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Por que a manifestação nazista é permitida nos EUA

Os manifestantes de extrema-direita se valem da primeira e da segunda emendas da Constituição, que autorizam liberdade de manifestação e porte de armas

Milícia supremacista branca: manifestantes tinham armas mais potentes que as da polícia (Joshua Roberts/Reuters)

Milícia supremacista branca: manifestantes tinham armas mais potentes que as da polícia (Joshua Roberts/Reuters)

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Camila Almeida

Publicado em 14 de agosto de 2017 às 16h08.

Última atualização em 17 de agosto de 2017 às 15h18.

Quase 100 anos se passaram desde a fundação do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, idealizado por Adolf Hitler em 1920, mas seus ideais ainda perduram. Enquanto ficou preso, após tentar tomar a cidade de Munique, Hitler escreveu a obra Mein Kampf (Minha Luta), onde os ideais nazistas foram gravados e publicados em 1925. Seus princípios para a supremacia alemã, após a derrota na Primeira Guerra Mundial, incluíam racismo, ódio aos judeus, militarismo e ultranacionalismo como forma de retomar territórios perdidos e ampliar seu poderio. A história, todos conhecemos: pelo menos seis milhões de judeus foram exterminados pelo regime nazista, que deu início à Segunda Guerra Mundial.

O levante que o mundo assistiu boquiaberto, no último sábado 12, nos Estados Unidos, retoma esses ideais. Ao caminhar pelas ruas da cidade de Charlottesville, no estado da Virgínia, a menos de 200 quilômetros da capital Washington D.C., cerca de 1.000 americanos de ultra-direita entoaram cânticos como “judeus não vão tomar nosso lugar” e bradaram que “vidas brancas importam”.

Para se impor frente à manifestação racista, grupos como o “Black Lives Matter” convocaram um ato de resistência emergencial. Mas um jovem branco, dirigindo um carro, atropelou uma série de pessoas que se posicionavam contra os extremistas. Três pessoas morreram, sendo uma mulher e dois policiais, e mais de 30 ficaram feridas.

Após o incidente, que a organização Southern Poverty Law Center descreveu como sendo “o maior encontro do ódio em décadas”, o presidente americano, Donald Trump, se pronunciou, afirmando em sua conta na rede social Twitter que “todos devem se unir e se posicionar contra o que o ódio representa”, e que “não há espaço para esse tipo de violência nos Estados Unidos”. Depois, nesta segunda-feira, ele subiu o tom ao chamar os manifestantes de “repugnantes”.

“O que há de mais grave nesta manifestação é a união de movimentos, com diferentes grupos racistas, extremistas religiosos e neonazistas. Os neonazistas fizeram campanha para o Trump, são da base eleitoral do presidente, e ele não se manifestou imediata e claramente sobre isso. Mesmo que se manifeste depois, já será tarde demais”, diz a antropóloga Adriana Dias, pesquisadora da Unicamp que estuda o crescimento de grupos extremistas no Brasil e no mundo.

O fato é que a campanha eleitoral de Trump, ao longo de 2016, foi baseada em discursos nacionalistas, militaristas, xenófobos e de ódio racial e religioso, especialmente contra mexicanos, negros e muçulmanos. Aqueles que cultivavam ideais extremistas de forma velada passaram a se sentir à vontade para expressar seus posicionamentos, ainda que, dos 45.000 habitantes da cidade de Charlottesville, 86% votaram, nas últimas eleições, pela presidência de Hillary Clinton, escolhida para ser sucessora do primeiro presidente negro que os Estados Unidos tiveram, Barack Obama.

As perguntas

A questão que fica é até que ponto esses posicionamentos se enquadram no direito dos cidadãos de expressar suas visões políticas, e quando as manifestações de grupos anti-imigração e nazistas chegam a uma real violação de tratados internacionais de direitos humanos, e da própria convenção de direitos humanos americana, de 1969. Nos Estados Unidos, a discussão tem como fundo a Primeira Emenda da Constituição, que garante a “liberdade de expressão”, de “imprensa” e o “direito das pessoas de se reunirem pacificamente” – e impede o Congresso de impor qualquer tipo de sanções a essas liberdades.

“Os Estados Unidos são um país que oferece larga base constitucional de proteção ao discurso de ódio, enquanto que, na Europa, protestos como esse são impensáveis, porque as autoridades nem permitiriam que fossem organizados. A brutalidade do Holocausto teve um impacto conclusivo na prática judicial em relação ao discurso de ódio”, afirma o jornalista Nenad Zivanovski, PhD em estudos sobre discurso de ódio e integrante da organização Hate Speech International, que investiga investidas extremistas do mundo.

Ainda assim, mesmo que a Primeira Emenda ofereça larga base para as chamadas liberdades individuais, nem tudo é permitido. Como a Constituição americana é enxuta (com apenas 27 emendas, que são os artigos principais), há uma grande força na chamada jurisprudência, isto é, o histórico das decisões dos juízes. E tradicionalmente, os juízes vem colocando fora da regra da Primeira Emenda exceções como ameaças, pornografia infantil e insultos.

Um caso famoso da jurisprudência é o do juiz Oliver Wendell Holmes Jr., que viveu no século 19 e afirmava que a liberdade de expressão pode sim receber sanções se apresentar “um perigo claro” às pessoas. Além disso, a Convenção Americana dos Direitos Humanos, assinada pelos Estados Unidos em 1969, proíbe disseminação de ódio nacional, racial ou religoso – o que se enquadra perfeitamente nas manifestações de Charlottesville.

Por outro lado, um dos argumentos mais fortes a favor das amplas garantias da Primeira Emenda é o fato de a liberdade de expressão ser usada como defesa para que minorias expressem suas opiniões de forma livre, ainda que as visões sejam contestadas pela maioria. Isso pode ser importante na luta por direitos para minorias como os negros e os imigrantes, mas problemático quando as minorias em questão são grupos racistas e xenofóbicos, como a Ku Klux Klan, que na véspera do protesto de Charlottesville, afirmou em alto e bom som nas redes sociais que levaria armas para o protesto.

O porte de armas, inclusive, é outro ponto de discussão na manifestação de Charlottesville. Muitos dos civis presentes portavam armas, embora nenhum tiro tenha sido efetivamente disparado – a morte e os ferimentos no sábado foram causados por brigas corpo a corpo e por um atropelamento. Ainda assim, com centenas de pessoas armadas – e furiosas – em uma manifestação, o pior poderia ter acontecido. Embora o porte de armas por civis em situações como essas soe alarmante, esse status é também garantido pela Constituição, dessa vez pela Segunda Emenda, que estabelece que “o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido”.

O governador de Virginia, Terry McAuliffe, ao defender a ação da polícia (oua  falta dela) no confronto, disse que “80% das pessoas [na manifestação] tinham armas semiautomáticas” e, por isso, a decisão mais sábia foi não intervir de forma tão drástica. “A milícia tinha equipamento melhor que o da nossa polícia”, disse.

Shannon Watts, fundadora do movimento anti-armas “Moms Demand Action” escreveu em seu Twitter que “a radicalização” dos Estados Unidos é culpa da NRA, associação nacional de rifles que faz intenso lobby pela continuidade da permissão do porte de armas.

No início deste ano, em um discurso na sede da NRA, Trump afirmou que “os oito anos de ataque à Segunda Emenda chegaram a um final avassalador” e que os membros da organização agora tinham na Casa Branca “um verdadeiro amigo”. Nas eleições de 2016, a NRA doou mais de 9 milhões de dólares à campanha de Trump, e gastou outros 12 milhões de dólares atacando a candidata democrata, Hillary Clinton – que também era favorável a mais regulações para a venda de armas.

Em 2016, o ex-presidente Barack Obama impôs algumas restrições para deixar as condições de compra de armas mais rigorosas, exigindo, por exemplo, que os vendedores de armas tenham licenças e estabelecendo que seja checado o histórico criminal dos compradores. Ainda assim, esses foram apenas decretos executivos, que não passaram pelo Congresso, de modo que as leis dos Estados, somadas às interpretações da Segunda Emenda, acabam se sobrepondo às restrições.

Na ocasião, 70% dos americanos concordavam com a ideia de regulações para os compradores, mas isso não impediu regulamentações mais rigorosas de de serem rejeitadas pelo Congresso, fortemente influenciado por associações lobistas como a própria NRA. Em estados como Alaska, Nebraska, Alabama e a própria Virginia, as exigências para se comprar uma arma são bem menores.

Desde 1959 

Apesar de o episódio do último fim de semana ter chocado o mundo, a história do nazismo americano enquanto movimento político também não é de hoje. O Partido Nazi Americano foi fundado em 1959, por George Lincoln Rockwell, inspirado pelos ideais de Hitler. Durante a década de 1960, seu grupo de seguidores tentava fazer frente aos avanços que o líder Martin Luther King Jr. estava alcançando na luta por direitos civis e igualdade para a população negra. Investidas pela supremacia branca nunca deixaram de ocorrer — em 2015, nove pessoas foram mortas por um extremista branco numa igreja de maioria negra em Charleston.

Nos últimos anos, a Europa tem assistido ao crescimento de grupos ultranacionalistas, que fizeram crescer a força de movimentos de extrema-direita como o partido francês Frente Nacional, da candidata à Presidência Marine Le Pen, e o Alternativa para a Alemanha, além de grupos ainda mais radicais, como o francês Movimento Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente (Pegida), que tornou-se um partido político neste ano.

O extremismo chegou a tal ponto que, em maio deste ano, por exemplo, um grupo de extrema-direita francês, o Génération Identitaire, levantou em poucos dias 100.000 dólares para uma campanha que promete pagar navios e uma equipe marítima para barrar fisicamente imigrantes de chegarem à Europa, afirmando que as ONGs de direitos humanos estavam “colocando em risco o futuro do continente”.

Na Polônia — país que Trump visitou no mês passado e onde é extremamente popular —, um homem que defendia a supremacia branca abriu a garganta de dois passageiros em junho, após uma discussão no metrô. Mesmo com o país em luto, grupos de extrema-direita, chamados de altright, organizaram uma manifestação em defesa do nacionalismo branco e da “liberdade de expressão”.

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