Javier Milei, presidente eleito da Argentina (Pablo Porciuncula/AFP)
Agência de notícias
Publicado em 28 de dezembro de 2023 às 11h26.
Última atualização em 28 de dezembro de 2023 às 13h12.
Em pouco mais de duas semanas de governo, o presidente da Argentina, Javier Milei, surpreendeu o país com duas iniciativas inéditas, que pretendem promover reformas profundas no Estado, na legislação vigente, no funcionamento de organismos estatais, no sistema de saúde e educação, na Justiça, e no Código Penal, entre muitas outras.
Para tornar a Argentina livre, em suas próprias palavras, o chefe de Estado escolheu dois caminhos, que avançam em paralelo. O primeiro deles foi anunciado semana passada: um megadecreto presidencial de necessidade e urgência, que prevê a revogação de mais 300 leis e normas em matéria de mercado de trabalho, planos de saúde, aluguéis e privatização de empresas estatais, entre muitas outras.
Os chamados DNU são um recurso ao qual os presidentes argentinos podem apelar em situações emergenciais. Seu conteúdo entra em vigor oito dias após sua publicação no Boletim Oficial (o Diário Oficial argentino), prazo que vence nesta sexta. Os DNU são enviados ao Congresso, onde são analisados por uma comissão de oito senadores e oito deputados, que deve dar um parecer.
Se o parecer for negativo, o DNU deve ser submetido à votação na Câmara e no Senado, e, para ser derrubado, precisa ser rejeitado por ambas as Casas. Caso isso não aconteça, o DNU fica vigente. O Congresso argentino nunca analisou 160 DNU do governo do ex-presidente Alberto Fernández, que, portanto, estão em vigor.
O segundo caminho escolhido por Milei para impulsionar suas reformas foi um megaprojeto de lei intitulado “Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, chamada popularmente de Lei Ônibus, por seu tamanho e abrangência. O texto tem 351 páginas e 664 artigos, e foi enviado nesta quarta-feira ao Congresso. Diferentemente do DNU, a Lei Ônibus precisa ser aprovada pelo Parlamento. Através deste caminho, o presidente propôs reformas que não podem ser feitas por decreto, por exemplo, em matéria eleitoral e modificações do Código Penal, entre outras.
O projeto estabelece uma "declaração de emergência em temas econômicos, financeiros, fiscais, sociais, de previdência, segurança, defesa, tarifários, energéticos e sociais" até o fim de 2025, podendo prorrogar esse prazo até 2027, ou seja, incluindo os quatro anos de mandato de Milei. Se aprovada, a medida daria poderes excepcionais ao presidente durante o período estabelecido para intervir nesses campos, sem passar pelo Congresso.
O projeto determina a modificação do artigo 194 do Código Penal, e endurece as condenações para quem “sem criar uma situação de perigo comum, impedisse ou entorpecesse o normal funcionamento dos transportes por terra, água ou ar, ou os serviços públicos de comunicação, fornecimento de água, eletricidade”. Neste caso, o delito sofrerá pena de prisão de um a três anos. O governo pede condenações de até seis anos para quem organizar protestos que descumpram as normas vigentes e intimidem pessoas “simulando autoridade pública ou falsa ordem de autoridade, com a promessa de remuneração ou ameaça de perda de benefícios, programas sociais ou subsídios”. A medida tem como claro alvo as organizações piqueteiras e movimentos sociais.
O texto estabelece que “serão endurecidas as condenações para delitos de atentado e resistência à autoridade, e regulamentada o direito à legítima defensa, dando maior certeza jurídica aos cidadãos e às forças de segurança”. No caso das forças de segurança, o projeto de Milei deixa claro que não serão punidos “os que atuarem no cumprimento de um dever ou no legítimo exercício de seu direito, autoridade ou cargo”. Também fica livre de punições quem “atuar em virtude de sua obediência devida”.
O projeto ordena as privatizações de empresas estatais “dada à necessidade de concentrar a atividade do Estado nas suas funções essenciais”. O texto afirma que a venda de empresas em poder do Estado vai "gerar maior concorrência e eficiência económica, reduzir a carga fiscal, melhorar a qualidade dos serviços, promover o investimento privado e profissionalizar a gestão das empresas”. A lista incluída no projeto menciona 41 empresas, entre elas a Aerolíneas Argentinas, a companhia petrolífera YPF, Correio Argentino e Banco de la Nación Argentina.
Milei estabelece a implementação em todo o país do julgamento com júri, que já existe em algumas províncias como Córdoba, Neuquén, Buenos Aires e Chaco. “Esta lei visa estabelecer julgamentos com júri no âmbito da administração da justiça federal”, diz o texto. O texto afirma, ainda, que “o debate será conduzido pelo juiz que for nomeado, que exercerá todos os poderes de direção, polícia e disciplina do Código de Processo Penal Federal”, e enfatiza: “O juiz usará toga preta e um martelo para abrir e fechar sessões ou ao resolver um incidente.”
A proposta que o Congresso analisará propõe eliminar o atual sistema que taxa com 50% do valor da compra despesas feitas no exterior acima de US$ 500. Milei quer liberar a entrada produtos importados através dos aeroportos, permitindo aos argentinos que possam trazer o que quiserem, sem limites de valor.
O governo de Milei propôs que casais que decidam de comum acordo dissolver a relação conjugal terão apenas de comunicar sua decisão às autoridades administrativas do Registo Civil, num procedimento que não exigirá a intervenção de advogados ou juízes. “Alinhado à modernização da legislação e ao respeito à preponderância da liberdade individual, é incorporado para o nosso país um novo procedimento, comumente utilizado em muitas outras nações do mundo, que é a possibilidade de os cônjuges solicitarem a dissolução do vínculo matrimonial com a única apresentação perante o mesmo órgão administrativo que celebrou o casamento civil, sem necessidade de intervenção judicial", estabelece o projeto.
O projeto de Milei inclui uma exigência incomum para reuniões em espaços públicos, já que no caso de participação de três ou mais pessoas os argentinos deverão solicitar autorização ao Ministério da Segurança Nacional, com 48 horas de antecedência.
O texto fala em “fortalecer a atenção integral à saúde das mães em situação de vulnerabilidade e das crianças desde o momento da concepção até os três anos de idade, a fim de reduzir a mortalidade materna e infantil, a desnutrição e a desnutrição, a proteção e o estímulo aos vínculos precoces e o desenvolvimento físico e emocional”. A expressão “desde o momento da concepção” poderia abrir um debate sobre a lei de legalização do aborto, vigente no país.
O projeto estabelece que a publicidade de eventos, programas, obras, serviços e campanhas institucionais de órgãos públicos devem ter caráter educativo, informativo ou social, e não podendo incluir nomes, textos, símbolos ou imagens que envolvam partidos políticos ou pessoas físicas.
O texto elaborado pelo governo de Milei elimina as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), eleição na qual os argentinos escolhem os candidatos que disputarão pleitos pela Presidência, vagas no Congresso, governos estaduais e municipais. Sem as Paso, as eleições argentinas terão apenas dois turnos, já que as primárias, na prática, acabam se transformando no primeiro turno.