Kamala Harris: Pence e Harris são dois candidatos muito mais diferentes do que Trump e Biden (Elijah Nouvelage/File Photo/Reuters)
Victor Sena
Publicado em 7 de outubro de 2020 às 06h21.
Última atualização em 7 de outubro de 2020 às 09h13.
Debates entre candidatos a vice-presidente são uma curiosidade do processo político americano e, em anos normais, não costumam despertar grande interesse. Mas é claro que 2020 não poderia ser um ano mais anormal, e os dois confrontos restantes entre Joe Biden e Donald Trump ainda estão incertos por causa da doença do presidente americano, que está com covid-19. O encontro de hoje à noite entre e republicano Mike Pence e a democrata Kamala Harris ganhou uma importância improvável.
Para ser justo, já havia alguma expectativa para o confronto dos vices desde o desastre da terça-feira passada. Depois das repetidas interrupções e mentiras de Trump e da absoluta falta de civilidade dos candidatos diante de mais de 70 milhões de telespectadores, a ideia de aguentar outros 180 minutos de bate-boca entre os postulantes à Casa Branca era aterradora.
Apesar de sua lealdade inabalável, em suas aparições públicas Pence demonstra uma personalidade muito diferente da do chefe. Ex-deputado e ex-governador do estado de Indiana, Pence se comporta como um político tradicional. Em entrevistas coletivas, ele ouve as perguntas feitas por jornalistas. Pode não respondê-las diretamente, mas o faz com frases completas e uma voz serena, afiada durante anos apresentando programas de rádio e TV.
Harris, apesar de uma carreira política mais curta, também tem experiência no sparring verbal. Antes de tornar-se senadora, ela foi procuradora na Califórnia e está acostumada a apresentar seus argumentos oralmente diante de júris e sob o olhar atento de juízes.
Só a promessa de civilidade já seria um bom motivo para acompanhar o debate, mas as notícias dos últimos dias certamente vão colocar ambos os candidatos sob os holofotes.
Pence assumiu os compromissos públicos de Trump. Apesar de seguir tuitando enquanto se recupera na Casa Branca, o presidente americano ainda não está curado da covid-19 e não se sabe quando ele poderá voltar a participar de eventos públicos.
Pence certamente terá de responder perguntas sobre o comportamento de seu chefe e seus assessores mais próximos durante a pandemia. Desde a divulgação do diagnóstico de Trump, pelo menos 18 pessoas que estiveram perto do presidente também apresentaram resultados positivos. Além da primeira-dama Melania, a lista inclui cinco assessores presidenciais, três senadores e dois jornalistas.
Uma indicação do tom que pode se esperar dos republicanos foi dado por seus assessores. A comissão independente que organiza os debates decidiu instalar uma barreira de acrílico para proteger os candidatos e a moderadora, a jornalista Susan Page, do jornal USA Today.
“Se a senadora Harris quiser uma fortaleza à sua volta, que fique à vontade”, afirmou na terça-feira Katie Miller, uma porta-voz de Pence. Os candidatos estarão separados por uma distância de quatro metros. Ao contrário dos debates presidenciais, os vices tradicionalmente ficam sentados. Tanto Biden quanto Harris serão submetidos a testes rápidos antes do debate, e o uso de máscaras será obrigatório pelos assessores e familiares que estarão na plateia.
Pence também deve ser questionado sobre sua atuação no combate à pandemia: oficialmente, ele foi o responsável pela força-tarefa montada por Trump, apesar de o presidente ter aparecido quase todos os dias na TV no auge da crise. Os Estados Unidos registram mais de 7 milhões de infectados e pelo menos 208.000 mortos por complicações da Covid-19.
A resposta de Pence não deve ser muito diferente das oferecidas por Trump até aqui: o governo americano agiu rápido ao fechar as fronteiras com a China, providenciou equipamentos de proteção para médicos e enfermeiros e respondeu a todos os pedidos feitos pelos governadores.
Apesar dessa narrativa (que contém afirmações exageradas), a maioria dos americanos reprova a atuação do governo Trump na condução da pandemia, e a a doença do presidente trouxe a crise sanitária para o centro das atenções a menos de um mês da eleição.
Pence vai tentar pintar Kamala Harris como parte de uma suposta ameaça socialista. Quando disputava a candidatura presidencial, a senadora declarou-se a favor de propostas da ala mais à esquerda do Partido Democrata, como a cobertura de saúde gratuita para toda a população. Biden defende um misto de planos privados e públicos, mas essa mudança de Harris é um de seus potenciais flancos no debate.
A democrata também certamente será atacada por defender uma suposta “anarquia” nas ruas das grandes cidades americanas. Trata-se do argumento de Trump segundo o qual os democratas são coniventes com manifestações violentas e querem tirar recursos das polícias (o que Biden já negou repetidas vezes).
Pence e Harris são dois candidatos muito mais diferentes do que Trump e Biden, dois homens idosos (74 e 77 anos, respectivamente) e brancos.
Pence, 61, cresceu numa família católica de ascendência irlandesa e na universidade converteu-se evangélico. “Sou cristão, conservador e republicano, nesta ordem”, é um de seus bordões. O vice-presidente é um ferrenho opositor do direito ao aborto e acredita que casamento e a união de um homem e uma mulher.
Em 2015, quando era governador do estado de Indiana, Pence sancionou uma lei que na prática permitia que estabelecimentos comerciais se recusassem a atender clientes LGBTQ alegando violação de suas liberdades religiosas. Depois da enorme repercussão negativa, os legisladores do estado alteraram a lei.
Kamala Harris completa 56 anos no próximo dia 20 e é americana de primeira geração: seu pai imigrou da Jamaica, e sua mãe, da Índia. Harris é a primeira mulher não-branca a ser candidata a vice-presidente por um dos dois partidos que dominam a política americana.
Ela começou sua carreira política como procuradora em San Francisco, uma das mais progressistas cidades americanas. Em questões sociais, ela defende uma agenda muito próxima da ala esquerda do Partido Democrata, incluindo o direito ao aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo.
É possível que o debate de hoje seja uma prévia do que se verá daqui quatro anos, qualquer que seja o resultado da eleição do mês que vem.
Caso Trump seja reeleito, é provável que Pence dispute a candidatura do Partido Republicano em 2024. O mesmo vale para Harris. Se eleito, Biden terá 82 anos em quatro anos, e muitos consideram pequenas as chances de que ele busque a reeleição. Harris, como vice, seria uma candidata natural.
O debate, que acontece em um auditório da Universidade de Utah, começa às 22h (horário de Brasília) e será transmitido no Brasil pelas TV Bandeirantes e pela CNN Brasil, com tradução simultânea.
Também é possível acompanhar o debate via streaming pela internet e gratuitamente em sites da imprensa americana como New York Times, CNN e Washington Post, entre outros.