TRUMP: “acredito que até mesmo o porta-voz da Casa, Paul Ryan, sabe que está contando uma mentira deslavada” / Nathan Mattes/EXAME Hoje
Da Redação
Publicado em 11 de novembro de 2016 às 14h00.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h34.
Nathan Mattes Schäfer, da Cidade do México
Na noite de 8 de novembro, conforme a aeronave perdia altitude e as luzes da Cidade do México se faziam discerníveis através da neblina e da chuva forte, o passageiro à minha frente fitava o celular, apreensivo, esperando a aterrissagem e a permissão para reativar a conexão de seu aparelho. Pensei que queria comunicar-se com alguém próximo, avisar da chegada, mas a primeira coisa que fez quando tocamos o solo do aeroporto Benito Juárez foi abrir o Twitter e clicar num link mostrando a apuração da eleição presidencial dos Estados Unidos. Cabisbaixo, estendeu o telefone ao homem à sua direita, do outro lado do corredor:
— Trump ganhou na Flórida. Na Flórida! Não posso acreditar.
Foi a deixa para que todos entrassem na conversa. Afinal, nenhum país fora tão atingido pela máquina verbal do republicano Donald Trump quanto o México. Durante a campanha, o republicano chamara os vizinhos de “estupradores” e “narcotraficantes”, prometera deportar os 11 milhões de imigrantes ilegais e construir de um muro de dois mil quilômetros na fronteira — já há uma barreira de 700 quilômetros.
A revisão dos acordos comerciais prometida por Trump pode colocar a economia mexicana de joelhos. O Nafta, acordo de livre comércio da América do Norte, que movimenta 580 bilhões de dólares por ano, é essencial para a economia mexicana.
Mas para os que desceram do voo 138Y, vindo da Cidade do Panamá, a maior preocupação era mais terrena: o preço do dólar. Horas após o anúncio, o peso mexicano chegou ao valor mais baixo de sua história: um dólar valia 20,74 pesos. Analistas estimam que a moeda possa chegar aos 25 pesos em 2017. Essa também foi a maior desvalorização do peso em um único dia.
A migração me tomou vinte minutos, detalhando o itinerário de quarenta dias no México, em Cuba e em Belize, mostrando seguro de viagem e o conteúdo de minha doleira, recebi enfim um visto de 180 dias.
Ao entrar na sala seguinte para retirar a bagagem, voltei aos headphones. Retomava o álbum pausado pouco antes de descermos: The Times They Are-A Changin’, de Bob Dylan. A esteira permaneceu inerte por mais de vinte minutos. Passageiros de dois voos somaram-se à nossa espera e Dylan agora cantava Only a Pawn in Their Game. Uma das estrofes refaz o discurso de um político sulista para os rednecks: “Você tem mais do que os negros, não reclame/ Você é melhor do que eles porque nasceu com a pele branca, ele explica/ E o nome do negro/ É usado, é evidente/ Para os ganhos do político/ Enquanto ele chega à fama/ E o branco pobre permanece/ No vagão do trem/ Mas não se deve culpá-lo/ Ele é apenas um peão em seu jogo.”
A esteira começou a rolar e, por sorte, minha mala foi uma das primeiras. Após passar a bagagem pelo raio-x, perguntei ao arquiteto Sebastián Castillo, morador da capital, o que achava da vitória de Trump. Para ele, pesa a incerteza sobre os tratados econômicos gerados após a eleição: “Serão desvantajosos para nós e isso nos afetará de todas as maneiras. Temos muitos projetos em andamento e com a alta do dólar os custos vão subir muito.”
Dois amigos mexicanos me esperavam no saguão. E Trump reaparecia. Merari Serrano, artista plástico, disse com ar de troça: “Para um país sem lógica, qualquer escolha faz sentido.” Pagamos o estacionamento e seguimos rumo a Coyoacán, bairro de Frida Kahlo e do assassinato de Trotsky. Chegamos a um quiosque especializado em Tacos. A chuva agora fina parecia refletir o estado de espírito dos presentes. Uma moça à minha frente forrava o prato com nopales — cactos preparados com pimenta — e, tal qual o passageiro do avião, era só incredulidade. “Tivemos o azar de viver numa época tão ruim. Não é possível que o presidente dos Estados Unidos seja esta pessoa.”
A antropóloga Jacqueline Angeles, moradora de San Miguel Ajusco, a 30 km do centro da Cidade do México, acredita que a eleição de Trump e o consequente apoio do presidente mexicano Enrique Peña Nieto aumentarão a violência na fronteira. “Viveremos tempos difíceis. O que está por vir é muito duro, a violência contra centro-americanos e mexicanos, que já é forte, será intensificada. Mesmo de maneira legal, será cada vez mais difícil irmos aos Estados Unidos.” Em setembro, quando Peña Nieto convidou Trump para uma conversa, 75% dos mexicanos acharam o encontro inconveniente, enquanto 15% afirmavam ser um completo equívoco. Com isso, a popularidade de Peña Nieto caiu para o menor nível histórico: 26%.
Às onze da manhã de quarta-feira, tomaríamos um ônibus rumo a Cuernavaca. Nas duas horas de trajeto, o vale abaixo dos 2.900 metros de Tlalpan parece uma maquete. Chapéus de palha de homens baixos e escuros balançam ao ritmo das muitíssimas curvas. Merari, ao meu lado, segue obcecado com a eleição do republicano: “Não consigo aceitar que um discurso de ódio vença. Nós construímos a Gringolândia para eles, entende? Todos os serviços que não querem fazer, nós fazemos. Agora vejo que estão nos cercando. Por todos os lados. Querem nos confinar. Tentei várias bolsas para pós-graduação lá. Meu currículo é bom, minhas notas são boas, mas não adianta. Sabe quanto eu pago por uma entrevista na Embaixada dos Estados Unidos se quiser tentar o visto? Seiscentos dólares. E toda essa grana vai para o lixo, porque me recusarão”. Respira fundo e abre a janela rabiscada, deixando o ar gelado invadir-lhe as narinas. Está enjoado.
Aproveito o silêncio e torno ao livro comprado para a viagem: O Labirinto da Solidão, de Octavio Paz. Nele, o Nobel de Literatura de 1990 procura radiografar imaginário e identidade mexicanas numa série de ensaios. Enquanto a pobreza esquálida do último pueblo da Cidade do México, Parres El Guarda, atravessa nossa janela, volto ao trecho sublinhado após a eleição de Trump, nas páginas 21 e 22:
“Em toda parte o homem está só. Mas a solidão do mexicano, sob a grande noite de pedra do Altiplano, ainda povoado por deuses insaciáveis, é diferente da solidão do norte-americano, perdido num mundo abstrato de máquinas, concidadãos e preceitos morais. No Vale do México o homem se sente suspenso entre o céu e a terra e oscila entre poderes e forças contrários, olhos petrificados, bocas que devoram. A realidade, isto é, o mundo que nos rodeia, existe por si mesma, tem vida própria e não foi inventada, como nos Estados Unidos, pelo homem.”
Chegamos à capital de Morelos, estado natal do líder revolucionário Emiliano Zapata, no início da tarde. Caminhamos pelas ruas estreitas do Centro. Na banca de revistas, nas capas de todos os jornais, a vitória do republicano. O diário Reforma, autointitulado Coração do México, trazia a manchete: “A tremer!” O tablóide popular El Grafico, vendido a 4 pesos — equivalente a 65 centavos —, estampava Trump, dedo em riste e mordendo o lábio inferior, e um grande “FUCK!” em amarelo. O Reporte Índigo trazia uma caricatura de Trump gritando e a frase que expressa a opinião quase unânime dos mexicanos: “God Bless Mexico.”
Os colunistas políticos e econômicos faziam coro às manchetes. Fray Bartolomé escreveu em Reforma: “Quando nas primeiras horas da noite de terça-feira começou a ganhar corpo o triunfo de Donald Trump, acenderam-se os alarmes da economia mexicana”. No mesmo jornal, José Woldenberg analisou: “Obama representou o triunfo da diversidade, a tolerância, a ilustração, a abertura e a compreensão aos outros. Hoje, o pêndulo viaja para o outro extrema: a aspiração da supremacia branca, a intolerância, o obscurantismo”. Para Julio Hernández López, de La Jornada, “a estrutura dominante do México e parte da sociedade mexicana foram colocadas num divã de autoanálise.” Jorge Castañeda, ex-secretário de Relações Exteriores, afirmou em entrevista à Aristegui Noticias que o México cometeu “um grave erro ao ter certeza de que não havia motivos de preocupação porque [Trump] não seria candidato, depois ao pensar que não ganharia e agora ao supor que ele não fará o que disse”.