Moqtada Al-Sadr, da coalisão Sairoon: para evitar atentados terroristas, cidadãos foram votar a pé (Alaa al-Marjani/Exame Hoje)
Da Redação
Publicado em 14 de maio de 2018 às 18h24.
Última atualização em 15 de maio de 2018 às 15h49.
Bagdá e Mossul – O silêncio dominou Bagdá, capital do Iraque, durante a eleição mais importante no país dos últimos anos, realizada no último sábado, dia 12. É o primeiro pleito depois da vitória contra o Estado Islâmico, grupo extremista que dominou um terço do Iraque entre 2014 e 2017. No dia 12, o espaço aéreo da capital foi fechado, assim como todas as fronteiras com os países vizinhos. Em Bagdá, os carros também não podiam circular em vários bairros. Os eleitores foram votar a pé. As medidas foram adotadas para impedir ataques terroristas que pudessem desestabilizar a votação. A eleição também contou com observadores internacionais.
Não faltaram de relatos de mesários que auxiliaram os eleitores. Muitos tinham dificuldade em escolher um candidato, entre as dezenas de opções da cédula, em papel, que depois eram escaneadas e enviadas para uma central. O analfabetismo no país chega a mais de 20% e muitas pessoas tiveram dificuldade em votar. O nível de abstenção também foi alto. Segundo o governo, apenas 44,5% dos eleitores saíram de casa para comparecer às urnas. É o índice mais baixo desde 2003, quando os Estados Unidos invadiram o país, Saddam Hussein foi deposto e foi implantado o regime democrático.
“Há uma desilusão grande com a classe política, vista como corrupta e pouco apta a oferecer alternativas para a reconstrução do país, em que uma parte do território foi devastado na batalha contra o Estado Islâmico”, afirma o analista político iraquiano Renand Mansour, do instituto de análises políticas Chatham House, com sede em Londres. “A eleição também pode trazer surpresas, com impactos significativos na geopolítica do Oriente Médio”, diz.
Até agora, o Iraque conseguiu se manter neutro em relação aos intricados conflitos na região. Não optou por nenhum lado na guerra da Síria, seu vizinho, nem revela laços mais fortes com o Irã, país com o qual também divide a fronteira. “O pleito no Iraque está sendo observado com atenção pelos Estados Unidos e seus aliados e também pelo Irã porque representa uma guinada para um lado ou para outro”, diz Tareq Alquasar, analista político da Universidade de Mossul.
Até alguns meses atrás, as pesquisas apontavam como favorito o atual primeiro-ministro Haidar Al-Abadi, um xiita moderado, que procurou capitalizar a vitória contra o Estado Islâmico. Mas o resultado surpreendeu vários analistas. Em primeiro lugar, despontou o clérigo xiita Moqtada al-Sadr, da coalisão Sairoon, crítico dos Estados Unidos – ele chegou a comandar grupos armados que lutaram contra as tropas americanas depois da invasão do país em 2003.
O segundo lugar coube ao líder de uma milícia xiita, maioria religiosa no país, Hadi Al-Amiri. A coalisão de Abadi, Vitória do Iraque, ficou em terceiro. Provavelmente, o novo primeiro-ministro será apontado pela coalisão de Sadr, que terá mais de 50 cadeiras no parlamento. “O novo governo terá a difícil missão de reduzir o sectarismo e unir o país, traumatizado pelo extremismo do Estado Islâmico, e fazer o povo se sentir representado no parlamento”, diz Alquasar.
O paradoxo iraquiano
O país adotou o parlamentarismo depois da deposição de Saddam Hussein. Agora, foram eleitos 329 parlamentares, entre 7.000 candidatos de 87 partidos. O Iraque é atualmente um dos poucos países democráticos da região. Também é detentor de uma das maiores reservas de petróleo do mundo – o país hoje é o segundo maior exportador mundial, atrás apenas da Arábia Saudita.
O dinheiro jorra fácil dos poços de petróleo e boa parte vai para os bolsos da elite política, mas não para a população local. “Os políticos corrompidos aceitam a influência do Irã, que investiu pesadamente em muitos candidatos nessas eleições”, diz Alquasar. Milícias xiitas bancadas pelo Irã tiveram um importante papel na luta contra o Estado Islâmico. As relações comerciais entre os dois países também têm crescido.
Hoje, o Irã exporta cerca de 12 bilhões de dólares por ano para o Iraque em mercadorias que vão de alimentos a produtos químicos. No norte do país, próximo à fronteira com a Síria – em que o Irã tem uma presença importante – não é raro ver representantes de forças de segurança iranianas. “O país tem grandes desafios políticos e econômicos pela frente”, diz Mansour. “Os sunitas, que dominaram a elite das forças armadas e exerceram vários cargos públicos quando Saddam Hussein comandava o país, se sentem humilhados e excluídos, o que cria um terreno fértil para grupos extremistas de vertente sunita como o Estado Islâmico”, afirma.
Os terroristas dominaram um terço do território iraquiano até serem vencidos no ano passado, depois de batalhas que devastaram áreas inteiras. Cidades importantes do país, como Mossul e Faluja, ainda não se recuperaram da destruição causada pela guerra. Até hoje, quase um ano depois do fim das batalhas, falta desde energia elétrica até água encanada nos municípios mais afetados. Calcula-se que para reconstruir os territórios devastados pela luta contra o Estado Islâmico sejam necessários 100 bilhões de dólares. Por enquanto, o Iraque só conseguiu uma pequena fração disso. Em uma conferência sobre a reconstrução do país realizada no Kuwait em fevereiro deste ano, o país obteve investimentos e empréstimos que não passam de 10 bilhões de dólares.
Não à toa, a economia é uma das maiores preocupações dos iraquianos – e nenhum candidato ou partido político parece ter a resposta de como reerguer o país. No ano passado, o PIB caiu 0,8%. Em cinco anos a queda chega a 27%. A taxa de desemprego é de 15%. Entre os mais jovens, de 18 a 24 anos, o índice é de quase 20%. Nas regiões mais impactadas pelas batalhas contra o Estado Islâmico, é mais fácil encontra água no deserto do que conseguir um posto de trabalho. Além disso, cerca de 3 milhões de pessoas, ou quase 10% da população, tiveram que abandonar suas casas durante a guerra e ainda vivem em campos de refugiados espalhados pelo país. Muitos moradores de Mossul e outras cidades que foram palco da guerra contra os extremistas, travada entre 2014 e 2017, se ressentem da falta de investimentos governamentais para reconstruir e seguir adiante.
“Precisamos de mais recursos e mão de obra para reerguer Mossul”, diz Layla Saleh, arqueóloga e candidata a uma cadeira no parlamento pelo Partido Democrático Al-Nahej, criado recentemente. Layla, que mora em Mossul, segunda maior cidade do Iraque, fez uma campanha silenciosa. Ao invés de espalhar cartazes e outdoors, como grande parte dos candidatos, Layla se concentrou em visitas às casas dos eleitores. O objetivo era minimizar o risco de ameaças.
Uma das preocupações dos candidatos eram os crimes de motivação política e atentados terroristas. “Para a mulher talvez seja ainda pior porque a maioria da população não aceita que somos iguais ao homem, por isso as candidatas correm um risco acentuado de sofrer ataques”, diz. Muitas contam ter enfrentado discriminação e assédio. “Meu irmão veio de Bagdá para ajudar na minha proteção, mas a minha família em geral não aceitou minha candidatura porque faço parte de um clã conservador”, diz Layla.
A situação revela bem o dilema do Iraque atual, que mantém um pé na modernidade e outro na visão tribal. O próximo governo tem a difícil missão de desempatar o jogo de uma das nações mais importantes do Oriente Médio.