São Paulo: a maior cidade da América Latina já amplia seus cemitérios com covas extras. (Amanda Perobelli/Reuters)
Beatriz Correia
Publicado em 22 de abril de 2020 às 17h31.
Última atualização em 22 de abril de 2020 às 21h16.
Caixas de máscaras arrancadas de aviões de carga nas pistas do aeroporto. Países pagando o triplo do preço de mercado para superar outros. Acusações de "pirataria moderna" contra governos que tentam garantir suprimentos médicos para sua própria população.
À medida que os Estados Unidos e os países da União Europeia competem para adquirir equipamentos médicos escassos para combater o coronavírus, outra divisão preocupante também está emergindo, com os países mais pobres perdendo para os mais ricos na disputa global por máscaras e materiais de teste.
Cientistas da África e da América Latina foram informados pelos fabricantes de que os pedidos de kits de teste vitais não podem ser atendidos por meses, porque a cadeia de suprimentos está em convulsão e quase tudo o que produzem está indo para os EUA ou para a Europa. Todos os países relatam aumentos acentuados de preços, desde os kits de teste até as máscaras.
A enorme demanda global por máscaras e novas distorções no mercado privado forçaram alguns países em desenvolvimento a pedir ajuda ao Unicef. Etleva Kadilli, que supervisiona os suprimentos da agência, disse que estava tentando comprar 240 milhões de máscaras para ajudar cem países, mas até agora havia conseguido obter apenas cerca de 28 milhões delas.
"Há uma guerra em curso nos bastidores, e estamos mais preocupados com a perda dos países mais pobres", comentou a dra. Catharina Boehme, executiva-chefe da Fundação de Novos Diagnósticos Inovadores, que colabora com a Organização Mundial da Saúde na ajuda aos países mais pobres, para que tenham acesso aos testes médicos.
Na África, na América Latina e em partes da Ásia, muitos países já estão em desvantagem, com sistemas de saúde subfinanciados, frágeis e muitas vezes carentes de equipamentos necessários. Um estudo recente descobriu que alguns países pobres têm apenas um leito de terapia intensiva equipado para cada milhão de habitantes.
Até agora, o mundo em desenvolvimento relatou muito menos casos e mortes pelo coronavírus, mas vários especialistas temem que a pandemia possa ser especialmente devastadora nessas nações.
O teste é a primeira defesa contra o vírus e uma ferramenta importante para impedir que muitos pacientes acabem hospitalizados. A maioria dos fabricantes quer ajudar, mas a indústria de nicho que produz os equipamentos de teste e reagentes químicos necessários para processar testes de laboratório está lidando com uma enorme demanda global.
"Nunca houve realmente uma escassez de reagentes químicos até agora. Se fosse apenas um país com uma epidemia, seria bom, mas todos os principais países do mundo estão querendo a mesma coisa ao mesmo tempo", disse Doris-Ann Williams, executiva-chefe da Associação Britânica de Diagnóstico In Vitro, que representa os produtores e os distribuidores dos testes de laboratório usados para detectar o coronavírus.
Para os países mais pobres, declarou Boehme, a competição por recursos é potencialmente uma "catástrofe global", uma vez que uma cadeia de suprimentos outrora suficiente rapidamente se tornou uma queda de braço. Líderes de todos os países chegam a contatar pessoalmente os executivos-chefes de empresas manufatureiras para exigir acesso a suprimentos vitais antes de outros. Alguns governos até se ofereceram para enviar jatos particulares.
No Brasil, Amilcar Tanuri não pode oferecer jatos particulares. Ele dirige os laboratórios públicos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, metade dos quais está parada em vez de testar trabalhadores da saúde, segundo ele, porque os reagentes químicos dos quais ele precisa estão sendo encaminhados para países mais ricos.
"Se não há testes confiáveis, você está cego. Este é o início da curva epidêmica, por isso estou muito preocupado com o sistema público de saúde daqui sendo sobrecarregado muito rapidamente."
O Brasil é o país mais atingido da América Latina, com mais de dez mil casos confirmados e um atraso de testes de pelo menos 23 mil. É também a nação mais polêmica da região na pandemia, com um presidente, Jair Bolsonaro, que não acredita nos riscos impostos pelo coronavírus.
Mas, para além do ruído político, os cientistas do país começaram a tentar intensificar os testes horas após o primeiro caso do país ter sido anunciado.
No entanto, em poucas semanas, Tanuri teve de ligar freneticamente para empresas privadas em três continentes, tentando obter os reagentes químicos necessários para as 200 amostras de teste que seus laboratórios recebem todos os dias – apenas para ser informado de que os Estados Unidos e a Europa já haviam comprado meses de produção.
"Se comprarmos algo para chegar em 60 dias, é tarde demais. O vírus é mais rápido do que nós", disse ele.
A situação é semelhante em alguns países africanos.
Depois de relatar sua primeira morte em 27 de março, a África do Sul agiu rapidamente, introduzindo um bloqueio rigoroso e anunciando uma ambiciosa pesquisa domiciliar que já testou 47 mil pessoas. A África do Sul possui mais de 200 laboratórios públicos, uma rede impressionante que supera as de países mais ricos como o Reino Unido, e que foi desenvolvida em resposta a surtos passados de HIV e tuberculose.
Mas, assim como o Brasil, o país africano depende de fabricantes internacionais de reagentes químicos e outros equipamentos, necessários para processar os testes. O dr. François Venter, especialista em doenças infecciosas que está assessorando o governo sul-africano, afirmou que a luta para adquirir os reagentes estava colocando em risco a resposta global do país.
"Temos a capacidade de fazer grandes testes, mas estamos aflitos com o fato de que os materiais de testes reais, os reagentes, não estão chegando. Não somos muito ricos. Não temos muitos ventiladores. Nem muitos médicos. Nosso sistema de saúde estava em uma posição precária antes do coronavírus. O país está apavorado", declarou Venter.
Especialistas dizem que a indústria que produz kits de teste é bastante pequena. Williams, a representante da indústria britânica, disse que não havia escassez de reagentes químicos, mas que os atrasos estavam surgindo no processo de produção, incluindo as verificações e aprovações necessárias, porque a enorme demanda estava sobrecarregando o sistema.
"Os fabricantes não querem apenas vender para países ricos. Eles querem diversificar, mas têm essa demanda concorrente de diferentes governos", disse Paul Molinaro, chefe de suprimentos e logística da OMS, acrescentando: "Quando há desafios em um ambiente hipercompetitivo com aumento de preços, esses países de baixa e média renda vão acabar no fim da fila."
O presidente dos EUA, Donald Trump, invocou a Lei de Produção de Defesa para proibir a exportação de máscaras faciais para outros países e exigir que as empresas americanas aumentem a produção de suprimentos médicos.
No mês passado, a Europa e a China introduziram suas próprias restrições à exportação de testes e equipamentos de proteção.
Algumas empresas privadas, no entanto, estão deixando o lucro de lado para ajudar países em desenvolvimento com sistemas de saúde mais frágeis.
Uma fabricante britânica de testes, a Mologic, recebeu financiamento do governo para desenvolver um teste caseiro de coronavírus de dez minutos, em parceria com o Senegal, que, se aprovado, custaria menos de US$ 1 para ser produzido. Não dependeria de laboratórios, eletricidade ou fornecimento de suprimentos caros de fabricantes globais.
A Mologic concordou em compartilhar sua tecnologia com o Instituto Pasteur de Dakar, importante laboratório senegalês, para ajudar a produzir o kit a preço de custo. Embora o objetivo seja torná-lo amplamente disponível, ele é predominantemente destinado a retardar a propagação do vírus na África.
Para os países mais pobres, o problema da oferta não se resume apenas aos testes.
A Zâmbia está no início de sua curva epidêmica com apenas uma morte até agora, mas já tem dificuldades para obter máscaras, bem como materiais de testes como cotonetes e reagentes, informou Charles Holmes, membro do conselho do Centro de Pesquisa de Doenças Infecciosas na Zâmbia e ex-diretor médico do Plano Presidencial de Emergência para o Alívio da Aids, do governo Obama, conhecido como PEPFAR.
Quando a Zâmbia tentou encomendar máscaras N95, disse Holmes, o vendedor pediu de cinco a dez vezes mais do que o custo habitual, embora as análises revelassem que o prazo de validade das máscaras tinha expirado em 2016.
"É difícil para os países ou governos negociar com os fabricantes quando países muito mais ricos estão tendo essas mesmas conversas. É provável que o setor privado responda ao maior lance de muitos desses suprimentos. São só negócios", resumiu ele.