Encontro de representantes do Mercosul e da União Europeia, em junho de 2019: Num contexto de redução do comércio global, o acordo com a UE desponta como uma esperança sobre a expansão das trocas de bens e de serviços (Thierry Monasse/Getty Images)
Filipe Serrano
Publicado em 7 de setembro de 2019 às 06h57.
Última atualização em 7 de setembro de 2019 às 06h57.
A conclusão das negociações sobre um acordo de associação entre o Mercosul e a União Europeia (UE), o primeiro acordo birregional da história, antecipa benefícios econômico-comerciais e político-institucionais de médio e longo prazo para o Brasil e também para os seus sócios. Representa, talvez, em dimensão mais ampla, um primeiro e efetivo sinal de que o país caminha para a esperada abertura da sua economia.
Segundo estimativas do Ministério da Economia, o acordo, se e quando entrar em vigor, poderá ampliar as exportações brasileiras para a UE em até US$ 100 bilhões nos próximos quinze anos, além de atrair investimentos da ordem de US$ 113 bilhões no mesmo período. Até 2035, a expectativa é gerar ganhos de US$ 87,5 bilhões para o PIB brasileiro, podendo alcançar até US$ 125 bilhões se considerados eventuais ganhos gerados pelo aumento da produtividade total dos fatores de produção.
Não é pouco. Ainda mais se se levar em conta que o Brasil, junto com seus sócios do Mercosul, há mais de vinte anos iniciou, mas nunca completou, um ciclo de liberalização comercial autônoma. Considerações acerca da necessidade de proceder a um novo ciclo, bem como propostas concretas a respeito, fazem parte do position paper do Núcleo de Comércio Internacional do Cebri, publicado no último trimestre do ano passado.
Os principais benefícios para o Mercosul devem traduzir-se em ganhos institucionais, tornando o bloco mais coeso, mais eficiente e, sobretudo, mais fiel a sua própria declarada vocação e aos seus próprios compromissos de consolidação e aprofundamento como união aduaneira. A participação de empresas europeias em licitações para compras governamentais, por exemplo, fortalecem a concorrência e contribuem para o objetivo de redução de custos.
Cerca de quinze anos após a troca inicial de ofertas de bens e serviços entre os negociadores do Mercosul e os representantes da Comissão Europeia, o texto acordado a nível técnico constitui passo significativo na agenda de liberalização comercial anunciada pelo novo governo brasileiro e deve servir de apoio à popularidade dos altos dirigentes, seja em princípio, seja em final de mandato. Em nível global, o encerramento do processo negociador envia mensagem clara de compromisso das partes com a expansão do comércio internacional num contexto de tentativa de reforma da Organização Mundial de Comércio (OMC), tensões comerciais em alta e disputas entre as duas maiores economias do mundo.
Ganhos em acesso a mercados e produtividade
No plano tarifário, o eventual acordo deve facilitar o acesso ao mercado europeu de produtos agrícolas de interesse exportador do Brasil, um número dos quais já se acham liberalizados. Por outro lado, ao estabelecer restrições quantitativas na forma de quotas tarifárias para proteína animal, açúcar e etanol, afasta-se o acordo da concepção estrita de livre comércio em prol de uma solução “realista” em face do atual estado da Política Agrícola Comum.
Quanto ao setor industrial, contempla-se a gradual eliminação da Tarifa Externa Comum (TEC) europeia para importações da totalidade dos produtos, embora – deva-se notar – grande parte deles já se encontrem plenamente isentos de impostos. Já a gradual redução da tarifa aplicada à importação de bens industriais europeus – com prazo de até quinze anos em setores considerados sensíveis – poderá contribuir em maior ou menor medida para o aumento da produtividade da indústria brasileira, estagnada há décadas.
Finalmente, em se tratando do comércio de serviços, amplia-se a cobertura dos compromissos de liberalização assumidos no âmbito da OMC, abrangendo os setores financeiros, de comunicação, de distribuição, de construção, entre outros.
Para além de tarifas
Em linha com o disposto nos acordos regionais de última geração, o instrumento negociado entre Mercosul e União Europeia inclui temas como facilitação de comércio, barreiras técnicas, medidas sanitárias, fitossanitárias e zoossanitárias, e propriedade intelectual. Em matéria de convergência regulatória, preveem-se mecanismos para identificar e inibir barreiras injustificadas, incluindo anexo relativo à aceitação mútua de testes para avaliação de conformidade.
Em matéria de propriedade intelectual, destaca-se o reconhecimento de produtos distintivos ou típicos das respectivas regiões a partir de sua indicação geográfica. No caso do Brasil, a lista de produtos protegidos inclui cachaça, queijos, vinhos e cafés.
Outros compromissos acordados dizem respeito a proteção ambiental e respeito a direitos trabalhistas, e que podem ser considerados como ganhos institucionais para os membros do Mercosul.
Anatomia do comércio entre os blocos
Em 2018, a corrente de comércio entre Mercosul e União Europeia somou US$ 96,8 bilhões, com superávit de US$ 7,2 bilhões para o bloco sul-americano. Na pauta das exportações tradicionais do Mercosul, sobressaem os bens primários, tais como grão de soja, petróleo bruto, minério de ferro, celulose e café em grão – que, em conjunto, representaram, no ano passado, 33% do total. Ressalta-se aqui a absoluta preponderância do Brasil, responsável por 81% do total das vendas do Mercosul para a União Europeia.
Por seu turno, as compras do Mercosul concentram-se em produtos manufaturados, com destaque para petróleo refinado, medicamentos e autopeças. O Brasil absorve 78% dessas importações.
Os respectivos perfis tarifários revelam o contraste entre os graus de abertura apresentados pelas economias regionais: enquanto a tarifa média aplicada pela UE é da ordem de 6%, a média do Mercosul alcança o dobro, 12%.
Significado político e próximos passos
Em vista do elevado grau de proteção tarifária praticada pelo Mercosul, em geral, e pelo Brasil, em particular, o resultado das negociações birregionais representa a primeira iniciativa concreta da agenda de liberalização comercial anunciada pelo atual governo, sinalizando aos agentes econômicos de diferentes procedências, especialmente os investidores domésticos e externos a disposição de proceder a uma ansiada abertura da economia brasileira.
Para os demais sócios do Mercosul, sobretudo a Argentina, a conclusão do processo negociador, iniciado há vinte anos e que poderia ter terminado há quinze, é vista e apresentada como um triunfo da administração de Mauricio Macri, candidato à reeleição à presidência ainda neste ano.
Nunca é demais reiterar que as obrigações acordadas devem gerar ganhos institucionais significativos para o bloco sul-americano, propiciando-lhe a oportunidade de corrigir distorções e avançar nos propósitos que inspiraram sua criação.
Num contexto de incertezas sobre os rumos do comércio global, mercê das disputas entre potências, do aumento das tensões em vários setores e sua repercussão sobre as economias emergentes, o projeto de acordo desponta como um facho de esperança capaz de favorecer a expansão das trocas de bens e de serviços, em apoio ao sistema multilateral encarnado pela OMC. Poderá igualmente influenciar positivamente negociações em curso com outros parceiros como Coreia do Sul, Singapura e Canadá. Eventuais controvérsias poderão vir a ser levantadas. Possíveis controvérsias levantadas por terceiros países em torno do regime acordado para automóveis serão vistas numa ótica liberal como externalidades positivas.
É preciso, finalmente, reconhecer que persistem obstáculos reais à entrada em vigor por parte da União Europeia das obrigações acordadas, a começar pelo processo de aprovação no Conselho Europeu, que só se inicia após longa lista de procedimentos que inclui “the legal scrubbing of the text”, exercício cuja duração não será inferior a cinco meses. É de se prever que em países em que o setor agropecuário é protegido e/ou subsidiado, o projeto não será recebido sem objeções. Nada impede, porém, que os países do Mercosul, em consonância com o discurso liberal dos seus dirigentes, passem a implementar unilateralmente o acordado, assim, de resto, pressionando a parte europeia a finalizar, dentro do menor prazo possível, a tramitação dos textos legais.
De qualquer forma, e ainda que desafiante, resta que a essência dos desdobramentos necessários à implantação do acordo evolua, idealmente, o mais rápido possível, em prazo no máximo de 5 anos e com a apresentação regular de relatórios de progresso. Os prazos inicialmente estimados de 10 ou 15 anos são compreensíveis diante do empreendimento, mas excedem necessidades que já comemoram longa data de espera e tornam-se ainda mais urgentes a cada dia que passa. Política externa junto a outras políticas públicas podem e devem ajudar na retomada do crescimento sustentável da economia para atender à sociedade como um todo, à luz dos desafios e macrotendências globais.
* José Alfredo Graça Lima é embaixador e vice-presidente do conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)
* Gabriel Torres é analista de projetos do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)