"O componente de incerteza está no detalhamento do que ainda está por vir", afirma Gustavo Loyola (.)
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
São Paulo - A reforma do sistema financeiro americano representa um avanço, principalmente sob o ponto de vista institucional. Contudo, a depender da forma como será detalhado, poderão surgir medidas que podem desestimular a criatividade e a disposição de tomar risco, inerentes ao capitalismo. O alerta é do ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola.
Criador do elogiado PROER (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), que livrou o país de uma séria crise bancária na década de 90, Loyola alerta que "o diabo mora nos detalhes".
A proibição ou uma excessiva regulação das chamadas operações especulativas podem ter o efeito contrário ao desejado pelas autoridades americanas quando de sua concepção. Em vez de diminuir o risco sistêmico, corre-se o risco de aumentá-lo, ao incentivar os investidores a encontrar novas formas de realizar suas operações, sobretudo em mercados novos, com fiscalização e regras mais frouxas.
Veja.com: Qual é sua avaliação sobre a reforma do sistema financeiro americano?
Gustavo Loyola: A reforma traz importantes avanços no aspecto institucional, ou seja, na forma como estão estruturados os órgãos de supervisão e regulação bancária. Antes da aprovação deste projeto, prevalecia certa confusão neste terreno - algo que não se verifica no Brasil, por exemplo. Nos Estados Unidos, havia sobreposição em alguns mercados, ou seja, diferentes entidades que cuidavam da mesma coisa. Por outro lado, havia mercados que estavam praticamente sem a vistoria de um órgão público.
A melhoria, portanto, é evidente. O banco central americano (FED) passa a ser uma espécie de supervisor geral, o que claramente ajudará a aumentar o grau de coordenação dos responsáveis por regular e fiscalizar os mercados. Haverá avanço na qualidade da supervisão e elevação da transparência.
<hr> <p class="pagina">As próprias atribuições das diferentes agências estão agora mais claras. Houve a preocupação do Congresso e do presidente Obama de cobrir as lacunas do sistema, isto é, de criar regras e fiscalização para aqueles produtos que estavam praticamente sem o escrutínio de ninguém, como os hedge funds, por exemplo.<br> <br> Por fim, vejo como positiva a criação de uma área específica para proteção do cliente bancário, o que já era uma preocupação do FED. O consumidor precisa saber exatamente para onde correr quando se sentir lesado.<br> <br> Agora, aplica-se aqui aquele velho ditado: "o diabo mora nos detalhes".<br> <strong><br> Veja.com: <em>O que senhor quer dizer com essa afirmação?</em><br>Gustavo Loyola:</strong> O componente de incerteza - e de risco - está no detalhamento do que ainda está por vir. O projeto de lei, apesar de ser um calhamaço de 2.300 páginas, traz muita argumentação e diversas propostas. Mas a forma como isso será implementado não está muito clara para mim. A depender de como o processo andar, podem surgir empecilhos indesejáveis ao bom andamento dos mercados. <br> <br> <strong>Veja.com: <em>E quais são os maiores riscos?</em><br>Gustavo Loyola: </strong>O tema sobre o qual estão depositadas as maiores dúvidas é o da restrição aos negócios especulativos. O propósito aí, logicamente, é dos mais nobres. O mercado evidentemente ganha quando se estabelecem garantias de que os bancos não vão extrapolar na tomada de risco a ponto de oferecerem insegurança ao setor como um todo.<br> <br> Contudo, a depender de como isso for regulamentado, principalmente se houver exagero nos mecanismos de controle dos negócios, os bancos americanos podem perder competitividade. A criatividade e a disposição de tomar risco fazem parte da dinâmica do capitalismo.<br> <strong><br> Veja.com:<em> Neste sentido, não seria preferível uma economia que avance mais lentamente, mas que, ao menos, minimize os riscos?</em><br> Gustavo Loyola:</strong> Os riscos e as crises são inerentes à evolução econômica. Esta é uma das constatações do excelente livro "Desta vez é diferente: Oito séculos de loucura financeira", dos economistas Ken Rogoff e Carmen Reinhart. Todos os países, ricos emergentes, passam por ciclos de crises e calotes de dívida. A França, por exemplo, esteve em apuros, por diversas vezes, nos séculos XVIII e XIX. A própria Inglaterra teve suas turbulências no século XVI.<br> <br> Neste sentido, as autoridades não podem descansar. É preciso sim estar sempre atento às novidades do mercado, investigar seus riscos e, se necessário, tomar medidas preventivas ou corretivas. Isso não significa, contudo, inibir sua capacidade inventiva. <br> <br> Os carros hoje são muito mais perigosos que os do início do século XX. Em sua evolução, eles se tornaram espantosamente mais potentes e velozes. Conseqüentemente, causam estragos maiores também. Em compensação, possuem hoje muito mais itens de segurança. Aí, eu pergunto. O que as pessoas vão preferir? Os carros de hoje ou os do século passado? Ocorre a mesma coisa com a indústria financeira. O grande risco é justamente o de destruir ou diminuir o ritmo natural do progresso da intermediação financeira, aumentar seus custos, etc.<br> <br> Os bancos possuem responsabilidade na crise. Isso é inegável e eles merecem ser punidos. Contudo, é preciso tomar cuidado para não demonizá-los. Graças às suas ambições que o capitalismo progrediu espetacularmente ao longo da história, pavimentando a evolução econômica, tecnológica e de bem-estar social da humanidade.</p> <hr> <p class="pagina"><strong>Veja.com: <em>O mercado seria mais criativo que os reguladores no que diz respeito à capacidade de encontrar maneiras para burlar a fiscalização?</em><br> Gustavo Loyola:</strong> É verdade. Quando se simplesmente proíbe uma operação ou quando a regulação é irracional, os investidores tendem a buscar formas de continuar suas operações, mas em outro ambiente onde as regras são mais frouxas ou com menor fiscalização. Na crise financeira de 2008, por exemplo, ficou claro que grande parte do risco financeiro havia migrado para as seguradoras. O caso da AIG foi emblemático.<br> <br> Em resumo, quando se proíbem determinadas transações ou quando há imposição de regras muito rígidas, não necessariamente o governo está reduzindo o risco sistêmico. Ao contrário, pode estar incentivando a migração deste risco a ambientes em que podem ficar camuflados. Corre-se, portanto, o risco de aumentá-lo.<br> <br> <strong>Veja.com: <em>A aprovação da reforma financeira pelo Congresso dos Estados Unidos foi vista por alguns como uma espécie de convergência do modelo americano ao brasileiro, onde há maior rigor no registro das operações e maior clareza sobre quem manda no quê. Nosso modelo, na sua avaliação, é mesmo tão bom assim?</em><br> Gustavo Loyola: </strong>Possuímos, de fato, um sistema bancário sólido e bem fiscalizado. A regulação brasileira tem muitos aspectos positivos, que ganharam evidência nesta crise e que devem ser mantidos. Isso não significa, porém, que ela não deva avançar.<br> <br> O Brasil só agora verifica um mercado de crédito pujante, graças ao forte crescimento que tem se verificado nos últimos anos. A tendência é que, com o passar dos anos, as famílias e as empresas brasileiras, bem como os bancos, fiquem mais alavancados. Temos visto também um grande desenvolvimento do mercado de capitais e da indústria de fundos.<br> <br> Tudo isso significa que teremos pela frente novos desafios, que vão requerer atualização e aperfeiçoamento constante de nossas regras.</p>