Itália: país com maior número de mortes por causa do coronavírus (Daniele Mascolo/Reuters)
Janaína Ribeiro
Publicado em 23 de março de 2020 às 15h26.
Última atualização em 23 de março de 2020 às 17h44.
Durante anos, temia-se muito que um "cisne negro" testaria a capacidade de gerenciamento de crises da União Europeia. Com o surto da covid-19, o novo coronavírus, esses medos se concretizaram — e não está claro que a UE possa resistir.
A pandemia da covid-19 não é apenas um teste de estresse. Para começar, é provável que isso afete o mundo inteiro, levando a uma sincronizada desaceleração do crescimento ou mesmo a uma recessão. As recessões sincronizadas são praticamente sempre mais profundas e duradouras do que as crises que afetam a economia de cada país e atingem duramente economias abertas como a União Europeia.
Para agravar o problema, como todos os Estados-membros da UE estão enfrentando um choque severo, eles serão muito menos capazes de ajudarem uns aos outros do que durante a crise da zona do euro que começou em 2010. Certamente, a Itália foi o país que mais sofreu até agora. Mas os padrões de transmissão anteriores sugerem que a covid-19 continuará se espalhando pela Europa, colocando todos os países sob crescente tensão.
Obviamente, é impossível dizer com precisão como a epidemia se desenrolará. Mas essa incerteza só exacerbará as consequências econômicas, porque minará o investimento e o consumo das famílias.
O vírus já interrompeu as cadeias de suprimentos e desacelerou o comércio global, com efeitos previsivelmente negativos sobre as receitas das empresas e o emprego. Os setores de turismo e transporte foram particularmente afetados, devido não apenas às restrições impostas pelos governos às viagens mas também ao "distanciamento social" voluntário e à redução dos movimentos. Como resultado, a demanda geral já está em declínio, refletida na queda dos preços do petróleo — normalmente um indicador da recessão global.
Por certo, as consequências de um choque negativo como a covid-19, por mais dolorosas que sejam, podem durar pouco. Mas embora a China tenha aparentemente controlado novas infecções, o número de casos continua a aumentar em outros lugares. A menos que isso mude em breve, é improvável que os efeitos econômicos sejam temporários.
Um cenário mais provável é que o choque da covid-19 teste a resiliência dos sistemas de saúde pública, relações trabalhistas e mecanismos formais e informais de solidariedade em toda a UE. E se a pandemia não for confrontada com uma resposta política agressiva e oportuna, é provável que seus efeitos sejam duradouros, especialmente se forem ativados os mecanismos de amplificação.
Esses mecanismos geralmente funcionam por meio do setor financeiro. A boa notícia é que, graças a uma melhora da regulação, os bancos estão mais capitalizados do que em 2008, quando a última crise financeira global eclodiu. Mas alguns países ainda têm sérios pontos fracos e a resiliência das pequenas e médias empresas (PMEs) ainda é duvidosa. No setor da produção, as PMEs já estão sofrendo. No caso de uma crise prolongada, os danos a eles irão parar nos balanços dos bancos.
Na União Europeia, a capacidade de montar uma resposta efetiva e de aguentar os inevitáveis prejuízos (incluindo o declínio geral da demanda) varia entre os Estados-membros. Mas, mesmo em países relativamente bem equipados, medidas ad hoc unilaterais têm apenas um potencial limitado. Uma ação coordenada — especialmente na frente fiscal — seria muito mais eficaz.
Isso não significa simplesmente permitir que os Estados-membros apresentem maiores déficits fiscais. Embora isso ajude — melhorando o relacionamento entre a UE e seus cidadãos —, afetaria os prêmios de risco de alguns países (como é o caso da Itália). Aprendemos há uma década que isso poderia ameaçar a própria sobrevivência da zona do euro e agravar a crise, levando à segmentação financeira. A política monetária pode ajudar de diferentes maneiras — ou seja, fornecendo liquidez quando necessário. Por exemplo, os formuladores de políticas poderiam implementar operações direcionadas, condicionadas aos empréstimos de bancos a PMEs. De maneira mais ampla, os bancos centrais precisam usar todas as ferramentas disponíveis para compensar a pressão descendente sobre as expectativas de inflação pela queda nos preços do petróleo.
Mas o que a UE realmente precisa é de um estímulo fiscal coordenado que tire proveito de seu poder de financiamento conjunto. No entanto, atualmente, ela não possui instrumentos para dar apoio aos Estados-membros em meio a grandes choques comuns. O Mecanismo Europeu de Estabilidade poderia ser ativado em um cenário extremo, mas usá-lo como ferramenta de gerenciamento de demanda seria inadequado. E o Fundo de Solidariedade da UE é muito pequeno para essa tarefa.
A pandemia da covid-19 representa, portanto, uma oportunidade para a UE criar um poderoso mecanismo de gerenciamento de crises, que reúna os recursos dos Estados-membros e os canalize para uma política fiscal coordenada. A ideia de um tipo de “fundo de seguro” não é nova: vários economistas a defenderam após a última crise, quando a discussão sobre a reforma da governança estava em pleno andamento.
A UE tratou de fazer o maior progresso em tempos ruins. E, como podem atestar os milhões de pessoas atualmente presas na Itália, o surto de covid-19 é um momento muito ruim. Agora é hora de a União Europeia tomar medidas coordenadas e capitalizar o momento oportuno para criar as instituições necessárias para facilitar ações ainda mais eficazes para a próxima necessidade.
O atual contexto geopolítico deve reforçar a motivação da Europa para incrementar sua capacidade de gestão de crises. Em 2008, a cooperação internacional predominou e os Estados Unidos foram um parceiro confiável para a Europa. Quando os bancos europeus precisavam desesperadamente de dólares americanos, as linhas de troca de moeda foram rapidamente estabelecidas para garantir a estabilidade financeira.
Hoje, ao contrário, o isolacionismo está em ascensão, com os Estados Unidos assumindo a liderança. O Federal Reserve americano não consultou ninguém antes de implementar seu recente corte emergencial nas taxas de juro. Dá medo só de pensar no que aconteceria se os bancos europeus precisassem urgentemente de financiamento em dólares nesse contexto.
A covid-19 deve servir como um aviso poderoso para os governos em todo o mundo. A combinação de degradação ambiental e profunda interconexão econômica tornou o mundo mais vulnerável do que nunca a choques repentinos em grande escala. A União Europeia deve isso a seus cidadãos para garantir que ela possa reagir.
Lucrezia Reichlin, ex-diretora de pesquisa do Banco Central Europeu, é professora de economia na London Business School.