Crianças feridas em Goutha: sete hospitais foram destruídos por bombardeios no novo palco de uma guerra sem fim
Da Redação
Publicado em 24 de fevereiro de 2018 às 08h51.
Última atualização em 13 de março de 2018 às 12h13.
A guerra na Síria entrou numa nova fase. Com a derrota do Estado Islâmico, os diversos países e grupos envolvidos — Síria, Turquia, Irã, Rússia, EUA e Israel, xiitas, curdos, árabes seculares e radicais islâmicos — partem agora para consolidar o domínio de territórios, e assegurar seus interesses.
Ela deixa de ser uma guerra civil, no sentido estrito, e se torna uma guerra regional, com a interferência de potências globais. Como no Líbano, entre 1975 e 1990. Se você achava a situação complexa nesses quase sete anos de guerra civil, prepare-se: você não viu nada.
Na terça-feira, forças do governo sírio, apoiadas pela aviação russa, lançaram uma ofensiva para a retomada de Ghouta Oriental, uma área adjacente à capital, Damasco, dominada por rebeldes desde 2012.
Em dois dias de bombardeios intensos (“os morteiros e bombas estão caindo como chuva”, disse um morador), ao menos 250 pessoas morreram e 1.200 ficaram feridas, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos.
A entidade, que se baseia em uma rede de 300 informantes que fazem uma minuciosa verificação antes de divulgar seus números, informou que foi a maior matança no intervalo de 48 horas desde o ataque com armas químicas do regime em Ghouta em 2013.
Sete hospitais, alguns deles instalações subterrâneas improvisadas por voluntários, foram atingidos pelos bombardeios: seis por aviões sírios e um por russos.
A última vez em que o governo sírio permitiu a entrada de um comboio humanitário em Ghouta Oriental foi em novembro. Os moradores estão passando fome: o preço do pão é 22 vezes mais caro que na média do resto do país, e 12% das crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição severa.
O desabastecimento causado pelo cerco militar é uma arma — usada antes em cidades do norte, como Alepo, Homs e Idlib — para enfraquecer os rebeldes antes da invasão e retomada por terra. Que só acontece depois de um bombardeio aéreo e de canhões, que deixa a terra arrasada. É nessa fase que a campanha de Ghouta se encontra.
Atualmente, o grupo dominante é o Jeish al-Islam (Soldados do Islã). Mas o Hayat Tahrir al-Sham (Organização para a Libertação do Levante), uma frente jihadista liderada pela Al-Qaeda, também opera na região. A Turquia, que desde o início da rebelião na Síria, em 2011, voltou-se contra o regime de Bashar Assad, apoia os rebeldes.
O envolvimento turco no conflito abriu outra frente e, nesta semana, um realinhamento absolutamente inusitado. As forças turcas realizam desde o mês passado uma ofensiva contra os guerrilheiros curdos no norte da Síria, ao longo da fronteira com a Turquia.
A operação, batizada, um pouco ironicamente, de Ramo de Oliveira, busca evitar a formação de um corredor entre os curdos do norte da Síria e os do sudeste da Turquia, que lutam pela criação de um Estado independente, ou pelo menos por autonomia.
O presidente Recep Tayyip Erdogan, que chegou a negociar com os curdos e esteve a ponto de indultar o seu líder, Abdullah Ocalan, condenado a prisão perpétua, acusa-os de serem “terroristas”, por causa de seus ataques contra policiais e militares.
No início da semana, os curdos pediram ajuda ao governo sírio, evocando sua responsabilidade sobre a integridade territorial da Síria, ameaçada pela presença turca.
O regime sírio, dominado pela minoria alauíta (uma seita xiita), mandou para lá não tropas regulares — até porque ele praticamente não as tem, desde que a maioria dos sunitas desertou do Exército —, mas milicianos xiitas apoiados pelos Guardas Revolucionários iranianos.
“O governo sírio respondeu ao chamado do dever e enviou unidades militares que ficarão posicionadas ao longo da fronteira, e participarão da defesa do território sírio”, celebrou Nouri Mahmoud, porta-voz do grupo guerrilheiro curdo YPG (Unidades de Proteção Popular).
A força-tarefa partiu de Alepo e chegou à região curda de Afrin na terça-feira, enfrentando resistência turca. “Eles foram forçados a recuar sob fogo de artilharia”, vangloriou-se Erdogan, referindo-se aos milicianos pró-sírios, em entrevista coletiva em Ancara. “Organizações terroristas têm de pagar um preço alto quando cometem erros.”
As TVs e as redes sociais na Síria, no entanto, exibiram imagens de moradores comemorando a retomada de Afrin pelas forças sírias, na praça principal da cidade, com cartazes de Assad e de Ocalan. Conhecendo Erdogan, isso não deve ficar assim. Ele telefonou para os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e do Irã, Hassan Rouhani, advertindo para que não permitissem a incursão síria em Afrin.
No final de janeiro, durante a (tentativa de) conferência de paz para a Síria em Sochi, na Rússia, boicotada pelos rebeldes, milícias patrocinadas pelo Irã dispararam artilharia contra um comboio turco, levando a uma ruptura das negociações entre os dois países.
Os guerrilheiros curdos são treinados e equipados por militares americanos. Pela primeira vez nesses sete anos, Estados Unidos e Síria, e seu aliado, Irã, ficaram do mesmo lado do conflito.
Não foi o que aconteceu em outra frente, na província de Deir az-Zour, no leste da Síria. Cerca de cem combatentes leais ao regime sírio foram mortos por um bombardeio americano, destinado a dar apoio aos guerrilheiros curdos. Entre esses combatentes, havia “várias dezenas de russos”, admitiu o Ministério das Relações Exteriores em Moscou, ressaltando que não se tratava de forças regulares.
A Rússia tem empregado mercenários na Síria, assim como na Ucrânia. Parentes desses russos mortos na Síria contam que receberam pagamentos de seguro de vida de representantes de “empresas privadas militares” — ou foi assim que se apresentaram.
A chancelaria russa lavou as mãos: “Tem sido apontado que certos cidadãos russos na Síria têm chegado lá por livre e espontânea vontade, e por diferentes motivos. O Ministério do Exterior não tem a autoridade de medir a validade e legalidade de suas decisões”.
De acordo com o Pentágono, o quartel-general dos guerrilheiros curdos, que fazem parte das Forças Sírias Democráticas (SDF), apoiadas pelos EUA, estava sob ataque, e os americanos intervieram para protegê-lo.
Os militares americanos dizem que as forças pró-sírias avançaram sobre uma linha de demarcação informal, ao longo do Rio Eufrates. A margem ocidental é controlada pelo regime e a oriental, pela SDF. O Departamento de Defesa americano afirmou ter estado em constante contato com as autoridades russas antes da operação. O governo sírio chamou o incidente de “massacre” e prometeu se queixar na ONU.
Os israelenses também têm intensificado suas ações na Síria, para conter a influência militar do Irã e sua transferência de armas para a milícia xiita libanesa Hezbollah, que travou uma guerra com Israel em 2006.
No dia 10, um drone de reconhecimento iraniano invadiu o espaço aéreo israelense e foi abatido. Caças israelenses em seguida invadiram o espaço aéreo sírio e bombardearam a base de onde o drone era controlado.
Um dos aviões foi atingido por um míssil sírio e caiu em Israel. Os israelenses reagiram destruindo parte da artilharia antiaérea síria. A Rússia mediou entre Israel e Síria, para evitar uma escalada. O embate durou seis horas.
Quando russos e americanos entrarem em confronto, quem vai mediar?