Posto da British Petroleum nos Estados Unidos: petrolíferas de olho no etanol brasileiro (.)
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.
Fora dos dicionários, mas presente no linguajar de regiões do país onde o cultivo de cana-de-açúcar atravessa séculos, a expressão "conversa de usineiro", significando "conversa mole", resume em poucas palavras uma fama que há décadas ronda o setor sucroalcooleiro brasileiro. Não é de estranhar, portanto, a descrença de boa parte do mercado a respeito de rumores recentes de que as petrolíferas estariam se preparando para entrar com força no negócio do etanol de cana. E foi preciso que executivos da Cosan, maior empresa do setor, aparecessem em público ao lado de diretores da Shell, maior distribuidora de biocombustíveis do mundo, para dissipar o ceticismo. A criação da joint venture de 12 bilhões de dólares para a produção e a distribuição de álcool combustível no mês passado fez mais do que confirmar rumores. Ao lado de anúncios de outras fusões e aquisições de peso nos últimos meses, ela vem selar um novo rearranjo de forças que deve mudar a cara do setor nos próximos anos.
Operações de consolidação não são novidade nos negócios de açúcar e álcool. Apenas nos últimos três anos, estima-se que houve mais de 50 operações envolvendo cerca de 100 usinas em todo o país. A participação do capital estrangeiro no total da cana moída no país no período dobrou para 25%. Algumas dessas transações vieram carregadas de simbolismo. Em dezembro, a Bunge, uma das maiores empresas de agronegócio do mundo, anunciou a compra de cinco usinas do grupo paulista Moema por 2,6 bilhões de reais. Vinte dias depois do anúncio de associação entre Cosan e Shell, a Shree Os novos usineiros Grupos estrangeiros já detêm 25% do capital do setor de etanol brasileiro - e as petroleiras estão apenas começando a investir no etanol André Faust Renuka Sugars, maior refinaria da Índia, adquiriu participação majoritária no grupo Equipav por 600 milhões de reais. Mas, apesar de todo o movimento, o setor sucroalcooleiro ainda é bastante fragmentado. O negócio todo está hoje na mão de cerca de 150 empresas. A Cosan, primeira em processamento de cana, detém menos de 10% do mercado. "A onda de consolidação está só começando", diz José Carlos Grubisich, presidente da ETH Bioenergia, empresa do grupo Odebrecht.
Entender o estágio atual do rearranjo remete a meados de 2006, pouco depois do primeiro boom do etanol de cana. Naquele momento, os prognósticos de abertura de mercados no exterior eram os mais otimistas possíveis. Na cabeça de muitos, o álcool combustível tinha tudo para virar uma commodity global, e as promessas de ganhos com o novo ouro branco no curto prazo pareciam irresistíveis.
Foi quando o setor viu a chegada de uma leva de aventureiros sem nenhuma experiência no mercado. "Da noite para o dia, todo mundo pensou que podia ser usineiro", diz Marcos Françóia, diretor da consultoria MBF Agribusiness. Comerciantes, empresas do setor ferroviário e de construção civil e até fundos especializados em tecnologia do Vale do Silício foram alguns dos forasteiros a se lançar no jogo. Em comum, os novos investidores traziam a expectativa de ganhos altos e rápidos - e experiência zero no processo de produção agrícola. O resultado da aventura não demorou para aparecer. "Era expectativa demais para um mercado que ainda não existia", afirma Arnaldo Corrêa, da Archer Consulting. Contrariando previsões iniciais, a abertura de mercados no exterior não veio na velocidade esperada. E a inexperiência no campo logo começou a pesar. "A cana é uma cultura muito peculiar e que tem uma dura curva de aprendizado", diz Françóia. "Muitos acharam que poderiam tocar o negócio como se fosse um banco." O que se seguiu foi o pior dos cenários: sobreoferta do produto, queda generalizada dos preços e uma situação limite para aventureiros e grupos tradicionais. A fragilidade financeira das usinas e a expectativa irreal de lucros no curto prazo foram o embrião das primeiras operações de consolidação. Tiveram origem aí casos como o da SantelisaVale, que ficou fragilizada financeiramente no processo de fusão entre a Santelisa e a Vale, do Rosário. Antes de ser adquirida pelo grupo francês Louis Dreyfus, em outubro, o grupo que deu origem à segunda maior companhia sucroalcooleira da época, atrás apenas da Cosan, chegou a acumular dívidas de 2,6 bilhões de reais - cerca de seis vezes sua capacidade de gerar caixa.
A reação do mercado
Enquanto tudo ia mal para as usinas, ventos favoráveis começaram a soprar do lado do consumo. Rapidamente, os carros com motor flex passaram a ser maioria entre os novos veículos vendidos no país. Hoje, sem contar o diesel, o etanol responde por metade do combustível comercializado no Brasil. Só em 2009, foram consumidos no país 22,8 bilhões de litros de etanol, volume próximo ao consumo anual de gasolina do Reino Unido. O cenário mudou, e os produtores, antes de olho na possibilidade de exportação do produto, passaram a mirar um mercado já existente.
Se o mapa de forças ainda está para ser redesenhado, não faltam pistas sobre quem poderão ser os grandes nomes do setor no futuro. Recentemente, investimentos da Bunge e da Louis Dreyfus em usinas do grupo Moema e da SantelisaVale marcaram a chegada das traders do agronegócio. Fornecedoras tra dicionais de insumos para a produção agrí cola, elas vêm com a vantagem de já conhecer do riscado. "A larga experiência das traders em commodities e no processo agrícola pode ser uma vantagem", diz o economista Guilherme Nastari, diretor da consultoria Datagro, especializada em agronegócio. A seu favor, as traders têm também cadeias de escoamento e infraestrutura de comercialização organizadas. "O desafio será encontrar um modelo que integre a experiência no campo à produção de etanol, mas não há dúvida de que as traders estarão entre os principais atores do mercado."
A grande especulação sobre o futuro do etanol de cana, porém, diz respeito à participação das petrolíferas. O primeiro passo foi dado pela British Petroleum, em 2008, com a entrada na joint venture Tropical Bioenergia, um negócio de 100 milhões de reais. A Petrobras foi a segunda a se posicionar, com a compra de 40% das ações da Total Agroindústria Canavieira por 150 milhões de reais. Mas foi só com o anúncio da joint venture entre Cosan e Shell que o mercado finalmente sentiu a mão pesada das petrolíferas. A partir daí, a questão passou a ser não mais "se", mas sim "como" outras gigantes do petróleo entrarão no setor. Os negócios fechados até agora apontam para modelos distintos. A participação da BP é vista como a primeira aproximação de uma petrolífera a processos de produção no campo. "O modelo nos possibilita compartilhar e adquirir expertise nesse novo negócio", afirma Mario Lindenhayn, presidente da BP Biofuels Brasil. A joint venture entre Cosan, e Shell, aponta para outra tendência: a de associações entre grandes grupos com foco em ganhos de escala. "Dificilmente veremos, a partir de agora, associações de petrolíferas com usinas de pequena moagem", afirma Arnaldo Corrêa, da Archer Consulting. "Aquelas com produções maiores deverão ter maior apelo."
As indefinições não escondem um dos poucos consensos dos especialistas sobre o futuro do setor: o crescimento deverá ser puxado por grandes grupos investidores. Estimativas apontam que o negócio irá demandar investimentos da ordem de 60 bilhões de dólares na próxima década. "A chegada dos grandes é um movimento que não tem volta", afirma Patrick Funaro, diretor do Bioenergy Development Fund. No caso da Petrobras, o apetite já é conhecido. Em seu plano de negócios 2009-2013, a estatal promete investir 1,9 bilhão de dólares no etanol de cana - 80% do orçamento previsto para biocombustíveis. "O investimento no etanol está relacionado à demanda nacional e mundial por combustíveis renováveis, onde a Petrobras. pretende ter uma participação crescente, incluindo o setor de produção", afirma Ricardo Castello Branco, diretor de etanol da Petrobras Biocombustível. A meta, para três anos, é deter 10% de toda a produção nacional. Além das petrolíferas e das traders, também há expectativa de que fundos de private equity participem ativamente em novos aportes de recursos. "Os fundos serão um agente de consolidação de unidades menores e de retomada de investimentos", afirma Guilherme Nastari. O alvo de novas consolidações - usinas com alta rentabilidade, mas grandes dificuldades financeiras - já foi definido. Os novos atores estão posicionados. Resta saber se a grande virada do etanol de cana-de-açúcar deixará de ser, de uma vez, conversa de usineiro.