Itália: no país, o aborto é um direito há 40 anos, mas sua aplicação ainda é complicada em muitas regiões (Patrizia Cortellessa/Pacific Press/Getty Images)
EFE
Publicado em 27 de novembro de 2018 às 10h16.
Roma - Na católica Itália, o aborto é um direito há 40 anos, mas sua aplicação ainda é complicada em muitas regiões, já que mais de 70% de ginecologistas do país se declaram objetores de consciência.
Diante desta situação e pelo temor que o atual governo do partido antissistema Movimento Cinco Estrelas (M5S) e do ultradireitista Liga faça "retroceder os direitos das mulheres", um grupo de ginecologistas feministas pediram à ministra de Saúde, Giulia Grillo, que "aplique a Lei 194", que regula o aborto na Itália.
O pedido, impulsionado na plataforma Change.org e que já soma mais de 100.000 assinaturas, tem "ainda mais sentido" depois que na semana passada foi revelado que um médico de Nápoles se negou em julho a atender uma mulher em risco de morte por um aborto espontâneo, o que terminou causando a demissão do ginecologista.
Desde 1978, a chamada Lei 194 permite às mulheres abortar gratuitamente sem restrições nos primeiros 90 dias de gravidez e apenas em caso de perigo para a mãe ou má-formação do feto após esse período.
No entanto, a legislação também ampara o direito à objeção de consciência dos médicos e do pessoal sanitário que, portanto, não são obrigados a praticar abortos se não quiserem.
Este é, precisamente, o principal empecilho para garantir o direito ao aborto: se em 2005 os ginecologistas objetores representavam 58,7% em toda a Itália, segundo dados do Ministério da Saúde, em 2016 já eram 70,9%, embora em regiões como Basilicata, no sul, a porcentagem alcance 88,1%.
"Como se pode garantir assim o direito ao aborto? A solução é simplesmente aplicar a lei", declarou à Agência Efe a ginecologista Silvana Agatone, uma das promotoras do pedido e presidenta da Livre Associação Italiana de Ginecologistas pela Aplicação da Lei 194/78 (Laiga).
Agatone assegura que "a única coisa que é preciso fazer é aplicar completamente a lei, que diz que os hospitais devem oferecer o aborto", e acredita que a solução passa por "estabelecer a presença obrigatória de ginecologistas não objetores nas 24 horas do dia" e por "sancionar os centros que não assegurem a plena assistência".
Os últimos dados oficiais, de 2016, revelam que, do total de 614 hospitais italianos, só em 371 (60,4%) se podia abortar, uma cobertura que, segundo o relatório do Ministério da Saúde, é "adequada".
Para Agatone, a objeção de consciência "provoca humilhação e abandono da paciente" e acaba direcionado as mulheres ao aborto clandestino.
"Ponho em questão os dados do Ministério, que dizem que em 2016 houve 84.926 abortos, 2.713 a menos que em 2015. Não é verdade que haja menos abortos, mas muitas mulheres se veem obrigadas a fazê-lo na clandestinidade porque há regiões onde é muito difícil encontrar um médico que queira realizá-lo", lamentou.
As ginecologistas que assinam o pedido a Grillo citam como exemplo da necessidade de atuar a morte de uma mulher de 32 anos em 2016 em um hospital de Catânia, na Sicília, depois que "12 médicos objetores se negaram a praticar um aborto de emergência", embora a Justiça ainda esteja esclarecendo o caso.
Por trás do apelo destes coletivos feministas para aplicar a Lei 194 está uma reivindicação muito mais ampla: "Que não nos retirem os direitos que as mulheres já tínhamos adquiridos", destacou Agatone.
"Não podemos deixar que passem por cima da gente. Não tememos que nos tirem o direito ao aborto, já sabemos que querem fazer isso", salientou, em referência ao que acredita ser as intenções do governo italiano, apesar de a ministra Grillo ter garantido que não fariam "nenhuma revisão" da Lei 194.
Os medos se justificam, sobretudo, por iniciativas como as que foram aprovadas em outubro pela cidade de Verona, que se declarou pró-vida e prometeu fundos públicos a projetos contra o aborto financiados pela Igreja Católica e por entidades privadas.
Mas os temores também chegam do Vaticano, que tem ainda uma influência notória na Itália, com as recentes declarações do papa Francisco ao comparar o aborto com quem contrata "um assassino para resolver um problema".
O objetivo de Agatone e de seus pedidos é "simplesmente fazer os políticos entenderem que não estamos dispostas nem a perder direitos nem a voltar à Idade Média".
"O que gostariam, na realidade, é que as mulheres voltássemos às nossas tarefas em casa", criticou a ginecologista.