmente eficaz quando tem fins escusos, pois seu potencial para viralizar é alto.

“A indignação é altamente envolvente e não requer precisão para atingir seus objetivos comunicativos, tornando-se um sinal atraente para incorporar na desinformação”, escreveu o cientista em artigo na revista Science em novembro. “Informações falsas que evocam indignação podem ser difíceis de mitigar com intervenções que pressupõem que os usuários desejam compartilhar informações precisas.”

Um problema das fake news é que em muitos casos elas não são só “informações falsas” (misinformation), mas também “desinformação” (desinformation), ou seja, mentiras construídas deliberadamente com fins escusos, sejam eles políticos, financeiros ou outros. A área da saúde é um campo bastante vulnerável a essa prática, com o movimento antivacina sendo um grande vetor. A Dimensions aponta que cerca de 25% dos estudos sobre fake news parte de profissionais desse campo.

Combater desinformação é algo que demanda mais esforço do que desmentir boatos inocentes, porque o emissor das informações falsas atua para neutralizar quem tenta fazê-lo. Os cientistas da área, como numa corrida armamentista, buscam criar ferramentas para se manterem à frente.

Circula entre pesquisadores e jornalistas dos EUA desde 2020 uma cartilha criada por especialistas com diretrizes sobre as melhores práticas para publicar desmentidos. Intitulada “Debunking handbook”, ela consiste de regras (por exemplo, a ordem em que a negação e a apresentação da mentira estão em uma mensagem) que influenciam a credibilidade do interlocutor.

Reconhecer erro é difícil

Essa publicação simples, construída com ciência sólida, tem sido usada por agências de checagem de notícias e por órgãos públicos para combater as fake news. Mas fazer o que é certo não é garantia de sucesso, pois já se sabe que o esforço requerido para debelar uma mentira é muito maior do que o necessário para espalhá-la.

Além do problema de escala, há descobertas novas, que o “Debunking handbook” não contempla ainda. Uma delas tem relação com algo conhecido de quem já participou de um debate: as pessoas não gostam de se sentir contrariadas e são refratárias a mensagens provando que estão erradas.

Um estudo que Samaoya coordenou mostra que, nesses casos, confrontar uma mentira diretamente pode ser menos eficaz do que “contornar” o assunto com informações paralelas. Ele alega que é preciso combater não só crenças específicas em fatos inverídicos, mas a “atitude” equivocada das pessoas em relação a um determinado assunto mais amplo.

A disputa pelas atitudes e posicionamentos tem sido cada vez mais um componente essencial das campanhas eleitorais, seja na discussão da eficácia de vacinas, seja sobre o papel da imigração e outros.

"Quando há uma alegação tão bizarra quanto imigrantes comerem pets, talvez uma correção mais direta da informação seja a primeira linha de defesa", afirma o psicólogo. "Mas algo que pode ser feito além disso é contornar a alegação e falar sobre como a população de imigrantes beneficia a comunidade, como ela faz aumentar a produtividade, como ela preenche empregos de baixos salários, etc".

Em experimentos com voluntários, Samaoya e sua parceira Dolores Albarracín conseguiram mostrar que as mensagens para “contornar” fake news são muitas vezes mais eficazes em moldar a atitude das pessoas do que confrontar mentiras diretamente. O resultado do trabalho foi publicado na revista Journal of Experimental Psychology.

Outro pesquisador que tem se esforçado para criar abordagens diferentes no combate a fake news é Sander van der Linden, da Universidade de Cambridge, que busca inocular pessoas com uma “vacina” mental contra desinformação.

"Assim como se injeta uma cepa de vírus inativa ou enfraquecida em alguém para desencadear a produção de anticorpos com o objetivo de dar resistência contra futuras infecções, nós descobrimos que podemos fazer o mesmo com o cérebro", diz o pesquisador. "Nós o ajudamos a criar defesas mostrando a ele doses controladas de informações falsas e as técnicas usadas para produzir desinformação".

Van der Linden foi personagem do documentário de curta-metragem “Decoding deception”, produzido pela Academia Nacional de Ciências dos EUA (NAS), sobre cientistas que estão atuando no campo de pesquisa das fake news. Uma série de games e vídeos curtos que o pesquisador criou foram empregados em algumas campanhas em parceria com o Google na Europa, e um levantamento mostrou que podem reduzir em até 10% a taxa de pessoas ludibriadas por informações falsas.

Nomeações preocupantes

A NAS adota uma posição crítica em relação à boa vontade que as Big Techs declaram ter em ajudar no combate ao problema da desinformação nas redes. A academia defende uma abordagem em três frentes para combater o problema, primeiro atacando as fontes das fake news, depois interferindo em seu meio de propagação, e por fim tentando proteger as pessoas que são alvos.

Para além do recuo da Meta, há uma preocupação entre cientistas com o cenário nos EUA, o país que mais produz ciência sobre a desinformação, pois indicados de Trump vão assumir agências como a Fundação Nacional de Ciências (NSF) e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), que bancam esse tipo de iniciativa.

"Será que os recursos para essas iniciativas serão cortados? Vai haver supressão de pesquisas? Se uma pessoa receber informação falsa sobre vacinas, ela poderá ir ao site dos NIH para saber se aquilo é ou não verdade?", questiona Samaoya. "A grande questão é saber o que ocorrerá nos próximos quatro anos".

 

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