Ricardo Cappra: cientista de dados brasileiro ajudou no combate do ebola. Agora, quer fazer o mesmo contra o novo coronavírus (Ricardo Cappra/Divulgação)
Gabriela Ruic
Publicado em 14 de março de 2020 às 06h00.
Última atualização em 31 de março de 2020 às 01h40.
São Paulo – O brasileiro Ricardo Cappra é cientista de dados. Em 2015, quando o mundo assistia aos horrores da propagação do ebola na África Ocidental, Cappra atuou ao lado de outros especialistas, e a Organização das Nações Unidas (ONU), no desenvolvimento de um modelo matemático preditivo que foi capaz de identificar como essa doença se espalharia e até a duração da epidemia. Tais dados foram essenciais para os planos para conter aquele surto, que matou cerca de 11.300 pessoas.
Cinco anos depois da tragédia do ebola no continente africano, Cappra, fundador do Cappra Data Science, se vê novamente envolvido em uma emergência de saúde pública com a pandemia do novo coronavírus. Ao lado de um time de 12 pesquisadores, quer estruturar uma “caixa de ferramentas” de dados qualificados sobre a nova doença para permitir que outros cientistas de dados consigam analisar a situação da pandemia para agir em âmbito local.
A EXAME, Cappra falou sobre o trabalho que está desenvolvendo hoje no combate ao novo coronavírus e sobre as dificuldades que a comunidade científica está enfrentando. “Essa pandemia não se compara em nada com o que observamos no caso do ebola. Estamos tentando analisar, em âmbito global, um vírus que é transmitido por uma gripe, e isso nunca foi feito. É maluco pensar no que está acontecendo”, disse o cientista. Veja abaixo a conversa na íntegra.
EXAME - O que vocês estão analisando na situação atual de pandemia do novo coronavírus?
Ricardo Cappra – Não é um projeto específico, mas estamos em contato com várias entidades e fazendo pesquisas para governos e Organização Mundial da Saúde (OMS). Hoje, somos um grupo de 12 pesquisadores olhando para o novo coronavírus e a principal dificuldade que estamos enfrentando é o excesso de informação. É a primeira vez que lidamos com um vírus dessa magnitude e está difícil classificar e organizar os dados mais importantes para fazer uma análise.
Estamos estruturando alguns pilares para ajudar a comunidade de análise de dados, organizando visualizações do cenário atual e montando uma caixa de ferramentas para que os cientistas de dados possam usar isso em locais específicos. Se conseguirmos disponibilizar esse modelo de análise, será possível fazer com que mais pessoas utilizem e avaliem a situação em âmbito local. E nosso foco é justamente o de instrumentalizá-las para que apliquem os insights em suas comunidades.
Hoje tem muita gente olhando para a análise global e muita gente perdida nesse volume de informação. E um problema que vem à tona é o de que os números levantados são muito distantes das realidades de cada lugar. Com a nossa caixa de ferramentas, tanto a OMS, quanto os governos ou os cientistas de dados terão em mãos uma fonte confiável de dados, rica em análise local.
Como essa pandemia se compara ao que foi observado durante o surto de ebola?
Essa pandemia não se compara em nada com o que observamos no caso do ebola. Estamos tentando analisar, em âmbito global, um vírus que é transmitido por uma gripe, e isso nunca foi feito. É maluco pensar no que está acontecendo, principalmente pela quantidade de informação disponível.
Estamos falando de um vírus que tem as mesmas características do vírus de gripe. É tudo muito novo e, com a dificuldade em estruturar a base de dados, não sabemos para o que iremos olhar: forma de contágio? temperatura? Então, não se compara em nada com a disseminação do ebola. Nem do ponto de vista da opinião pública e nem do ponto de vista do próprio vírus.
Como você avalia o grau de propagação do novo coronavírus?
A propagação acontece tal qual uma gripe comum e a primeira coisa que eu diria é que não temos um sistema de controle de gripe. Nunca nos preparamos adequadamente pra lidar com algo que pudesse ser transmitido dessa forma. E isso é o que fez com que essa doença se alastre com tanta velocidade.
No Brasil, acredito que teremos um contágio ainda maior quando o clima frio chegar. Ainda estamos no início da crise, a doença está vindo de outro lugar. Os locais nos quais ela se alastrou mais rapidamente são justamente os que estão no inverno. E ainda vamos passar por isso.
Na sua visão, ainda é possível conter o novo coronavírus?
Não, não acho que vamos conseguir contê-lo e acho que essa nem é a questão. Temos casos de pessoas que apresentam sintomas e outras que estão contaminadas com o vírus, mas estão assintomáticas. No entanto, ela é capaz de transmitir a doença. E isso é que me leva a crer que o novo coronavírus não pode ser contido.
O que precisamos é ter mais qualidade de informação para que as pessoas lidem melhor com a doença. Tem muita informação por aí e as pessoas não sabem lidar com isso. Quando a situação ficar crítica aqui no Brasil, vamos precisar de dados qualificados para nos proteger.
Qual o papel que a tecnologia e da análise de dados podem ter em emergências de saúde pública?
Hoje, as fontes de informação estão “sujas”, isto significa que tem muita desinformação circulando. Precisamos de repositórios de dados para que esses dados sejam analisados e transformados em informações úteis para os tomadores de decisão. Passamos muito tempo “limpando” essa sujeira. Se governos e entidades liberassem bancos de dados públicos mais rapidamente, ajudaria muito.
A tecnologia é um apoio fundamental para um governo. Com ela, poderíamos, por exemplo, analisar a situação em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul que tenha registrado um caso do novo coronavírus. Com os dados em mãos, seria possível orientar melhor a população, prevendo o que pode acontecer naquela região. A análise de dados permite que se faça um exame com esse grau de especificidade. Mas, como não temos modelos de análise dessa doença, vamos precisar avaliar mais a situação até que seja possível criar os padrões necessários para tanto.