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Entrevista: Rússia selou divórcio com o Ocidente, e terá de lidar com isso

A guerra na Ucrânia coloca o governo Vladimir Putin em um embate sem precedentes. Aproximação com a China, por outro lado, pode criar um microcosmo entre os países, aponta Thiago de Aragão, da Arko

 (Andrey Rudakov/Bloomberg/Getty Images)

(Andrey Rudakov/Bloomberg/Getty Images)

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Carolina Riveira

Publicado em 9 de março de 2022 às 09h44.

Última atualização em 9 de março de 2022 às 09h49.

Desde o fim da União Soviética nos anos 1990, as relações entre sua herdeira Rússia e potências ocidentais sempre foi algo delicada. Piorou com ameaças como a invasão à Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia em 2014 ou a presença russa na Síria. Mesmo assim, entre um discurso duro e outro, a economia seguia girando - e o gás e petróleo russos, fluindo rumo à Europa e aos mercados globais.

Mas nada se compara à guerra na Ucrânia, que coloca o governo Vladimir Putin em um embate sem precedentes, e sem saída à vista para o mandatário russo. "A Rússia selou um divórcio com o mundo ocidental. E terá de se virar a partir daí", resume Thiago de Aragão, diretor de estratégia da consultoria Arko Advice e mestre em Relações Internacionais, baseado nos Estados Unidos.

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Aragão falou à EXAME sobre os impactos do conflito no petróleo, a relação com a China e as preocupações da Europa, como parte da seção Capa do Dia sobre a economia da Rússia (e antes do anúncio feito pelos EUA sobre a proibição do petróleo russo, que chacoalhou os mercados na terça-feira, 8). Com as negociações diplomáticas ainda engatinhando, as reviravoltas devem continuar nos próximos dias. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

Thiago de Aragão: "antigamente, as sanções cobriam países que não tinham poder de gerar um ambiente saudável comercial entre eles" (YouTube/Reprodução)

Quais são os grandes impactos econômicos da guerra que podem aparecer daqui para a frente, incluindo em frentes para além do petróleo? 

Primeiro, há os impactos nas áreas que já sabemos, a alta do petróleo, alta no trigo, em diversas commodities. E o impacto das sanções para economia russa também acaba afetando a Europa, que vai ter de se reposicionar em termos de fornecimento de gás.

Por outro lado, um dos aspectos relevantes é que a China vai passar a ter um fornecimento mais dedicado a ela partindo da Rússia, porque a Rússia não vai ter tantas outras outras opções para exportar gás, petróleo, alumínio, lítio. Se a China garante uma fonte contínua e tranquila de lítio da Rússia, não vai precisar buscar em tantos lugares no mundo como faz hoje, o que é importante para produzir baterias, por exemplo.

A alta do petróleo no mercado internacional não pode minimizar o impacto das sanções para a economia russa?

A Rússia selou um divórcio com o mundo ocidental, com a Otan, com a Europa e com vários países aliados aos Estados Unidos. E vai ter de se virar a partir daí.

Mas uma diferença é que, antigamente, as sanções cobriam países que não tinham poder de gerar um ambiente saudável comercial entre eles, como Cuba, Coreia do Norte, Venezuela. Mas, quando se tem China, Rússia, Irã, dentro de um universo de sanções, esses países produzem coisa suficiente que possam criar um microcosmos de funcionamento entre eles. E, assim, o impacto das sanções pode acabar sendo um pouco minimizado. Claro que a economia russa não vai decolar, mas enquanto eles têm a China por perto, também não vai afundar.

Como fica a relação geopolítica com a Europa?

A Europa vai ficar em alerta máximo durante um bom tempo, mesmo depois da guerra na Ucrânia. Porque se o Putin obtiver uma vitória, vai poder sempre ameaçar outros países que não são da Otan, como Moldávia, Geórgia, sem o temor de ter algum tipo de retaliação. Porque, primeiro, ele já vai ter sofrido sanções econômicas ao máximo. Em segundo lugar, ele vai saber que a Otan não vai fazer nada militarmente.

O risco é se a Rússia resolve fazer algo em relação a Estônia, Letônia, Lituânia, e até dois países que não são da Otan, Suécia e Finlândia, que Putin já ameaçou. Mas esses são países que são da União Europeia, de modo que eu acho muito improvável que, se a Rússia fizesse uma ação militar contra a Suécia, por exemplo, não teria o envolvimento de tropas da Otan para defender.

Xi Jinping, Angela Merkel, Vladimir Putin e outros líderes no último G20 de 2019: Ucrânia marca rompimento mais profundo de Putin com o Ocidente (Tomohiro Ohsumi/Getty Images)

Qual é o papel da Rússia na economia mundial hoje, de forma mais estrutural? Embora o país seja herdeiro de uma potência, a União Soviética, e isso se mostre militarmente, a economia já vinha tendo problemas.

Economicamente, a Rússia tem um papel muito importante em petróleo, e é também o maior fornecedor de petróleo para a China. Só isso já a coloca como um dos países que são extremamente estratégicos. Por outro lado, tem os fertilizantes - no Brasil, 23% dos fertilizantes consumidos vêm da Rússia -, alumínio, gás natural, tudo isso faz a Rússia ser muito importante.

Já o crescimento da economia russa é uma outra questão, não é necessariamente ligado à capacidade de exportar commodities. A indústria russa é hoje fraca, em que a parte mais desenvolvida é a área militar. Isso faz com que a Rússia tenha o segundo exército, em tese, mais poderoso do mundo. Mas essa indústria russa não consegue produzir tudo, e inúmeros produtos manufaturados que chegam são europeus. E isso vai mudar a partir de agora, vão ser mais produtos chineses.

Essa relação China-Rússia é parecida com a de outros países emergentes, ou o caso russo é específico? Qual é o papel da China hoje?

A China tem de fato um papel muito importante, obviamente não só pra Rússia, é o país chave para inúmeros emergentes no mundo.

Com os emergentes, a China consegue fazer uma via de mão dupla, compra commodities e exporta manufaturados. E vários países emergentes não têm uma capacidade econômica para, por exemplo, comprar dos países desenvolvidos o que eles querem ou precisam no âmbito tecnológico. E quando a China desenvolve similares que são tão bons quanto e mais baratos, isso faz com que vários países emergentes se tornem dependentes.

Loja da AliExpress em shopping de Moscou (foto de arquivo): dependência crescente de países emergentes em relação à China (Andrey Rudakov/Bloomberg/Getty Images)

São três tipos de dependência. Há a dependência comercial, que é o caso do Brasil - se a China para de comprar os nossos minérios ou os nossos grãos, ficamos numa situação complexa. Há a dependência financeira, caso da Venezuela, ou a Argentina, que é uma mistura de dependência financeira e comercial. Temos outros exemplos, Congo, Etiópia.

E se nos aprofundarmos, já aparece a dependência tecnológica, caso da Nicarágua, que tem câmeras termais doadas pela China que nunca poderia ter comprado de outros países. Outra forma de dependência tecnológica é a Huawei, que consegue oferecer redes de 5G num custo bem mais baixo.

De alguma forma, podemos colocar a Rússia nessa análise mais ampla de "BRICs" (grupo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que não engrenaram, incluindo o próprio Brasil?

A noção de BRICs que não engrenaram é muito relativa. Porque isso é dentro de uma ótica nossa, minha inclusive, das análises de crescimento econômico, de PIB per capita, da capacidade do país de gerar riqueza - e aquela riqueza ser distribuída e alimentar a capacidade da sociedade de crescer.

Agora, do ponto de vista de encontrar fontes contínuas de geração de caixa, a Rússia não tem problema - assim como o Brasil também não tem problema no campo agrícola. Mas o Brasil também depende de algumas coisas que a Rússia não depende. O Brasil, por exemplo, para produzir muita soja, precisa de fertilizante que vêm de outro lugar. Já a Rússia, para distribuir gás e petróleo, só precisa que o país que quer comprar faça um investimento necessário para que essas fontes de energia cheguem até lá.

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