Emmanuel Macron, presidente da França (Ludovic Marin/AFP)
Agência de notícias
Publicado em 1 de julho de 2024 às 16h32.
Última atualização em 1 de julho de 2024 às 16h44.
Independente do resultado final do 2º turno, as eleições legislativas na França já coroaram seu maior perdedor: o presidente Emmanuel Macron. Após antecipar de forma surpreendente a votação para a Assembleia Nacional, sob pretexto de conter o avanço da extrema direita no país e unificar as "forças democráticas", o líder francês viu os eleitores virarem as costas para a sua coalizão centrista no último domingo, provocando uma perda de cadeiras irreversível no parlamento, que relegou ao seu grupo político o papel de terceira força no Legislativo.
Em um primeiro turno marcado pela maior taxa de participação do eleitorado desde 1997 (com 67% de comparecimento), a coalizão governista de Macron conquistou pouco mais de 20% dos votos, atrás do Reagrupamento Nacional, de extrema direita, com cerca de 34%, e da Nova Frente Popular, que reuniu partidos da centro esquerda à extrema, que acabou em segundo lugar, com quase 28% dos votos.
O resultado já implica uma redução acentuada na presença do Renascimento — grupo político de Macron — na Assembleia Nacional. Após conquistar 250 cadeiras em 2022, tonando-se o grupo com maior representação parlamentar, os governistas terão entre 70 e 120 deputados eleitos, de acordo com as estimativas dos institutos de pesquisa. Mesmo no cenário mais otimista projetado pelos institutos, os aliados de Macron ficam atrás da Nova Frente Popular, que deve conquistar um mínimo de 150 assentos.
"O resultado da votação foi um grave revés [para Macron], depois de ter apostado que a vitória do Reagrupamento Nacional nas recentes eleições para o Parlamento Europeu não se repetiria. Não havia obrigação de lançar a França uma turbulência durante o verão [do Hemisfério Norte] com uma votação apressada, mas Macron estava convencido de que era seu dever democrático testar o sentimento francês numa votação nacional", escreveu o jornalista Roger Cohen, chefe do escritório do New York Times em Paris.
A estratégia de antecipar as eleições foi descrita por alas mais otimistas ligadas ao presidente como uma forma de se beneficiar da força do status quo — a grande bancada no Legislativo — em um pleito com pouco tempo de campanha, confiando também em uma análise de que o eleitor se comporta de maneiras diferentes em eleições nacionais e europeias.
"Há um argumento de que nas eleições para o Parlamento Europeu, o eleitor se dá ao luxo de ser mais ideológico, enquanto nas eleições nacionais seria mais pragmático. Pode ter sido o caso em algumas ocasiões, mas não foi o que aconteceu desta vez", afirmou o cientista político Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais na Uerj. "A derrota de Macron não apenas para a extrema direita, mas também para a Nova Frente Popular, manda uma mensagem forte de insatisfação com o presidente."
A derrota nas urnas expõe apenas uma face do enfraquecimento político de Macron. Se o eleitorado não atendeu ao chamado do presidente, tampouco o seguiram as forças centristas que ele cortejou, que preferiram coligações com o RN, de Marine Le Pen e Jordan Bardella, com o França Insubmissa (LFI, na sigla em francês), de Jean-Luc Mélenchon, ambos apontados como extremistas por Macron. Pelo menos um partido tradicional preferiu concorrer sozinho a se aliar imediatamente ao Renascimento.
No campo da esquerda, Macron viu socialistas, ambientalistas e comunistas superarem divergências e divisões internas nos 22 dois dias que separaram o fim das eleições europeias, nas quais concorreram separadamente, e o primeiro turno da disputa na França, e retomarem a coalizão que concorreram em 2022, incluindo o França Insubmissa, de Mélenchon.
À direita, a eleição antecipada rachou Os Republicanos, partido histórico de ex-presidentes como Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy. O então presidente do partido, Eric Ciotti, declarou apoio ao Reagrupamento Nacional sem consultar os demais representantes da legenda, que o excluíram do partido. Ciotti conseguiu reverter a expulsão na justiça, ao menos temporariamente, e junto de dissidentes concorreu no domingo como se a coligação com o partido de Le Pen fosse oficial.
O establishment do partido, que se opôs à aliança e forçou a expulsão de Ciotti, concorreu de forma independente, recusando a aliança entre as forças democráticas sugerida por Macron.
Pouco depois da divulgação do resultado do 1º turno, Macron divulgou um comunicado, no qual voltou a apelar para a criação de uma "aliança ampla, democrática e republicana" para a sequência da disputa — um apelo ao chamado "cordão sanitário", que na política francesa significa concentrar os votos no candidato mais viável dentro das forças democráticas, capaz de derrotar a extrema direita em cada um dos 577 círculos eleitorais.
A estratégia se repete na política francesa há anos, desde que Jean-Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen e fundador do Frente Popular, chegou à disputa do segundo turno contra Jacques Chirac, com o republicano ganhando o apoio de forças à direita e à esquerda do chamado campo democrático. No entanto, para especialistas ouvidos pelo O Globo, a política já dava sinais de cansaço desde 2022.
— Há um desgaste na esquerda, onde muitos eleitores se sentem usados por pessoas como Macron, que são eleitos, não fazem nada do que esse eleitorado esperaria de um governo, mas quando chega no dia da votação, procuram esse voto para vencer à extrema direita. É um ressentimento que não é de agora, com Macron, vem de anos — afirmou Santoro.
Mesmo antes do primeiro turno, a Nova Frente Popular havia anunciado que iria aderir ao cordão sanitário, retirando da disputa seus candidatos que se classificassem para o segundo turno na terceira colocação, para abrir espaço e concentrar votos em políticos de outros partidos concorrendo contra o RN. Mélenchon confirmou a adesão em um pronunciamento na noite de domingo.
Uma mensagem mais confusa partiu da frente macronista. Após uma campanha ferrenha contra os extremos — que na visão do presidente inclui o partido de Mélenchon —, as primeiras comunicações e direcionamentos para o segundo turno demonstraram certo grau de incerteza. Édouard Philippe, líder do movimento Horizons e ex-premier, afirmou que os candidatos de seu partido, que faz parte da coalizão de Macron, se retirariam se fossem terceiros colocados, mas apenas quando a disputa entre os dois primeiros não fosse entre RN e LFI.
Gabriel Attal, primeiro-ministro e protegido de Macron, defendeu que "nenhum voto" deveria ser dado à extrema direita, mas representantes do Eliseu comentavam, na noite de domingo, que em duelos em que RN e LFI estivessem à frente, a retirada da candidatura dependeria de uma avaliação sobre o caráter "republicano" e "democrático" do postulante da esquerda, publicou o Le Monde.
Em meio às especulações, o cordão sanitário começou a ganhar forma nesta segunda-feira. De acordo com o jornal Le Monde, 167 postulantes anunciaram a desistência de suas candidaturas em disputas triangulares — disputas de segundo turno com três candidatos. Ao todo, 306 círculos eleitorais franceses teriam disputas com três ou mais candidatos.
Um outro aspecto que contribui para o esgotamento do cordão sanitário, explicam especialistas, partiu ativamente do Reagrupamento Nacional, que remodelou a imagem do partido, a fim de se tornar mais palatável ao público em geral. O partido afastou-se da imagem antissemita, expulsando até mesmo um de seus fundadores, o pai de Le Pen, ampliou sua plataforma econômica para atender os anseios de eleitores da classe trabalhadora e investiu em uma renovação de representantes — a maior delas, seu candidato a primeiro-ministro, Jordan Barella, de apenas 28 anos.
"Em 2022, o cordão sanitário já dava sinal de que se romperia, porque a direita radical estava se tornando cada vez mais 'mainstrem'. Houve todo um trabalho da RN de normalização de alguns de seus discursos radicais, de 'rebranding', comunicação e marketing, para transformar um partido historicamente de raiz neofascista em algo mais palatável ao grande público", explicou o professor de Relações Internacionais David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita.
Magalhães afirma que com o cordão sanitário é possível que haja uma "contenção de danos", mas não uma reviravolta do cenário que se apresenta. As duas alternativas mais prováveis neste momento são de um governo de maioria do Reagrupamento Nacional — Le Pen já afirmou que o partido só governa se tiver alcançar 289 cadeiras — ou uma Assembleia Nacional fragmentada. Qualquer dos cenários é pouco promissor para Macron, que tem mandato até 2027.
Em caso de maioria do Reagrupamento Nacional, Macron estaria diante de um cenário de coabitação inédito, considerando a distância entre presidente e primeiro-ministro. O RN estaria em posição de definir grande parte da agenda interna do país, ao mesmo tempo que poderia tentar limitar o poder presidencial em temas que competem ao Executivo, como diplomacia, relações exteriores e segurança e defesa.
Uma paralisia da pauta interna não seria menor com um governo fragmentado — uma vez que o cordão sanitário não significa um embarque da esquerda no governo Macron, mas apenas uma solução eleitoral para evitar o avanço da extrema direita.