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Livro destrincha a misteriosa mente de Vladimir Putin

Novo livro traça um dos mais poderosos líderes do mundo sobretudo como um realista que se recusa a ficar preso a qualquer ideologia

PUTIN CUMPRIMENTA JOGADORES DE HOQUEI: livro afirma que ele vê o país como um bastião da cristandade mundial, um local onde valores religiosos essenciais dão forma e sentido a um projeto de sociedade / Alexei Nikolsky/ Kremlin via Reuters (Alexei Nikolsky/ Kremlin/Reuters)

PUTIN CUMPRIMENTA JOGADORES DE HOQUEI: livro afirma que ele vê o país como um bastião da cristandade mundial, um local onde valores religiosos essenciais dão forma e sentido a um projeto de sociedade / Alexei Nikolsky/ Kremlin via Reuters (Alexei Nikolsky/ Kremlin/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 12 de maio de 2018 às 09h23.

Última atualização em 12 de maio de 2018 às 12h40.

Inside the Mind of Vladimir Putin

Autor: Michel Eltchaninoff

Editora: Hurst

224 páginas

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Em março passado, Vladimir Putin garantiu uma vitória eleitoral e seu quarto mandato como presidente da Rússia. Será o segundo político do país que mais tempo ficou no poder, 25 anos, atrás apenas de Josef Stalin. O comparecimento às urnas em 2018 foi o suficiente para legitimar o líder: 60% da população votou. Um repórter perguntou ao vencedor se pensava em concorrer a um quinto mandato. Putin respondeu: “O que você está dizendo é bobagem. O que vou fazer, ficar aqui [na presidência] por 100 anos?”.

No mundo “ocidental”, Putin é visto como um político autoritário, com pretensões imperialistas e pouco interessado em direitos humanos. Até 2014, era considerado apenas como mais um ex-soviético desacostumado ao mundo pós-Guerra Fria. Mas, com a anexação da Crimeia, os países europeus e os Estados Unidos se assustaram. Perceberam que o ex-integrante da KGB pretende alçar voos mais altos, tanto na Rússia quanto na cenário mundial.

Não por acaso, o país eslavo começou a ser frequente nos noticiários internacionais. E não mais apenas como um local alheio, distante e pitoresco, mas como um ator importante na agenda e nos conflitos globais. Em 2015, Putin se envolveu em outro conflito importante e determinou a intervenção da Rússia na guerra da Síria, colocando-se ao lado do ditador Bashar Al-Assad e complicando o xadrez geopolítico, que parecia estar se alinhando diante de dois “jogadores” principais: China e EUA. No ano seguinte, deu-se o caso mais marcante dessa ascensão: a suposta interferência do governo russo nas eleições presidenciais americanas, favorecendo a candidatura de Donald Trump.

Vladimir Putin conseguiu uma vitória impressionante em 2018, arrematando 76% dos votos. O segundo colocado conseguiu apenas 12%. Existem claro, denúncias de manipulação eleitoral. E é preciso lembrar que o único político que parecia ter condições de fazer frente a Putin, Alexei Navalny, está preso, condenado por desvios de fundos públicos. Navalny garante que é um preso político, já que é uma das maiores lideranças de oposição. Nada que abale o governo do presidente russo, que se prepara para ocupar mais espaço no mundo.

Gostemos ou não de Vladimir Putin, a verdade é que seus planos de colocar a Rússia na balança do poder mundial não devem se encerrar tão cedo. Por isso, é preciso entender como pensa o líder russo. O livro Inside the Mind of Vladimir Putin (“Dentro da mente de Vladimir Putin”), de Michel Eltchaninoff, tenta desvendar como funciona a cabeça de um dos políticos mais icônicos das últimas décadas.

Segundo o autor, a base ideológica e filosófica do eterno presidente tem diversos componentes, que passam pelo saudosismo dos tempos soviéticos, pelo sentimento de pertencimento ao povo russo, pelo judô e por uma concepção do ocidente como adversário a ser combatido nos campos político e cultural. “Acima de tudo, Vladimir Putin é um realista”, afirma Eltchaninoff, filósofo e especialista no pensamento russo. “Ele adapta seu discurso de acordo com as circunstâncias e se recusa a ficar preso a qualquer ideologia”.

A adaptabilidade do político se deve à diversidade de posições ideológicas entre a população. O autor afirma que a Rússia se encontra dividida entre democratas anticomunistas, nacionalistas “mais ou menos” pró-soviéticos e os que sentem saudades dos tempos da União Soviética. “Mais e mais claramente, o presidente Putin veio a incorporar a vingança daqueles para quem o colapso da URSS e sua metamorfose em uma democracia são insuportáveis”. Essa é sua principal plataforma política.

O pragmatismo não exclui a necessidade de uma base filosófica. Por isso, Putin foi buscar em aliados e em autores clássicos e mais obscuros os alicerces de seu plano de ação para a Rússia e para o mundo. Segundo Eltchaninoff, sua doutrina busca inspiração na herança soviética e um liberalismo “fingido”, baseado no conservadorismo. Outro elemento é uma identidade russa, que fomenta o desejo de imperialismo baseado na ideia de Eurásia.

Liberal?

Apesar de ser um filho da era soviética e de ter servido na KGB (depois transformada em FSB), Putin não é um marxista. Em termos econômicos, o mandatário se considera mais um liberal do que socialista. Sua relação com o passado da URSS se dá de outras maneiras – por meio do patriotismo e da cultura militar. Embora não preste reverência total ao passado soviético, não permite que seja feita uma crítica dos erros do passado. A palavra-chave é reconciliação. Em uma entrevista a um programa de TV russo, Putin disse que “qualquer um que não sinta saudade da União Soviética não tem coração; e qualquer um que a queira de volta não tem cérebro”. Depois da queda da União Soviética, o presidente russo identificou um vazio ideológico no país. Por isso, tem se dedicado a fomentar o surgimento de um substituto, que teria todos os aspectos positivos do antigo sistema, mas que estaria bastante longe do comunismo.

O liberalismo de Putin, de acordo com Eltchaninoff, pode ser atribuído à sua cidade de origem, São Petersburgo, e à seus estudos em direito. Na segunda maior cidade da Rússia, o presidente russo entrou em contato com um certo cosmopolitismo e uma conexão com a Europa, além da racionalidade administrativa e científica. O direito o apresentou ao pensamento de autores como Kant, Hobbes e Locke, pilares do republicanismo ocidental. Em seu primeiro mandato, parecia que sua intenção era a de aproximar a Rússia da Europa e de normas e contratos internacionais. Nessa época, explica o autor do livro, Putin “repetidamente dizia a quem quisesse ouvir que a Rússia é inteiramente europeia”.

Era ilusão, no entanto, acreditar que havia qualquer chance de que a Rússia continuasse por esse caminho. Analistas creem que houve uma “virada conservadora” no pensamento do presidente. Essa, porém, não é a interpretação correta. Em autores russos, Putin já encontrava as bases de seus conservadorismo e nacionalismo. Dentre outros, Ivan Ilyin é um dos formadores do pensamento do presidente. Anticomunista, o filósofo considerava justo o uso da violência quando se trata de “fazer a coisa certa”. Chegou a elogiar os nazistas, Antonio de Oliveira Salazar (ditador em Portugal) e Francisco Franco (ditador na Espanha). Apesar de não ser propriamente fascista, Ilyin seria uma alternativa russa ao fascismo, avalia Eltchaninoff, “uma maneira de evitar o fascismo, mantendo-se próximo a ele”.

O pensador russo, já dá para perceber, não tinha nenhuma admiração pela democracia ocidental. Sua concepção de governo era algo que ficava entre o totalitarismo e a legitimidade popular; um regime, afirma Eltchaninoff, denominado “ditadura democrática”. As eleições não teriam nenhum papel; o líder nacional possuiria uma espécie de autorização moral para agir em nome do povo e exercitar o poder de maneira vertical. A razão de existência da Rússia não estaria em nenhum motivo político, mas sim em uma suposta unidade orgânica do país, que teria de ser preservado com suas características culturais e morais, sob o risco de “morrer”.

Da ideia da necessidade de preservar supostas características essenciais da sociedade russa derivam algumas das características marcantes da atuação do Kremlin na última década. O conservadorismo histórico de Putin exige que noções universalistas como democracia, direitos humanos e igualdade sejam vistos como adversários. Sob a ideia de que é necessário preservar a identidade do povo russo nasce a rejeição a diversos valores vistos como eminentemente perigosos, como a diversidade sexual.

Estaria explicado então o ataque constante de Putin aos homossexuais e sua profunda rejeição à ideia de tolerância a relações homoafetivas. Trata-se claro, de um conservadorismo de valores, mas que tem uma raiz muito clara: a Igreja Ortodoxa Russa. Esta se tornou aliada do presidente ao longo dos anos, além de ter fornecido bases morais para a definição do que é o povo russo. O livro chega a afirmar que Putin vê o país como um bastião da cristandade mundial, um local onde valores religiosos essenciais dão forma e sentido a um projeto de sociedade.

Tal formulação soa estranhamente familiar. Quem já estudou as bases teóricas e filosóficas do nazismo talvez reconheça ali ecos de Carl Schmitt, jurista e pensador alemão que formulou a estrutura política, moral e social para justificar a ascensão do Partido Nacional-Socialista da Alemanha. Simplificando, Schmitt considerava que existia um “verdadeiro” povo alemão, que seria a única fonte de legitimidade de qualquer governo que se pretendesse justo no país. Esse povo (“volks”) teria raízes históricas, sociais e étnicas comuns, e seria o único que poderia dar poder a qualquer governo. Uma vez que esse “povo” escolhesse seu governo, aclamasse tal liderança, o soberano teria a liberdade e o dever de agir em nome dele e se certificar que o país funcionasse para preservar a civilização alemã. Para Eltchaninoff, isso deve ter soado como “música” para os ouvidos de Putin.

Inside the Mind of Vladimir Putin ainda explora outros aspectos das bases intelectuais e políticas do presidente russo, como sua aproximação com a Ásia para a criação de um pólo de poder mundial independente de Estados Unidos e Europa, a visão de que o mundo eslavo deveria se unir completamente em torno da Rússia, o destaque ao escritor às visões do romancista Dostoiévski (crente na missão russa de salvar o mundo) e o imperialismo belicista. Embora traga uma visão panorâmica das doutrinas, obras e pensadores citados, o livro faz um importante trabalho de apresentar ao público ocidental um contexto intelectual que raramente é citado em coberturas jornalísticas.

Michel Eltchaninoff faz juízos de valor a respeito do conteúdo programático de Vladimir Putin, é verdade. Mas isso não invalida o trabalho de dissecção e enumeração feito pelo autor porque ficam claros para o leitor os momentos opinativos do livro. O valor do trabalho independe de concordarmos ou não com a perspectiva de Eltchaninoff. Inside the Mind of Vladimir Putin oferece um verdadeiro programa de estudos ao mundo ocidental, no qual encontramos um importante primeiro passo para entender como funciona um dos maiores, mais poderosos e mais importantes países do mundo.

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