Banco Central da Venezuela: mercado financeiro do país é considerado um dos mais primitivos do mundo, mas novas operações no mercado títulos começam a ser estruturadas (Valery Sharifulin/Getty Images)
Fabiane Stefano
Publicado em 13 de abril de 2021 às 18h36.
Naquele que é talvez o menor e quase certamente o mais primitivo mercado de títulos do mundo, o calote não é o maior risco que os investidores enfrentam. O roubo, sim.
Este mercado pode ser encontrado em Caracas, Venezuela, onde o governo socialista do presidente Nicolás Maduro está lentamente liberando a maltratada economia para permitir os tipos de empreendimentos capitalistas que há muito proibiu. Como parte das mudanças, o dólar americano tornou-se agora moeda de fato no país, mas, dada a forma ad-hoc como as reformas estão sendo implementadas, não há como transferir dólares eletronicamente de um banco para outro.
Então, quando um fabricante local de rum decidiu se tornar a primeira empresa a vender títulos em dólar no país em pelo menos duas décadas, os investidores enfiaram pilhas de notas de cem dólares em sacolas e as carregaram até o banco da destilaria no leste de Caracas.
Todos os tipos de técnicas foram empregadas - desde uma escolta armada até uma abordagem incógnita - para navegar pelas ruas de uma das cidades mais perigosas do mundo. E embora o negócio fosse minúsculo - totalizando meros US$ 300.000 - e limitado a apenas investidores com contas em bancos locais, seu sucesso no final do ano passado desencadeou uma onda de interesse tanto de empresas que buscam financiamento quanto de venezuelanos ricos em busca de retorno sobre seu dinheiro.
“O que uma pessoa que tem dólares na Venezuela pode fazer com esse dinheiro? Deixar o banco?”, indagou Juan Domingo Cordero, ex-presidente da Bolsa de Valores de Caracas, que se aposentou há dois anos como presidente da corretora Rendivalores. “O problema é o ‘clearing’ das operações. Não podemos continuar a operar em dinheiro.”
US$ 40 a garrafa
A Ron Santa Teresa SACA, cujo Ron Antiguo de Solera 1796 vende uma garrafa nos EUA por cerca de US$ 40, gerou muito interesse nos investidores cansados de ganhar juros zero em bancos locais.
Como a bolsa de valores só pode liquidar negociações em bolívares, a destilaria estruturou sua dívida com um título de cupom zero, para que os investidores não tivessem de lidar com o risco dos juros. Os títulos de um ano foram vendidos a um desconto de 96 centavos por dólar, com os investidores sendo pagos a 100 centavos no vencimento com o produto das exportações.
Uma venda de títulos em dólares de empresas locais teria sido quase inimaginável até muito recentemente, após anos de interferência do governo na economia terem dizimado os mercados de capitais e colocado severas restrições às transações em moeda estrangeira. Mas agora, enfrentando sanções paralisantes dos EUA que minaram as finanças do governo, a Venezuela embarcou em um abraço relutante de negócios privados e dolarização.
Os movimentos aumentaram o interesse de investidores ousados que se perguntam se agora é a hora de entrar e comprar ativos em dificuldade. Ainda assim, a mudança é lenta e as empresas locais lutam com questões básicas, como falta de combustível e apagões constantes.
Empréstimo Corporativo
O crédito bancário, limitado por políticas monetárias rígidas e retrocessos nos subsídios do governo, é difícil de conseguir. Os empréstimos pendentes totalizam menos de US$ 200 milhões, representando 0,5% do Produto Interno Bruto, de acordo com a empresa local de pesquisas Ecoanalitica. A média da América Latina é de 30%. O número de vendas de commercial papers em bolívares disparou 60% no ano passado, embora o mercado local negocie o equivalente a apenas US$ 60.000 por dia, ante US$ 5 milhões na década de 1990.
“Não temos mais economia subsidiada ou empréstimos baratos”, disse José Miguel Farias, diretor financeiro da corretora Mas Valor, com sede em Caracas. “E o crédito é o combustível que mantém as empresas abertas.”
Os investidores com dólares estão prontos para colocar seu dinheiro para trabalhar. Há cerca de US$ 2 bilhões em dinheiro circulando na economia e outros US$ 400 milhões em contas sem juros em bancos locais. Não há como os venezuelanos transferirem o dinheiro para o exterior.
Embora a operação da Ron Santa Teresa tenha gerado especulações de que haveria uma onda imediata de ofertas semelhantes, o aumento tem sido mais lento do que o esperado. Outras empresas que buscam levantar fundos se frustraram com questões regulatórias e estruturais, de acordo com três pessoas familiarizadas com o processo que pediram para não serem identificadas discutindo informações confidenciais.
José María Nogueroles, um ex-banqueiro que abriu a corretora BNCI Casa de Bolsa no ano passado, diz que sua empresa buscou a aprovação dos reguladores para a venda de três títulos em dólar de empresas locais, sem sucesso até agora.
“Precisamos democratizar o mercado e simplificar processos”, disse ele em entrevista.
Quando a Ron Santa Teresa emitiu seus títulos, os compradores presumiram que um sistema de clearing em dólares estaria em vigor no momento em que os papéis vencessem, para que pudessem coletar os recursos eletronicamente. Construir essa infraestrutura antes do vencimento do título agora parece cada vez mais improvável.
Assim, mais uma vez, investidores com um certo nível de coragem estarão nas ruas de Caracas, transportando furtivamente milhares de dólares em dinheiro vivo por uma cidade repleta de gangues de criminosos e frequentemente classificada como tendo uma das maiores taxas de homicídios do mundo. Mas, pelo menos, eles vão ganhar algum rendimento.
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