O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (Jack Taylor / Stringer/Getty Images)
Gabriela Ruic
Publicado em 26 de julho de 2018 às 06h00.
Última atualização em 26 de julho de 2018 às 16h54.
São Paulo – Em um ano e meio na presidência dos Estados Unidos, Donald Trump cancelou tratados internacionais firmados por gestões anteriores, trocou farpas com aliados da União Europeia e está engajado em uma guerra comercial com a China. Por trás de suas ações está uma visão de que os esforços multilaterais, que ajudaram a moldar a ordem e o sistema internacional nas últimas décadas, já não atendem aos interesses dos Estados Unidos.
Para o cientista político e economista Marcos Troyjo, diretor do BRIC-Lab da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, os impactos que o governo Trump está provocando na ordem internacional são inegáveis. A questão é entender o tamanho do abalo que suas ações causarão.
“O mundo como o conhecemos acabou e o que será criado a partir deste desmantelamento ainda está para ser definido”, diz Troyjo, que lança em outubro um livro sobre o tema, chamado O Choque de Globalizações. Na obra, ele diz explorar a ascensão e a queda da globalização, bem como o fenômeno da “desglobalização”.
Depois de participar de um debate sobre o fim do multilateralismo na Câmara Americana para o Comércio no Brasil (Amcham), em São Paulo, Troyjo conversou com EXAME sobre a postura de Trump, o enfraquecimento da hegemonia americana e as oportunidades para a América Latina.
EXAME – Estamos observando em Trump uma repulsa aos esforços multilaterais. Em que medida essa postura abala a ordem e o sistema internacional?
Marcos Troyjo – Gosto de estabelecer uma diferença que nos ajuda a entender o que o Trump está fazendo. Vejo a ordem mundial como uma espécie de radiografia da distribuição dos fluxos de poder e riqueza no mundo, enquanto o sistema internacional é a construção de instituições que refletem os interesses das principais potências.
Este sistema, que vigora desde os anos 40, é formado por uma agência de liquidez, o Fundo Monetário Internacional, um banco de fomento, que é o Banco Mundial, e um mecanismo de solução de controvérsias comerciais, a Organização Mundial do Comércio. Essas instituições atuam em coordenação de modo a defender os valores ocidentais, cujos maiores apoiadores, até agora, eram os americanos.
O que está acontecendo de mais profundo no governo Trump é que a ordem internacional mudou e, portanto, o sistema tem que mudar. Quando esse sistema foi criado, os Estados Unidos eram a principal potência econômica e militar e o maior produtor mundial agrícola. O país não perdeu essas posições de proeminência, mas não é mais hegemônico. Se o PIB americano correspondia a 50% do PIB global nos anos 40, hoje equivale a cerca de 20% a 25%.
É natural que muitas das concessões econômicas que os Estados Unidos fizeram em nome desse sistema geopolítico mudem, porque também mudou a ordem internacional. A OTAN ainda faz sentido sem a Guerra Fria? Faz sentido continuar tratando a China com o critério de nação mais favorecida se ela já tem um PIB nominal de 13 trilhões de dólares?
Trump está questionando essas coisas, mas, na minha opinião, ele o faz utilizando os diagnósticos errados. Ele faz uma interpretação incorreta da evolução da economia do país. Essas mudanças no sistema internacional poderiam ser feitas de outras formas.
Acordos comerciais plurinacionais que estabelecem padrões, como trabalhistas ou de proteção ambiental, seriam ferramentas mais eficientes para influenciar mudanças internas na China do que uma confrontação comercial aberta que irá prejudicar as empresas americanas.
A questão é saber qual o tamanho do abalo. Tanto a ordem quanto o sistema internacional são abalados com o governo Trump. O mundo como conhecemos acabou. Está acabando. E o que será criado a partir desse desmantelamento é algo que ainda está para ser definido.
EXAME – Numa entrevista recente, Henry Kissinger (ex-secretário de Estado dos Estados Unidos na década de 70) disse que Trump, voluntária ou involuntariamente, está marcando o início de uma nova era. Mudanças virão, mas ainda não se sabe em que medida.
Troyjo – Acho que esse tema toca Kissinger muito pessoalmente. Tenho uma tese de que a China é o filhote do Kissinger e do Nixon. De 1949 a 1978, a China era um fracasso completo. Mas aí, por interesse geopolítico dos Estados Unidos, criou-se aquele cisma sino-soviético, quando os americanos ofereceram uma série de benefícios para a China, sobretudo o status de nação mais favorecida no comércio bilateral com os EUA.
Os custos laborais na China eram tão baixos que empresas americanas viram sentido em levar suas operações para o território chinês, fazendo do país uma gigantesca plataforma de exploração.
A China como uma hiperpotência econômica é um filhote dessa atividade diplomática cujo principal orquestrador foi o Kissinger. Ele tem culpa no cartório. Uma boa culpa, já que é melhor ter uma China próspera do que beligerante.
EXAME – Em qual direção o mundo caminha na sua opinião?
Troyjo - Creio que Trump será um presidente de um mandato. Não será reeleito em 2020. Se esse for o caso, os EUA voltarão ao mainstream, mas sem abandonar por completo alguns questionamentos levantados por Trump.
Estamos numa fase em que o que era antigo ainda não morreu e o que é novo ainda não apareceu. Do ponto de vista do comércio, o que vejo emergindo é uma OMC como centro de boas práticas e com menor poder para mudanças significativas. Essas, acredito, irão se originar de acordos multilaterais -- regionais ou não -- como o TPP “light” aprovado no começo do ano (o Acordo Transpacífico que foi negociado entre 11 países após o recuo de Trump).
É possível um retorno ao velho mundo das esferas de influência. Um exemplo é a iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota” (programa de construção que visa para recriar rotas comerciais da Ásia para a África e a Europa), promovida pela China. Os americanos vão sair do isolamento e vão voltar a olhar as Américas e a Europa dentro do círculo do seu compasso.
Aposto que essa desglobalização que estamos vivendo, e que tem Trump como protagonista, é de curta duração. Em breve, voltaremos a reglobalizar, mas não necessariamente seguindo a mesma estrada em que viajamos até agora. Prevejo um mundo com característica de um condomínio, em que os principais atores serão a China e os EUA.
EXAME – Em que medida a redução da hegemonia dos Estados Unidos no espectro global pode se traduzir em oportunidade para a América Latina?
Troyjo - Não quero usar a palavra pessimista, mas não consigo ver oportunidades para a América Latina do ponto de vista do comércio intrarregional. Com exceção do México, que é menos dependente de commodities agrícolas, a relação intra-latinoamericana é menos óbvia do que a relação América Latina-Europa, na qual há uma complementaridade econômica e na qual faz sentido um grande fluxo de comércio.
Há ainda a relação América Latina-Ásia. É algo maluco: com essa metamorfose da China, que deixou de ser um país low-cost, muitos dos setores industriais chineses estão migrando para sua vizinhança geoeconômica.
Se o empresário chinês tem uma fábrica de meias na periferia de Pequim, ele irá levá-la para a periferia de Hanói (Vietnã) ou de Jacarta (Indonésia). Quando essas atividades industriais chegam a estes países, o PIB sobe. A China está fazendo com os outros o que os outros fizeram com ela e, como resultado, temos um aumento dramático no PIB regional.
Mesmo que a taxa de crescimento do PIB chinês desacelere, existem 1,3 bilhão de indianos e 300 milhões de indonésios. Juntos, eles são uma fatia significativa da população mundial que vai crescer mais que 5% ao ano, todos os anos, pelas próximas duas décadas. Como a renda per capita nesses países é relativamente baixa, e sobe nesta proporção, os recursos irão sobretudo para a alimentação e infraestrutura. E isso é uma boa notícia para a relação América Latina-Ásia.
EXAME – Nesse contexto, existe uma oportunidade de aumentar o comércio com demais países da Ásia?
Troyjo – Acredito que sim. Aliás, eu diria até o seguinte. Nós nos acostumamos com a narrativa de que, com a ascensão da China, houve um boom de commodities nos anos 2000 muito favorável aos países latino-americanos e que esse ciclo acabou. Por causa disso, estamos em dificuldades e estaremos para sempre. Não é bem assim.
Se notarmos os sinais que vêm da Ásia, veremos que há outro ciclo de commodities. Há um deslocamento da demanda por mercadorias agrícolas e minerais para outros países, que é definitivo e é uma grande oportunidade para a América Latina.
O que eu acho é que existe um gigantesco potencial para uma parceria intra-latinoamericana em dois pontos. Primeiro, os países deveriam se coordenar para atrair investimentos para projetos de infraestrutura. E os tratados latino-americanos, como o Mercosul, deveriam ser vitais para coordenar posições de modo a receber investimentos estrangeiros para a infraestrutura.
O outro ponto é a construção de padrões comuns na América Latina. Não só padrões técnicos, como as tomadas elétricas, mas padrões para as regras ambientais, por exemplo. Isso permitiria que os países criassem uma estrutura importante para irradiar prosperidade para os outros povos. Essas são as principais oportunidades de integração e coordenação entre os países da América Latina.