Avião com o filho de Donald Trump, durante visita a Groenlândia, em 7 de de janeiro (Emil Stach / Ritzau Scanpix / AFP/AFP)
Agência de notícias
Publicado em 1 de fevereiro de 2025 às 11h20.
Considerada o "tesouro do Ártico", por sua posição geoestratégica e riquezas minerais, a Groenlândia
está se tornando rapidamente um palco de competição global, alavancado pelas recentes declarações do presidente americano, Donald Trump, de que os Estados Unidos pretendem controlá-la.
O republicano alega que esse enorme território gelado é vital para a segurança americana e questiona a capacidade norueguesa de defendê-lo. Copenhague, por sua vez, afirma que a ilha não está à venda e anunciou que investirá US$ 1,9 bilhão em sua Defesa. Mas após décadas de escassez de recursos militares, o pacote prometido deverá ser apenas um primeiro passo para começar a melhorar, de fato, a segurança groenlandesa, que hoje depende de cães de trenó, navios obsoletos e poucos soldados.
A frota do Comando Conjunto do Ártico, a parte das Forças Armadas da Dinamarca que cuida da Groenlândia, é formada por sete embarcações, que, segundo analistas, não estão em boa forma. A maior delas, ancorada no porto de Nuuk, ficou sem sistema de mira por mais de uma década — o que significa que seu canhão de 76mm podia disparar, mas atingiria dificilmente o alvo. Quatro fragatas maiores que patrulham as águas ao largo da ilha têm mais de três décadas de idade e quebram com frequência — em média, o tempo de vida útil de uma embarcação é de 20 anos.
Para reduzir os custos de manutenção, os sistemas de sonar de detecção de submarinos foram retirados, deixando as embarcações tão desprovidas de armas e sensores que ex-comandantes navais dinamarqueses consultados pelo Wall Street Journal (WSJ) duvidam que elas sejam tecnicamente consideradas navios de guerra pelos padrões da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
O contingente militar do Comando também não é expressivo: menos de 150 soldados precisam defender esse país escassamente povoado, mas cujo território é maior que o do México e tem quase 30 mil milhas de litoral acidentado. Eles contam com o apoio de cerca de 12 oficiais de elite em trenós puxados por cães, alguns helicópteros e um avião de vigilância Challenger, de fabricação canadense.
— Durante muitos anos, deixamos de fazer os investimentos necessários em navios e aeronaves que ajudarão a monitorar nosso reino, e é isso que estamos tentando fazer agora — disse o Ministro da Defesa dinamarquês, Troels Lund Poulsen, este mês.
O pacote de US$ 1,9 bilhão anunciado pela Dinamarca será gasto principalmente na substituição das quatro fragatas antigas por três navios mais novos. Mas até o momento não se sabe a origem dessas embarcações nem quanto tempo levará para elas serem entregues ao governo dinamarquês.
Pulsen também prometeu comprar dois novos drones de longo alcance e contratar duas equipes extras de trenós puxados por cães, além de modernizar um dos três principais aeroportos civis da Groenlândia para receber modernos caças F-35 fabricados nos EUA. Os sistemas de mira nas embarcações da classe Knud-Rasmussen já foram instalados.
"Nas últimas duas décadas, e especialmente desde a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, o Ártico tem se caracterizado cada vez mais pela competição, e não pela cooperação", avaliam em artigo Jonas Vidhammer Berge e Max Bergmann, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, com sede em Washington. "O ambiente de segurança do Ártico mudou politicamente, refletindo uma postura cada vez mais competitiva entre um bloco consolidado da Otan no Ocidente e uma Rússia beligerante no Oriente."
A região do Ártico é formada por oito países, dos quais todos, exceto a Rússia, fazem parte da Otan, depois que Suécia e Finlândia concluíram seu processo de adesão à aliança transatlântica em 2024, mais do que dobrando a fronteira russo-ocidental.
Após o fim da Guerra Fria, os países europeus reduziram drasticamente o financiamento de suas Forças Armadas e poucos cumpriram a meta estabelecida pela Otan de investir ao menos 2% do PIB em Defesa. Em 2014, quando a Rússia tomou a Crimeia da Ucrânia, a Dinamarca gastava apenas 1,4% e apenas três membros da aliança contribuíram com os valores prometidos. Isso mudou em 2024, quando, após dois anos de guerra na Ucrânia, 23 Estados-membros alcançaram esse valor, com Copenhague investindo 2,4%.
Trump pareceu descartar esses esforços ao falar com repórteres a bordo do avião presidencial na semana passada:
— Eles [os dinamarqueses] colocaram dois trenós puxados por cães lá há duas semanas — afirmou. — Acharam que isso era proteção.
O presidente americano também ironizou as capacidades do Comando Conjunto do Ártico:
— Você tem barcos russos por toda parte, barcos chineses por toda parte, navios de guerra, e eles [os dinamarqueses] não conseguem assegurar a manutenção [das embarcações].
Em 1951, os EUA e a Dinamarca assinaram um tratado que dá a Washington o direito de manter uma presença militar na Groenlândia e defendê-la. Desde então, os americanos operam a Base Espacial Pituffik (anteriormente conhecida como Base Aérea de Thule), que funciona como um posto avançado das Forças Armadas dos EUA para detectar a chegada de mísseis.
— Se você olhar um mapa-múndi com o Polo Norte no centro, você vai ver que a maior parte dos mísseis balísticos intercontinentais que podem ser lançados da Rússia em direção aos EUA, ou dos EUA em direção à Rússia, vai acabar sobrevoando a Groenlândia — explicou ao GLOBO o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em ciências militares, em entrevista publicada no início deste mês.
No entanto, as autoridades dinamarquesas dizem que há um ponto cego no leste da ilha, o que significa que se mísseis russos fossem lançados sem serem detectados de uma base no Ártico, "eles poderiam voar ao longo da costa leste da Groenlândia sem serem notados", disse Jens Wenzel, analista do centro de estudos Nordic Defence Analysis, ao WSJ.
O mesmo provavelmente se aplicaria aos submarinos russos que se dirigem ao Oceano Atlântico. Estima-se que a Frota do Norte, a unidade da Marinha russa responsável pela defesa do nordeste da Rússia — e que navega pelo Ártico — tenha mais de 30 submarinos movidos a energia nuclear em operação.
"O principal recurso da Groenlândia em termos de importância estratégica é sua geografia. Ela protege literalmente os avanços ao norte do Oceano Atlântico”, disse ao WSJ o almirante aposentado da Marinha dos EUA James Stavridis, ex-comandante supremo aliado da OTAN, que refere-se à Groenlândia como “o eixo absoluto da Otan na defesa da guerra antissubmarina, bem como no alerta aéreo antecipado”.
Durante muito tempo, a região foi caracterizada pelo excepcionalismo ártico — o entendimento comum de que a Groenlândia é praticamente impossível de ser invadida por causa de seus terrenos de geleiras e fiordes, clima abaixo de zero e falta de estradas que liguem seus vários assentamentos. Mas isto está mudando com o aquecimento global e o derretimento glacial acelerado do Ártico, que abre novas rotas de navegação e áreas de exploração de petróleo e minerais estratégicos, mas faz ursos-polares morrerem de fome.
Historicamente, a Groenlândia também manteve um perfil pacifista e certa crença de que sua própria história a protegeria da rivalidade de grandes potências — durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Dinamarca foi invadida pelos nazistas, a ilha tornou-se um protetorado de fato dos EUA. No entanto, a invasão da Ucrânia provocou "um abalo sísmico na região e fez com que os tomadores de decisão da Groenlândia ampliassem sua visão sobre os desafios de segurança enfrentados pelo Ocidente", afirma Marc Jacobsen, professor associado da Escola Real de Defesa Dinamarquesa, em artigo.
— Devemos encarar que há sérios desafios em relação à segurança e à defesa no Ártico e no Atlântico Norte — declarou Poulsen na segunda-feira.