Nicolás Maduro (Reuters/Reuters)
Da Redação
Publicado em 19 de maio de 2018 às 10h02.
Última atualização em 19 de maio de 2018 às 11h05.
O último a sair, apague a luz. A fuga de empresas, profissionais qualificados e pessoas comuns da Venezuela teve mais um lance simbólico na terça-feira com a saída da Kellogg, fabricante de cereais americana.
O presidente Nicolás Maduro reagiu ao estilo chavista: “É a guerra das transnacionais e do imperialismo”, denunciou durante um comício em sua campanha para a reeleição neste domingo. “Entregamos a empresa aos trabalhadores e vamos iniciar ações judiciais para que paguem nos tribunais”.
No cargo desde 2013, Maduro comanda o país mais espetacularmente arruinado do mundo, mas deve se reeleger, graças a uma combinação de fraude, eliminação sistemática e boicote da oposição, votos em troca de comida e descrença da população.
Os principais líderes oposicionistas estão impedidos de votar: Enrique Capriles teve os direitos políticos cassados, Leopoldo López está preso e Antonio Ledezma, também condenado à prisão, está foragido na Espanha. A Mesa da Unidade Democrática (MUD), frente opositora, boicotou a eleição, considerando-a ilegal.
Pela Constituição, o pleito deveria ser convocado pela Assembleia Nacional, de maioria oposicionista, e ocorrer em dezembro. Preocupada com a perspectiva de deterioração ainda maior da economia este ano (o que exige criatividade), a Assembleia Nacional Constituinte, eleita de forma fraudulenta no ano passado e composta exclusivamente de chavistas, antecipou o pleito. O mandato de Maduro termina em janeiro. Só alguém que já sabe o resultado realizaria eleições oito meses antes da posse.
O chamado Grupo de Lima, composto de 13 países latino-americanos, incluindo o Brasil, e mais o Canadá, já afirmou que não reconhecerá o resultado dessa votação, que elegerá também vereadores e deputados estaduais. O grupo foi formado no ano passado para articular posições sobre a Venezuela, que não faz parte dele, assim como seus aliados na região.
O Conselho Nacional eleitoral, também dominado pelos chavistas, rejeitou todas as denúncias de fraude nas eleições para governadores estaduais do ano passado. Dois candidatos disputarão com Maduro, dando uma aparência de legitimidade ao processo: Henri Falcón, um ex-chavista que mudou de lado e governou o Estado de Lara como oposicionista; e o pastor protestante Javier Bertucci, que atrai multidões aos seus comícios distribuindo comida e prometendo salvação no céu e prosperidade na terra.
“O impacto da candidatura de Falcón tem sido menor que o esperado, porque ele não contou com o apoio da maioria da oposição, que recorreu à abstenção”, disse a EXAME Carlos Romero, cientista político da Universidade Central da Venezuela (UCV). “Além disso, Falcón foi acusado de ser colaboracionista, e o pastor Bertucci rouba votos dele.”
Segundo Romero, o ex-governador apostou que a maioria dos opositores não aderiria ao boicote, e que ele canalizaria o voto de protesto contra o regime. “Mas se enganou. As pesquisas prevêem que não haverá voto de protesto. A maioria opositora simplesmente não vai votar. Ficará em casa e protestará contra os resultados no dia seguinte.”
Mesmo assim, de acordo com o instituto independente Datanálisis, Falcón tem a preferência de 28% dos eleitores registrados (muitos dos quais não votarão); enquanto Maduro e o pastor estão empatados, com 17%. O presidente, no entanto, declarou que almeja superar o seu mentor, Hugo Chávez, presidente entre 1999 e sua morte, em 2013, atraindo 12 milhões de votos.
Provavelmente jamais se saberá a contagem verdadeira. A Smartmatic, empresa britânica que forneceu o equipamento para votação eletrônica para a Venezuela, retirou seus funcionários do país, denunciando manipulação na apuração do ano passado para a Constituinte.
Quanto ao comparecimento, diversas pesquisas o estimaram entre 62% e 50%. Não ir votar é um gesto corajoso na Venezuela. Não só os funcionários públicos são ameaçados de perder o emprego, mas os cidadãos em geral são pressionados a comparecer.
Nas eleições de julho da Constituinte, o cartão da Pátria, que fornece cestas básicas a 70% dos venezuelanos, foi renovado nas sessões eleitorais. Maduro prometeu no comício de segunda-feira 14: “Quem for votar com seu cartão da Pátria vai receber um grande prêmio do país, porque nós não paramos de dar”.
Os grandes protestos do ano passado arrefeceram. Depois que 163 pessoas foram mortas em confronto com a polícia ou por grupos irregulares chavistas, e milhares presos, os manifestantes se desiludiram com a falta de um plano da oposição para fazer frente ao regime, e com a decisão de parte dela de concorrer às eleições estaduais no ano passado.
Embora as pesquisas indicassem que a oposição venceria em 18 dos 23 Estados, os resultados oficiais foram o contrário: os candidatos governistas venceram em 18 e a oposição, nos outros 5.
Os manifestantes são desencorajados também pela brutalidade do regime. Na quarta-feira 16 eclodiu uma rebelião no centro de detenção do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), que abriga 58 presos políticos, além de criminosos comuns. A confusão começou depois que o estudante Gregory Sanabria, preso desde 2014, foi espancado por um detento comum.
Uma foto com o rosto deformado do estudante de informática circulou nas redes sociais. O Sebin retomou o controle do prédio, chamado de Helicoide, e transferiu uma parte dos presos, aparentemente os criminosos comuns. Suas famílias denunciaram na sexta-feira que não sabiam seu paradeiro.
A marcha da Venezuela rumo à ditadura vai em paralelo com o desmoronamento de sua economia. Antes da Kellogg, outras grandes indústrias multinacionais de artigos de primeira necessidade, como a Kimberly-Clark e a Colgate-Palmolive, já haviam deixado o país. A queixa é sempre a mesma: falta de matérias-primas e insumo, assim como de dólares para importá-los, tabelamento de preços pelo governo, numa hiperinflação de 92,50% ao mês (índice de abril), e falta de mão-de-obra qualificada.
O Conselho Nacional do Comércio e dos Serviços da Venezuela (Consecomercio) informou em abril que ao menos 500 mil empresas fecharam desde 2002. A partir de abril daquele ano, quando sofreu uma tentativa de golpe militar, Chávez recrudesceu, lançando uma guerra contra as empresas.
O número delas caiu no período de 830 mil para 250 mil, segundo a entidade. De acordo com Alfonso Riera, vice-presidente da Consecomercio, a Colômbia, por exemplo, tem 2 milhões de empresas. O país vizinho tem 48 milhões de habitantes e a Venezuela, 31 milhões.
Em dezembro, o presidente da Confederação Venezuelana de Industriais (Conindustria), Juan Pablo Olalquiaga, previu que este ano 1.018 fábricas fechariam no país. O número equivale a 27% das indústrias que ainda sobrevivem. Olalquiaga disse que, além da falta de divisas para importar, de matérias-primas e de insumos, há a escassez de mão-de-obra qualificada, por causa da fuga de cérebros. E a própria hiperinflação, que corrói o poder de compra dos venezuelanos.
No dia 1.º, conforme se aproximavam as eleições, Maduro concedeu aumento de 95% no salário mínimo. Ele passou a 1 milhão de bolívares (equivalente na época a R$ 51). Somado com o bônus de alimentação, o total ficou em 2,55 milhões de bolívares, ou R$ 130, pela cotação do dia do aumento.
Levantamento feito naqueles dias pelo jornal El Nacional mostrou que o salário “milionário” não dava para nada: uma lata de atum de 140 gramas custava 1,1 milhão de bolívares; um quilo de frango com osso e pele, 1,37 milhão; um quilo de queijo fatiado, 2,8 milhões; quatro rolos de papel higiênico, 1,4 milhão. Isso, quando se consegue encontrar esses produtos. Ou seja, os salários são muito mais baixos que no Brasil e os preços, muito mais altos.
De acordo com o economista Jesús Casique, eram necessários 100 salários mínimos para adquirir a cesta básica familiar em abril. O aumento do preço da cesta básica foi de 11.443,9% nos 12 meses até abril.
Falcón prometeu abandonar o bolívar e adotar o dólar. Os argentinos já viram esse filme. Maduro anunciou que, a partir do dia 1.º, vai cortar três zeros do bolívar forte (que já perdera três zeros em relação ao bolívar original em janeiro de 2008) e rebatizá-lo de bolívar soberano. Os brasileiros já viram esse filme.
O presidente da Conindustria, no entanto, tocou no ponto-chave: “Esta inflação é causada pelo Executivo, que está emitindo mais dinheiro em meio a uma economia que está encolhendo”.
Nos últimos quatro anos, cerca de 1 milhão de venezuelanos deixaram o país. Em geral quem tem condições de sair é a elite, e muitos são profissionais qualificados.
De acordo com Iván Acosta, diretor na Venezuela do Grupo PGA, multinacional de logística, faltam profissionais de engenharia de sistemas, marketing e finanças. “Já não temos pessoas qualificadas na quantidade e qualidade suficientes para certos processos”, declarou Acosta.
A fuga de cérebros atinge até o setor de saúde. Em janeiro, a Federação dos Trabalhadores da Saúde (Fetrasalud) informou que só no último ano 300 profissionais deixaram o Hospital das Clínicas de Caracas, da Faculdade de Medicina da UCV. “Nenhum trabalhador da saúde tem como sobreviver no país”, disse Pablo Zambrano, secretario-executivo da Fetrasalud.
A situação é agravada pela escassez de medicamentos e de outros insumos e pela desnutrição. Segundo a pesquisa Condições de Vida 2016, feita pela UCV e mais duas universidades, 74,3% da população perdeu ao menos 8,7 quilos de forma involuntária em um ano.
O desabastecimento é causado pela desindustrialização e pela falta de divisas em moeda forte, que hoje somam apenas US$ 10 bilhões. A Argentina recorreu ao FMI quando suas reservas chegaram a US$ 60 bilhões. O Brasil está com US$ 381 bilhões (um recorde). As exportações de petróleo respondem por 95% dessas reservas.
Embora a Venezuela tenha as maiores reservas de petróleo do mundo, e o preço internacional da commodity esteja agora em ascensão, a produção caiu 30% desde 2014, por causa de incompetência na gestão, investimentos inadequados e obsolescência da PDVSA.
A estatal do petróleo foi atingida em cheio pela ideologização promovida por Chávez. A partir de dezembro de 2002, a PDVSA promoveu uma greve de três meses contra o governo. Chávez então interveio na estatal, demitindo diretores, gerentes e engenheiros, e substituindo-os por militantes bolivarianos, a maioria sem experiência no setor.
A estatal ainda teve suas receitas sugadas pela criação da subsidiária PetroCaribe, cuja função era fornecer petróleo barato (na época em que o barril estava ao redor dos US$ 100) a países governados por esquerdistas simpáticos a Chávez.
Para completar, a nacionalização das operações da PDVSA em 2007 levou a ações bilionárias na Justiça. Em abril, a Câmara Internacional de Comércio arbitrou em favor da indenização de US$ 2 bilhões para a empresa petrolífera americana ConocoPhillips, por prejuízos causados pelo confisco de seus ativos pela Venezuela. A empresa está recebendo como pagamento petróleo armazenado pela PDVSA no Caribe.
O governo dos EUA proibiu investidores americanos de comprar títulos da PDVSA e do governo venezuelano em troca de outros títulos que foram objeto de moratória. Os credores devem entrar com ações na Justiça.
O economista Luis Oliveros adverte que, dentro de seis a nove meses, a Venezuela deixará de ser exportadora líquida de petróleo. O país produz óleo pesado e precisa importar o leve (inclusive dos EUA) para misturar e refinar. “Tudo o que ela produzir será para vender para a China e Rússia e para consumo interno”, prevê o especialista.
Além disso, os investimentos estrangeiros diretos são baixos, “e nada parece indicar que aumentarão de maneira significativa sob o atual regime econômico”, disse a EXAME Anabella Abadi, da ODH Consultoria em Políticas Públicas, de Caracas. “Isso coloca a Venezuela em uma situação delicada. Se Maduro for reeleito, espera-se que as políticas econômicas baseadas no controle, intervenções de amplo alcance, arbitrariedade fiscal e desrespeito à propriedade privada se aprofundem.”
Talvez já não haja nem luz para apagar quando o último venezuelano sair.