Putin em cerimônia ao lado dos líderes de Donestk e Lugansk, na segunda-feira, 21: tensões aumentam na Ucrânia (Alexei NikolskyTASS/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 22 de fevereiro de 2022 às 06h00.
Última atualização em 22 de fevereiro de 2022 às 11h41.
Após a Rússia reconhecer a independência e direcionar tropas a duas regiões separatistas na Ucrânia, a terça-feira começa com a expectativa de uma série de negociações de emergência para tratar dos próximos passos na crise. São esperadas ainda novas sanções contra os territórios separatistas em Donbas.
Os territórios no centro do conflito são Donetsk e Lugansk, localizados no leste ucraniano (fronteira com a Rússia) e que estão em guerra civil com o governo ucraniano desde 2014, mesma época da anexação da Crimeia.
A Rússia afirma que o envio de tropas para o local é medida de proteção contra possíveis ataques da Ucrânia e do Ocidente. Tropas começaram a chegar já durante a noite, segundo observadores.
O Parlamento russo deve ratificar o reconhecimento dos dois territórios como independentes também hoje, após o anúncio do presidente Vladimir Putin na segunda-feira.
Horas após os desdobramentos, os Estados Unidos anunciaram as primeiras sanções proibindo investimentos e comércio, de pessoas ou empresas em solo americano, com os dois territórios separatistas - mas não com a Rússia. Novas sanções dos EUA são esperadas para esta terça-feira, segundo a Casa Branca. O Reino Unido também afirmou que anunciará sanções.
Outros aliados ocidentais podem também anunciar novas medidas ao longo do dia, incluindo uma possível resposta conjunta da Otan, aliança militar do Ocidente, ou da União Europeia.
Na madrugada desta terça-feira, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) realizou também uma reunião de emergência para tratar do assunto, a pedido da Ucrânia, da França e de outros países.
As reuniões têm sido usadas para discutir a crise, mas não são tomadas medidas práticas, uma vez que a Rússia tem poder de veto nas resoluções.
O embaixador russo na ONU, Vasily Nebenzya, disse que o envio de tropas se fez necessário em resposta ao que chamou de "retórica belicosa" da Ucrânia e do Ocidente e risco de ataque aos territórios separatistas. “Continuamos abertos à diplomacia, mas permitir um banho de sangue em Donbas não é o que nós pretendemos fazer”, disse Nebenzya.
Em breve fala, o representante da China, Zhang Jun, não condenou diretamente a ação russa e disse que a situação é "complexa", enquanto pediu a "todas as partes" que "evitem qualquer ação que possa alimentar tensões".
Tem havido uma aproximação nos bastidores entre Rússia e China para fazer frente aos Estados Unidos, mas os chineses, ao mesmo tempo, se mantém relativamente discretos nos pronunciamentos. Analistas apontam que à China interessa os desdobramentos na Ucrânia para testar os limites da ação ocidental frente a seus interesses na ilha de Taiwan.
Enquanto isso, uma aguardada nova reunião entre Putin e o presidente americano, Joe Biden, está em negociação para os próximos dias, porém ainda não foi confirmada.
Um alto oficial americano afirmou em teleconferência com jornalistas nesta segunda-feira que os EUA vão continuar buscando diplomacia com a Rússia "até os tanques deslizarem", mas que uma condição americana é a prerrogativa de que a Rússia não ataque a Ucrânia, o que não tem sido garantido.
"Nosso forte senso, baseado em tudo o que estamos vendo em solo nas áreas ao redor da Ucrânia – ao norte, ao leste, ao sul –, é que a Rússia continua se preparando para uma ação militar, que pode ocorrer nas próximas horas ou dias", disse a fonte, conforme reportado pela Casa Branca.
"E, portanto, certamente [a Rússia] não pode se comprometer com uma reunião que tenha como prerrogativa que a Rússia não fará uma ação militar, quando parece tão iminente que eles o farão."
Apesar das primeiras medidas e das respostas de líderes ocidentais, o envio de tropas apenas aos territórios em Donbas não constitui ainda o que o Ocidente pode considerar uma "invasão completa" da Ucrânia.
As regiões já estavam em guerra civil e parcialmente sobre controle de separatistas apoiados pela Rússia, mesmo que não de forma oficial.
As potências ocidentais têm prometido o que chamam de um grande pacote "unificado" de sanções diretas contra a Rússia no caso de uma invasão de fato.
A Casa Branca afirmou na segunda-feira que as primeiras sanções contra os territórios em Donbas não esgotam um arsenal de medidas mais amplas que os aliados da Otan podem implementar, mas não deu mais detalhes.
A Ucrânia não faz parte da Otan, de modo que países do grupo não estão obrigados a defender a integridade ucraniana no caso de uma invasão. Assim, as sanções têm sido a principal medida ventilada até o momento.
Um dos obstáculos na aplicação de sanções mais duras vem sendo a dependência de países europeus do gás natural russo (40% do gás na Alemanha, usado para energia elétrica, vem da Rússia).
A União Europeia já possui uma série de sanções contra políticos e cidadãos russos - a última delas implementada na segunda-feira contra políticos que participaram do referendo na Crimeia -, que incluem congelamento de contas e proibição de circular na UE. São prometidas medidas mais amplas no caso de invasão russa, mas os custos para a Europa seriam altos.
Embora a entrada das tropas em Donbas não seja ainda vista como cruzar uma linha vermelha, a Casa Branca continua afirmando que uma invasão russa a Kiev pode ocorrer a qualquer momento.
Estimativas recentes dos EUA apontam que pode haver até 190 mil soldados russos em diversos pontos da fronteira com a Ucrânia, contingente que aumentou nas últimas semanas.
A Rússia tem apoiado separatistas em Donetsk e Lugansk de forma não oficial desde 2014, mas oficializou de vez a situação com a declaração de independência e posterior anúncio de envio de tropas neste 21 de fevereiro.
O governo ucraniano, nos últimos oito anos, não tem sido capaz de conter os separatistas, que declararam duas repúblicas autônomas. Os acordos de Minsk, mediados por França e Alemanha em 2015 e que visavam um cessar-fogo para o conflito, nunca foram totalmente implementados.
Mesmo antes de a crise na fronteira se intensificar, estima-se que a guerra civil na região de Donbas e na Crimeia (antes da anexação) deixou mais de 14.000 mortos.
Potências do Ocidente afirmam que o reconhecimento russo é ilegal e que as regiões de Donbas são territórios ucranianos. Na prática, o que pode acontecer com os dois territórios é o mesmo destino da Crimeia, que entrou em conflito separatista em 2014 e terminou decidindo, em referendo, se juntar à Rússia.
A grande dúvida é se a Rússia parará na fronteira. Há o temor de que a entrada russa oficialmente em Donbas seja um primeiro passo antes de uma eventual invasão à Ucrânia, incluindo à capital Kiev, o que Putin nega. Diante da ameaça, países têm esvaziado suas embaixadas em Kiev e pedido a cidadãos nas últimas semanas que deixassem imediatamente o país.
As regiões no leste da Ucrânia são também territórios delicados por terem grande número de russos étnicos.
Por vezes, há visões diferentes em relação à população ucraniana da capital Kiev e do oeste do país, que se posicionou em massivos protestos em 2013 a favor de um ingresso na União Europeia e na Otan.
O governo ucraniano, por sua vez, também acusa a Rússia de estar oferecendo cidadania russa a pessoas nas regiões de conflito, para afirmar depois que precisaria proteger uma suposta maioria russa na região.
O presidente Vladimir Putin tem feito desde 2007 questionamentos sobre a expansão da Otan no leste europeu e sobre o próprio status de independência de ex-repúblicas da antiga União Soviética. Putin cresceu na URSS e foi ex-espião da KGB, serviço secreto soviético.
Ao anunciar o reconhecimento da independência das duas regiões em Donbas nesta tarde, Putin citou não só a relação da Ucrânia com a Otan, mas questionou a própria existência da Ucrânia como república independente a partir de 1991.
O presidente russo chegou a afirmar que a Ucrânia é um país sem tradição de Estado independente e uma criação "artificial" do fundador da União Soviética, Vladimir Lenin. Com frequência, Putin cita também o fato de Kiev ser parte do antigo Império Russo.
Para além do debate histórico, Putin alega que a Ucrânia é uma ameaça à segurança nacional russa e que, se entrasse na Otan, poderia ser um "trampolim" para um eventual ataque ocidental à Rússia.
A Rússia exige que a Otan pare sua expansão rumo ao leste europeu, não aceite a Ucrânia como membro e que enfraqueça sua posição em países de antiga influência soviética que já fazem parte da aliança.
A entrada da Ucrânia na Otan chegou a ser ventilada nos anos 2000 e 2010, mas não foi adiante devido aos conflitos na fronteira. Em massivos protestos em 2013, a população ucraniana (sobretudo no oeste do país) derrubou o então presidente alinhado à Rússia e demandou que o governo assinasse um acordo de aproximação com a União Europeia. O movimento desagradou o governo russo em Moscou, e meses depois, estouraria a crise na Crimeia e nas regiões separatistas.
Antes da anexação da Crimeia e do início dos conflitos separatistas em Donbas em 2014, a Rússia havia ainda atacado em situação semelhante a Geórgia em 2008, ex-república soviética que também começava a negociar um ingresso na Otan.