Rafah: Faixa de Gaza tem apenas outras duas passagens para saída e entrada de pessoas e mercadorias. (Adel ZAANOUN con Jonah MANDEL en Jerusalén/AFP)
Agência de notícias
Publicado em 1 de novembro de 2023 às 08h18.
Dezenas de estrangeiros deixaram nesta quarta-feira a Faixa de Gaza e atravessaram para o Egito através da passagem de Rafah, que foi aberta ao trânsito de pessoas pela primeira vez desde o início da guerra entre Israel e Hamas. A informação foi confirmada por repórteres da AFP no local.
Depois de as autoridades egípcias terem anunciado a abertura excecional da passagem para evacuar cerca de 90 feridos e 450 estrangeiros, um primeiro grupo atravessou o posto, que já havia sido utilizado para o envio de ajuda humanitária. A lista, no entanto, não inclui brasileiros, que aguardam desde o início da guerra pela passagem para o território egípcio antes de serem resgatadas pelo governo federal.
Pouco depois dos ataques terroristas do Hamas, em 7 de outubro, o governo de Israel emitiu um ultimato aos palestinos de Gaza para esvaziarem o norte do enclave, antes de uma invasão por terra. “Saiam agora,” disse o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, aos moradores da região que inclui a Cidade de Gaza, a mais importante e maior do território. Pelo menos 1 milhão de pessoas foram obrigadas a se retirar de uma vez só, em meio à destruição dos bombardeios.
A única saída viável de Gaza hoje é pela passagem de Rafah, no sul do enclave, na fronteira com a Península do Sinai egípcia. A passagem está sob controle do Egito desde um acordo fechado com Israel, em 2007, quando o Hamas tomou o poder na Faixa de Gaza e expulsou o grupo palestino laico Fatah para a Cisjordânia, onde controla a Autoridade Nacional Palestina, reconhecida pela ONU como legítima liderança dos palestinos.
Nos 16 anos seguintes, Israel e Egito mantiveram um duro controle do que, e de quem, entra e sai do território dominado pelo grupo terrorista. Pelo acordo, a passagem de suprimentos para Gaza por Rafah precisa de autorização israelense.
Em setembro, um relatório do Escritório da ONU de Coordenação de Assuntos Humanitários no território palestino denunciou o endurecimento das restrições na circulação pela passagem de Rafah, pela “ação recente do governo egípcio para conter atividades ilegais e a insegurança no Sinai”. De acordo com o texto, o Egito estava impondo “severas” restrições na movimentação de pessoas e “fechando túneis de contrabando”. De acordo com a organização, “consequentemente, a situação humanitária já frágil na Faixa de Gaza piorou”.
A Faixa de Gaza tem apenas outras duas passagens para saída e entrada de pessoas e mercadorias. Uma é a de Erez, que fica ao norte e leva ao sul do território israelense, e foi atacada pelo Hamas na invasão do dia 7 de outubro.
A outra passagem, de Kerem Shalom, serve apenas ao transporte de cargas e também está no sul de Gaza, na fronteira com Israel e perto do território egípcio. Segundo a rede de TV ABC News, vídeos mostram terroristas do Hamas cruzando por um buraco na cerca também na área deste posto de fronteira.
— Qualquer outra alternativa [além de Rafah, para a rota de fuga de Gaza] passaria por Israel, e isso é inviável — explicou ao GLOBO, em entrevista no mês passado, a professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Monique Sochaczewski. — O espírito de união israelense é intimidante, inclusive entre aqueles que são considerados pacifistas ou de esquerda, como os habitantes dos kibutz e alguns ativistas, muitos deles sequestrados pelo Hamas.
O cenário de "cerco total" em Gaza e a ameaça de uma invasão por terra em alta escala ao norte, depositaram sobre o Egito a pressão da comunidade internacional pela abertura de um corredor humanitário em Rafah, por onde entrem suprimentos e saiam os estrangeiros que estavam em Gaza, entre eles um grupo de brasileiros. O governo egípcio chegou a sinalizar que liberaria o comboio humanitário estacionado na fronteira, mas voltou atrás.
Especialistas em Oriente Médio apontam algumas razões por trás da relutância do governo do presidente Abdel Fattah al-Sisi, um ex-comandante militar que foi eleito em 2014, após um golpe derrubar o então presidente Mohamed Morsi, um ano antes. A principal delas é o temor de uma crise interna provocada por um possível fluxo de pessoas em busca de refúgio.
Uma das ameaças que uma entrada em massa de palestinos traz para al-Sis é o risco de infiltração de terrorista do Hamas no país. Na origem do grupo extremista palestino, na década de 1980, está uma forte ligação com a Irmandade Muçulmana, a organização islâmica fundamentalista que surgiu no Egito, na década de 1920, mas adquiriu relevância política e ideológica em diversas esferas do mundo islâmico.
A força da organização egípcia paira sobre o governo de al-Sisi. Após a Primavera Árabe, em 2011, e a queda do então ditador egípcio, Hosni Mubarak, os egípcios elegeram Morsi, ligado à Irmandade Muçulmana, e que, depois de deposto, morreu enquanto estava preso por acusações que incluíam vínculos com o Hamas e ameaça à segurança nacional.
Outro elemento na matemática política do presidente egípcio é o temor de ser arrastado para o centro da crise e se ver obrigado a se implicar diretamente na questão palestina. Por essa lógica, permitir a passagem de um grande número de habitantes de Gaza, mesmo como refugiados, para a Península do Sinai, no Egito, seria "reviver a ideia de que a região é o país alternativo para os palestinos", explicou Mustapha Kamel al-Sayyid, cientista político da Universidade do Cairo, ao jornal New York Times.
Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel anexou a região ao seu território, que foi retomado posteriormente em 1973, na Guerra do Yom Kippur. Na semana passada, al-Sisi instou os palestinos a não abandonarem sua terra e reafirmou a posição do país sobre a questão.
— O Egito não vai permitir que a causa palestina seja resolvida às custas de outras partes — afirmou na quinta.
Sochaczewski lembra que, além da questão interna, há também em jogo a relação com Israel.
— O Egito viveu uma contrarrevolução depois da Primavera Árabe e tenta se reconstruir, por isso o medo de uma nova instabilidade interna — disse Sochaczewski. — Além disso, a paz com Israel, que por muito tempo foi apenas um acordo formal entre Estados [desde 1979], hoje se tornou mais aquecida, com investimentos israelenses na economia egípcia.
O enclave sempre foi uma dor de cabeça para al-Sisi. Seus laços estreitos com Israel e os Estados Unidos colidem desconfortavelmente com as opiniões pró-palestinos do seu próprio povo.
— O presidente também desconfia do grupo terrorista Hamas, que governa a região desde 2007. Dezenas de milhares de palestinos invadiram em 2008 o Egito depois que o Hamas abriu um buraco na cerca da fronteira de Rafah — acrescentou oal-Sayyid.
Diplomatas ouvidos pelo New York Times apontaram que as negociações diplomáticas para a entrada da ajuda humanitária por Rafah estariam empacadas porque Israel queria que os comboios fossem revistados em busca de armas e não houve acordo sobre o mecanismo de triagem. Por isso, o governo egípcio também não teria liberado a saída de estrangeiros. Um vídeo publicado pela Reuters no domingo mostrou filas de caminhões estacionados na estrada para Gaza, na cidade egípcia de Arish, a cerca de 48 quilômetros da fronteira.
No domingo, o secretario de Estado americano disse, Antony Bliken, que esteve no Cairo, disse que teve uma “conversa muito boa” com al-Sisi sobre a abertura da passagem em Rafah. Blinken anunciou que o experiente diplomata David Satterfield chegará à região nesta segunda para tentar coordenar a entrada da ajuda humanitária pela fronteira egípcia. E afirmou que a passagem por Rafah será aberta em breve.
O Hamas lançou a "Operação Al-Aqsa Flood" para, segundo alega, defender a mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, palco de tensões entre palestinos e israelenses.
A Faixa de Gaza é um região palestina localizada ao leste do território israelense, a oeste pelo Mediterrâneo e ao sul pelo Egito. Mais de dois milhões de palestinos vivem na região, com quase 6.000 habitantes por km² — uma das densidades populacionais mais altas do mundo.
O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) não reconhece o Hamas como um grupo terrorista. Países como Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Austrália e nações da União Europeia apontam que o Hamas é uma organização terrorista.
Ismail Haniyeh lidera o Hamas desde 2017 e reside em Doha, Catar, desde 2020 devido às restrições de saída e entrada em Gaza, que enfrenta bloqueios em suas fronteiras tanto com Israel quanto com o Egito.
Na sua Carta de Princípios de 1988, o Hamas declarou que a Palestina é uma terra islâmica e não reconhece a existência do Estado de Israel.