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Livre comércio: de Marco Polo a Temer

Lourival Sant’Anna Quando Marco Polo esteve em Hangzhou, em 1276, nenhuma cidade do mundo “a rivalizava em beleza, opulência e sofisticação, ou em governo progressista e generoso”, segundo seu biógrafo, Laurence Bergreen. E toda essa prosperidade se devia a uma coisa: o comércio, que seu rei, Facfur, acreditava ser a maior fonte de poder, em […]

REUNIÃO DO G-20: presidente Xi Jinping advertiu para os perigos da onda de protecionismo  / Nicolas Asfonri/Pool

REUNIÃO DO G-20: presidente Xi Jinping advertiu para os perigos da onda de protecionismo / Nicolas Asfonri/Pool

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Da Redação

Publicado em 10 de setembro de 2016 às 06h43.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h48.

Lourival Sant’Anna

Quando Marco Polo esteve em Hangzhou, em 1276, nenhuma cidade do mundo “a rivalizava em beleza, opulência e sofisticação, ou em governo progressista e generoso”, segundo seu biógrafo, Laurence Bergreen. E toda essa prosperidade se devia a uma coisa: o comércio, que seu rei, Facfur, acreditava ser a maior fonte de poder, em vez da guerra. Marco Polo, ele mesmo um comerciante, testemunhou a fuga de Facfur e a tomada sem resistência de Hangzhou, “a maior joia da China”, pelas forças do imperador mongol Kublai Khan, que apostava mais na força das armas do que do comércio. Nessa mesma cidade, 740 anos depois, os governantes dos 20 países mais ricos reuniram-se para discutir os problemas do mundo e constataram aquilo que Facfur já sabia no século 13: o comércio é a chave da prosperidade, mas é também algo fácil de ser destruído.

Na abertura da reunião do G-20 no domingo, o presidente da China, Xi Jinping, advertiu para os perigos da onda de protecionismo — em atos e palavras — que varre o mundo. Refletindo as preocupações do anfitrião e de outros governantes ali presentes, o comunicado final da cúpula expressou “oposição ao protecionismo no comércio e nos investimentos em todas as suas formas”. Xi fez um apelo aos dirigentes ali reunidos para que não ficassem somente nas palavras e partissem para a ação. Mas isso é mais fácil de falar do que de fazer. A própria China é acusada de inundar o mundo com aço barato de suas estatais subsidiadas, de impor barreiras protecionistas e de manter sua moeda artificialmente desvalorizada.

“Os benefícios do comércio e dos mercados abertos precisam ser comunicados ao público mais amplo e mais efetivamente”, diz a declaração final, refletindo a preocupação com o populismo antiglobalização que define o momento político dos países mais prósperos. Nos Estados Unidos, Donald Trump arrebata quase metade dos votos, segundo as pesquisas, prometendo fechar as fronteiras tanto ao comércio quanto às pessoas. Na Grã-Bretanha, mais da metade dos cidadãos optou por sair da União Europeia exatamente para retomar o controle de suas fronteiras.

A livre passagem de pessoas, de bens e de investimentos está intimamente relacionada: faz parte da mesma lógica, segundo a qual o capitalismo funciona melhor, e gera mais riqueza para todos se o que Karl Marx chamava de “fatores de produção” — no caso, capital e trabalho — puderem se deslocar livremente, buscando a máxima eficiência. Na média, de fato, está provado que o livre comércio gera mais riqueza: de 1980 a 2015, a renda per capita do mundo cresceu 120% em termos reais. O problema é que ele não beneficia todos por igual — embora também haja estudos que mostrem que até mesmo a desigualdade diminui, com o comércio, enquanto outros indicam o contrário.

O certo é que o livre comércio deixa uma massa de “órfãos” da indústria, que sabe gritar alto, com seus sindicatos e seus votos, e vive agora o auge de sua expressão política com a ascensão do populismo de direita tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Em grande medida, os avanços tecnológicos, ao reduzir a necessidade de mão de obra, produziriam essa queda do emprego industrial, com ou sem comércio, mas a exportação das fábricas para outros países, em busca de salários mais baixos, e a venda dos produtos sem impostos para os mercados de onde essas fábricas saíram acabam levando toda a culpa. A avalanche de imigrantes do Oriente Médio e da África, combinada com os atentados terroristas, trouxe a lenha que faltava a essa fogueira.

O G-20 foi criado em 1999 para fazer frente à Crise Asiática. Dez anos depois, ele era pautado por uma nova crise. A liberdade de comércio, investimentos e trânsito de pessoas sempre esteve na retórica de seus participantes, mas a abertura dos mercados e das fronteiras é uma dessas coisas que o ser humano é levado a recomendar para os outros: “Faça o que eu mando, não faça o que eu faço”. Muito se avançou, com a União Europeia, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e centenas de acordos bilaterais. Depois da última crise, no entanto, o comércio estagnou: de acordo com um levantamento do Instituto Peterson para Economia Internacional (PIIE), com sede em Washington, desde 2008 as transações comerciais não crescem em relação à produção mundial. É a primeira vez que isso acontece por um período tão longo desde a Segunda Guerra Mundial. Antes, ocorrera em intervalos de no máximo quatro anos.

Isso se for considerado o valor das transações em dólares. Pelo critério do volume físico, o comércio se manteve estável de janeiro de 2015 a março de 2016, enquanto a economia mundial continuou a crescer nesse período, segundo o relatório Alerta do Comércio Global, feito pelo Centro para Pesquisa de Política Econômica, de Londres. Ou seja, o resultado já é negativo.

De acordo com o PIIE, as transações comerciais estagnaram nos últimos anos em razão de uma série de imperceptíveis “micromedidas protecionistas”. Houve, até aqui, certo pudor por parte dos países em se lançar abertamente no protecionismo — até porque as regras da Organização Mundial do Comércio preveem sanções contra isso. Entretanto, agora, a conjunção de queda da qualidade do emprego — do setor industrial para o de serviços — com imigração e terrorismo criou uma base eleitoral fácil de conquistar. Pelos complexos meandros da democracia, as fronteiras abertas tornaram-se um alvo tão fácil quanto as portas de Hangzhou para o exército de Kublai Khan.

“É difícil para o G-20 produzir um plano de ação coordenado porque muitos dos países-membros estão amarrados por seus problemas internos”, analisa o economista Rajiv Biswas, da consultoria IHS Markit, de Londres. “O presidente Xi soou o alarme de forma correta sobre a necessidade de se contrapor ao crescimento do protecionismo em todo o mundo”, reconhece James Zimmerman, presidente da Câmara de Comércio Americana na China. “Mas ações falam mais alto do que palavras, e a bola está na quadra da China para implementar suas próprias reformas necessárias para permitir maior acesso de produtos estrangeiros, serviços e tecnologia a seu mercado.” Embora ainda deva crescer ao redor de 6,5% neste ano, e seu regime não tenha de se preocupar com eleições, a China enfrenta tensões sociais com a desaceleração econômica, às quais Xi tem respondido com a reafirmação da ortodoxia marxista do Partido Comunista — seja lá o que isso significa na China de hoje.

O peso da política 

Assim como a liberalização comercial nos anos 80 e 90 foi possível graças a líderes conservadores com força suficiente para defendê-la, enfrentando o instinto de seus eleitores, como Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Helmut Kohl, também agora são líderes conservadores que promovem o fechamento, explorando o instinto dos eleitores, em vez de enfrentá-los. Partindo dos conservadores, que eram os guardiães do livre comércio, é fácil empurrar juntamente com eles os adversários de esquerda, naturalmente mais propensos ao protecionismo.

Assim, Hillary Clinton, que como secretária de Estado arquitetou a estratégia do “pivô para a Ásia”, recuou na campanha e se colocou contra a Parceria do Transpacífico. Até mesmo o Nafta, implementado por seu marido no início dos anos 90, é agora ameaçado por seu adversário, sem que ela reúna forças para fazer uma defesa contundente do livre comércio com o Canadá e o México. Assim como os trabalhadores de colarinho azul do Cinturão da Ferrugem — os estados industriais do nordeste americano —, agora é a vez de o comércio ficar órfão de defensores.

Na Europa, ao plebiscito que selou a saída britânica da União Europeia se seguiu agora a derrota eleitoral da chanceler Angela Merkel em seu estado, Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental. Seu partido, a União Democrata Cristã, ficou em terceiro lugar nas eleições locais, atrás da Alternativa para a Alemanha, que se opõe à União Europeia e à entrada de imigrantes. Na França, segundo as pesquisas, Marine Le Pen, da Frente Nacional, que segue a mesma linha eurocética e xenófoba, tem chance de se eleger presidente no ano que vem.

Pela lógica da democracia, todos esses movimentos tendem a colocar os partidários do comércio na defensiva se quiserem continuar viáveis politicamente. A menos que demonstrem a capacidade de liderança de um Reagan, uma Thatcher, um Kohl e um François Mitterrand, que, socialista como o atual presidente francês, François Hollande, apostou no entanto seu futuro e legado políticos no projeto da União Europeia.

Até aqui, tem havido alguns poucos sinais dessa resistência. Merkel, que também enfrenta eleições no ano que vem, anunciou que não abrirá mão de sua “política de portas abertas” e vem se reunindo com governantes da União Europeia para articular o relançamento do bloco, de modo a atender suas diversas preocupações, seja com a estagnação econômica (Itália e Grécia) e o desemprego (Espanha e Portugal), seja com a imigração (países do Leste Europeu) e o terrorismo (França e Bélgica). Merkel, do mesmo partido de Kohl, tem agora uma responsabilidade maior ainda do que ele: nos anos 80 e 90, a Alemanha contava com a parceria da Inglaterra, governada por conservadores pró-comércio.

No caso britânico, a nova primeira-ministra, Theresa May, fez campanha em favor da manutenção do país na UE, mas adotou a posição firme de não questionar o resultado apertado do referendo. Entretanto, ela tem chamado para si a missão de abrir o mercado do Reino Unido para o comércio e os investimentos ainda mais do que quando pertencia à UE. Em sua estreia na cúpula de Hangzhou, May iniciou conversas sobre acordos bilaterais de livre comércio com China, Índia, México, Coreia do Sul, Singapura e Austrália. E foi excluída de reuniões com Alemanha, França e Itália — que não têm perdido a oportunidade de lembrar o Reino Unido de que sua decisão tem um preço.

E o Brasil nisso tudo? O aproveitamento do presidente Michel Temer foi bastante prejudicado pelo fato de só ter podido confirmar oficialmente sua participação de última hora, já que a destituição de Dilma Rousseff foi confirmada pelo Senado três dias antes do início da cúpula. A recessão e a desordem econômica se somaram à incerteza política para tornar esse G-20 uma oportunidade perdida para o Brasil. O retrato disso está estampado na foto oficial do encontro, no qual Temer aparece num canto, longe dos principais líderes. Restou ao chanceler José Serra, em entrevista coletiva, uma posição defensiva, na qual classificou de “folclore” a imagem do Brasil de economia fechada.

O fato é que o Brasil, se realmente resolver abraçar o livre comércio, subirá muito atrasado no trem e no momento em que o freio está sendo está puxado. Isso vai requerer ainda mais clareza estratégica do Brasil. Algo que o país não demonstrou até agora. Quando Facfur ainda era rei, um astrólogo lhe disse que somente um homem com 100 olhos seria capaz de derrotá-lo. Considerando que tal pessoa não existia, Facfur baixou a guarda e não ergueu defesas ao redor de Hangzhou. O que ele não sabia era que Kublai Khan tinha um general chamado Bayan Cem Olhos. Foi sob seu comando que os mongóis tomaram a cidade. Desde então se sabe que é preciso muita sabedoria e liderança para fazer frente às ameaças que espreitam contra a liberdade.

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