Mulheres em escritório: sexismo é tratar uma pessoa diferente ou discriminar contra ela devido a seu sexo, diz entrevistada (Monkey Business Images/Thinkstock)
Da Redação
Publicado em 18 de abril de 2016 às 21h20.
Eu estava a caminho do meu trabalho na semana passada, preparando minha entrevista com a autora feminista britânica Laura Bates sobre o livro dela, Everyday Sexism (algo como “O Sexismo de Todo Dia”), quando um homem me mandou sorrir.
Alguns minutos mais tarde – e ainda sem sorrir --, enviei um tuíte dizendo que tinha feito uma confusão em relação às minhas roupas. Um pai de meia-idade respondeu, sugerindo que eu “não usasse roupa nenhuma”.
Ironicamente, a edição americana do livro de Bates (e o Everyday Sexism Project, inspirado no livro) quer nos conscientizar justamente dessas “alfinetadas”, como a autora as chama, e nos levar a combatê-las.
Bates lançou o Everyday Sexism Project in 2012, depois de passar uma semana super complicada em que passou por “várias experiências terríveis em um período de tempo muito curto”, sendo assediada na rua, bolinada e seguida para casa por um homem. O que esses incidentes tinham em comum: fizeram Bates sentir-se violada, mas pareciam uma parte “normal” da condição de mulher.
Bates começou a conversar com outras mulheres e decidiu criar uma plataforma para compartilhar esse tipo de experiência com outras pessoas.
Hoje, quatro anos depois, o projeto está presente no Facebook, Twitter, Tumblr e no site Everyday Sexism.
Mais de 100 mil mulheres já usaram a plataforma para compartilhar suas histórias de discriminação por gênero. Os relatos incluem casos de assédio na rua, códigos de vestimenta sexistas, assédio sutil no trabalho e também casos mais graves de violência sexual, perseguição e discriminação gritante.
Todos os relatos ilustram os muitos modos, pequenos ou grandes, em que o sexismo estrutural e profundamente arraigado afeta a vida das mulheres.
Bates explicou por que tanto mulheres quanto homens precisam preocupar-se profundamente com essas questões e o que podemos fazer – ao nível legislativo, institucional e individual – para combater o sexismo cotidiano.
O que levou você a lançar o projeto Everyday Sexism?
O que desencadeou tudo foi uma semana péssima que tive. Fui seguida para casa por um homem que me estava cantando agressivamente e não queria aceitar um “não”. Um homem me bolinou no ônibus, e quando eu levantei a voz para falar o que estava acontecendo, todas as outras pessoas viraram a cara.
Ninguém interveio nem falou nada. Depois, eu estava andando na rua e dois homens gritaram comentários sobre meus seios. No final da semana eu percebi uma coisa: se tudo isso não tivesse acontecido na mesma semana, eu nem teria dado muita importância, porque é praticamente normal. Faz parte de ser mulher.
E aquilo realmente abriu meus olhos. O momento em que percebi: ser mulher no século 21 é isso. Então comecei a conversar com outras mulheres e meninas e perguntar se já tinham passado por alguma coisa assim. Fiquei simplesmente estarrecida com o número enorme de casos que ouvi. Cada mulher com quem falei tinha casos para contar.
E aquilo realmente abriu meus olhos. O momento em que percebi: ser mulher no século 21 é isso.
Quando tentei conversar sobre isso, as pessoas cortavam a conversa. Me diziam:
“Não, o sexismo não existe mais. Hoje em dia as mulheres estão em pé de igualdade com os homens.” Então criei o projeto Everyday Sexism para reduzir a distância entre essa ideia de que a igualdade de gêneros é uma coisa que já foi conquistada e a realidade do que as mulheres ainda enfrentam e que é visto como “normal”.
Como você define o sexismo cotidiano?
O sexismo é tratar uma pessoa diferente ou discriminar contra ela devido a seu sexo. E eu usei o termo “cotidiano” porque queria destacar que essa discriminação é algo que afeta as mulheres e meninas em todos os níveis, quer seja assédio na rua, assédio no trabalho ou violência sexual. É uma ocorrência tão comum e corriqueira que muito sexismo já passou a ser visto como normal.
Como você falou, é muito fácil fazer pouco caso de cada incidente individual. Por que as pessoas deveriam se importar com instâncias de sexismo que aparentemente são insignificantes?
Uma coisa que o projeto mostrou muito claramente é a ligação entre as coisas “sem importância” e os abusos mais sérios. Muitas vezes nos mandam não causar confusão por causa de um assédio sofrido na rua ou nos dizem que estamos nos incomodando por nada quando reclamamos do sexismo na mídia.
Mas, pelos relatos que recebemos, dá para perceber que essas coisas exercem um efeito dominó. Por exemplo, as mesmas palavras e frases lançadas contra uma mulher na rua são usadas contra uma mulher no trabalho ou contra uma vítima de violência doméstica. Podemos ver como os incidentes podem virar uma escalada. Se uma mulher rejeita ou ignora um homem que a esteja assediando na rua, ele pode se enfurecer e agredi-la sexualmente ou segui-la para a casa dela.
Acho que não é realista dividir essas coisas em compartimentos estanques – dizer que tudo bem tratar a mulher como cidadã de segunda classe em alguns espaços ou que tudo bem ver o corpo da mulher exposto em espaços públicos como se fosse um pedaço de carne, mas que é preciso tratá-la igualmente no trabalho.
As coisas não funcionam assim. Quando você normaliza essas alfinetadas cotidianas, cria-se um ambiente que possibilita incidentes mais graves.
Nos Estados Unidos, onde três mulheres por dia são assassinadas por um companheiro (homem) ou ex-companheiro, acho que podemos contestar discursos que sugiram que a mulher seria inferior ao homem.
Qual é o papel da intercompartimentagem no impacto do sexismo cotidiano sobre diferentes mulheres?
É enorme. Desde o começo recebemos contribuições de pessoas que sofriam sexismo, mas também outras formas de preconceito. Não é possível compartimentar essas coisas, porque não é assim que elas são sentidas pelas mulheres. A mulher não sai de casa um dia e vivencia homofobia ou racismo e outro dia é alvo de sexismo.
Ouvíamos relatos de uma mulher deficiente física a quem falavam para fazer dança do poste com sua bengala. Ou de uma mulher que estava andando na rua com sua companheira e foi perseguida na rua por homens perguntando se podiam ficar com elas ou filmá-las. Ou de uma mulher negra a quem um homem em uma entrevista de trabalho falou sobre sua fantasia de transar com uma negra “exótica” ou “apimentada”.
Quando você normaliza essas alfinetadas cotidianas, cria-se um ambiente que possibilita incidentes mais graves.
As coisas pelas quais essas mulheres passam ilustram muito bem porque a intercompartimentagem é tão importante quando começamos a atacar o problema.
Combater a disparidade salarial entre homens e mulheres não funciona direito se não incluirmos na estratégia o fato de mulheres negras receberem muito menos que mulheres brancas. Não adianta criar leis contra a violência doméstica se elas não levarem em conta o fato de que mulheres deficientes físicas sofrem duas vezes mais violência doméstica que as mulheres não deficientes.
Como o sexismo cotidiano se manifesta no trabalho, especificamente?
Analisando os mais de 100 mil relatos que já recebemos, a categoria mais comum de denúncias é de mulheres no local de trabalho. E é também o local de trabalho o lugar onde as pessoas mais se recusam a acreditar que isso esteja acontecendo.
Especialmente nos locais de trabalho é comum que as mulheres sejam silencionadas, que as pessoas não acreditem nelas, que façam pouco caso de suas queixas, e que as mulheres não tenham coragem de reclamar de abusos porque sentem insegurança econômica. Elas têm medo de perder o emprego, de ser rebaixadas ou deixadas de escanteio.
E é óbvio que essa é uma área intercompartimentada. O sexismo no local de trabalho afeta desproporcionalmente as trabalhadoras de baixo salário e aquelas cujos empregos não encerram segurança. Também são desproporcionalmente grandes as chances de essas mulheres serem mães solteiras e pessoas de cor.
O sexismo cotidiano no trabalho começa já na entrevista de trabalho, quando se pergunta à mulher com quem ela deixa os filhos enquanto trabalha e quais são seus planos para ter filhos. O sexismo inclui o assédio sexual, que abrange desde casos em que o rosto de mulheres é fotoshopado em cima de imagens pornográficas e as imagens são circuladas pelo escritório, até casos em que pessoas fazem perguntas inapropriadas às mulheres sobre sua vida sexual.
Ou a discriminação pode ser muito sutil, como quando sempre se pede à mulher presente que faça as anotações em reuniões, ou quando alguém supõe que uma profissional mulher ocupa cargo mais júnior que seu colega homem. Também pode ser discriminação declarada, como quando um chefe diz a uma profissional que ela não será levada em conta para promoções devido ao “risco maternidade” (a própria maternidade é toda uma área de discriminação enorme).
Nos casos mais extremos, recebemos denúncias de mulheres que foram vítimas de violência sexual no local de trabalho.
Outra coisa que ouvimos muito é sobre mulheres que procuram o departamento de RH ou denunciam um problema ao seu gerente – algo que, é claro, nem todo o mundo tem a possibilidade de fazer – e recebem respostas do tipo:
“Como mulher que trabalha com ciência, será que você realmente quer que isso conste de seu histórico?” ou, se o CEO for um homem mais velho, “é claro que ele assediou você – o que você esperava?”
Qual tem sido a reação dos homens ao projeto?
São reações de vários tipos. Tivemos muito apoio da parte de homens, muito mesmo. Muitíssimos homens escrevem para dizer que ficaram chocados, que o projeto abriu seus olhos para o problema e que eles querem fazer parte da solução. É o caso especialmente de homens que são pais. Muitos homens disseram que o projeto os motivou a querer fazer parte da luta contra o sexismo.
Não acho contraditório dizer que o sexismo afeta os homens e tem importância para eles, mas que tem impacto maior sobre as mulheres.
Infelizmente há uma pequena minoria de homens que reagiram com agressão. Recebo centenas de ameaças de estupro e ameaças de morte de homens que morrem de medo da ideia de falar sobre igualdade, isso devido à ideia equivocada de que falar dos direitos da mulher significa querer tirar alguma coisa do homem.
A única maneira de reagir que eles conhecem é tentar nos silenciar. É irônico, porque eles o fazem de maneiras incrivelmente misóginas. Recebo mensagens do tipo “sexismo não existe, sua vagabunda”.
Perto do final do livro você dedica um capítulo aos homens.
Como o sexismo cotidiano os afeta, na sua opinião?
O impacto sobre os homens é enorme. Ouvimos relatos de meninas que são vítimas de bullying na escola, são tratadas com escárnio e lhes é dito que não podem jogar futebol. Enquanto isso, garotos da mesma idade são ridicularizados se querem fazer aula de dança, que é visto como coisa de menina.
Ou ouvimos o caso de um homem que pediu licença-paternidade do trabalho e o pedido foi negado, e na mesma semana recebemos uma denúncia de uma mulher a quem uma promoção foi negada porque considera-se que ela apresenta “risco maternidade”.
São os mesmos estereótipos ultrapassados de gênero que têm impacto negativo sobre as pessoas, independentemente de seu sexo. Se você considera que o índice de suicídio é muito mais alto entre homens que entre mulheres, é um exemplo clássico.
Porque a ideia é que os homens são durões, que os garotos grandes não choram, que homem que é homem não fala de seus sentimentos. Enquanto isso, reza a ideia, as mulheres são emotivas, são histéricas, são regidas pelos hormônios. Acho que o fato de homens não conseguirem expor seus sentimentos influi muito sobre a possibilidade de pedirem ajuda quando precisam dela.
Interessa a todo o mundo acabar com o sexismo. Mas às vezes, quando você fala do assunto, as pessoas dizem:
“Bem, é uma questão de igualdade e afeta os homens também, então por que não chamar a questão de igualismo ou de humanismo?” Precisamos dar nome ao problema para resolvê-lo.
E a parte “feminina” está ali porque são as mulheres, de modo desproporcional, que sofrem opressão estrutural e sistêmica com base em seu sexo. São as mulheres que sofrem a maior parte da violência sexual, e ao longo da história sempre foi assim. Não acho contraditório dizer que o sexismo afeta os homens e tem importância para eles, mas que tem impacto maior sobre as mulheres.
Então como podemos combater o sexismo cotidiano de modo produtivo?
Precisamos enfrentar o problema em todos os níveis diferentes. Podemos pressionar o governo a criar leis que beneficiem as mulheres. Por exemplo as leis sobre licença-maternidade: os Estados Unidos é o único país industrializado do mundo que não garante licença-maternidade paga.
Ao nível organizacional, há muita coisa que as empresas poderiam fazer em matéria de licença dividida entre pais e mães, horários de trabalho flexíveis e combater a desiguldade salarial entre homens e mulheres. Ao nível institucional, as universidade precisam fazer mais para combater a violência sexual no campus.
Em algum momento, cada um de nós tem a oportunidade de modificar o que é visto como normal.
E há todo um nível individual. Acho que talvez a maior mudança necessária seja nas atitudes individuais em relação às mulheres. Sabemos que mudar as leis é importante, mas nem sempre isso se traduz em mudanças concretas na vida das pessoas. Sabemos que a discriminação sexual no local de trabalho é ilegal, mas também sabemos que ela acontece e afeta as mulheres. Tudo isso é assustador e frustrante, porque nem sempre existe uma solução fácil.
Mas cada um de nós pode fazer sua própria pequena contribuição, em sua própria esfera de ação, porque convenhamos: o sexismo está em todo lugar. Todo o mundo já ouviu alguma coisa discriminatória ser dita no trabalho, ou viu algalguém ser assediado, ouviu um amigo contando uma piada sexista ou chamando uma mulher de vagabunda.
Ou, se temos filhos, temos que decidir como conversar sobre consentimento sexual com nossos filhos meninos e meninas.
Em algum momento, cada um de nós tem a oportunidade de modificar o que é visto como normal. Se quisermos ver uma verdadeira mudança acontecer, cada um de nós tem que assumir a responsabilidade por isso.
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